Por Marcos Queiroz
A história oficial do Brasil e esculturas de escravistas, genocidas e comerciantes negreiros demonstra como o aparelho ideológico dominado pela elite branca constrói uma verdadeira obstrução do passado. Essa não é um debate em torno da memória e do esquecimento, mas uma disputa sobre que futuro queremos construir.
No último dia de 10 de junho, marcaram-se os 95 anos de nascimento de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX: o piauiense Clóvis Moura. Jornalista, sociólogo, historiador, intelectual público, militante do movimento negro, comunista e conhecido também como um dos principais intelectuais quilombola, Clóvis foi um dos responsáveis por abrir as portas para o grande giro vivido pela historiografia brasileira em meados do século passado: a mudança na nossa compreensão sobre o passado escravista e sobre o papel da população negra na construção nacional.
Em 1959, depois da recusa da Editora Brasiliense, ligada ao Partido Comunista, publicou, por conta própria, o livro Rebeliões da Senzala, que apontava a importância dos quilombos e insurgências escravas para a derrocada do sistema escravista. Neste livro, rejeitava teses até então comuns sobre a passividade do negro brasileiro, bem como negava a ideia de que o protesto e a rebelião negra eram desprovidos de consciência política e de classe. Ademais, contrariando opinião hegemônica no meio marxista, assinalava o escravismo como elemento sistêmico e dinâmico central na formação brasileira, evidenciando a escravidão e o trabalho escravo como fenômenos eminentemente modernos. Nessa toada, argumentava que a abolição brasileira só podia ser entendia diante da práxis negra.
O historiador Flávio dos Santos Gomes, no livro História de Quilombolas, assinala a importância do giro empreendido fez Clóvis ser: o pioneiro nas abordagens mais sociológicas sobre comunidades de fugitivos e suas relações com a sociedade envolvente. Buscando compreender as dinâmicas da sociedade escravista através dos quilombos, empenhou-se em abordar os quilombolas em várias regiões do Brasil, suas relações com outros movimentos políticos e a ações de guerrilha. Baseando-se em fontes primárias impressas e fontes secundárias, Moura analisou o que chamava de “desgaste” do sistema escravista, levado a cabo, em parte, pelo protesto escravo.
Dono de uma vastíssima obra, Clóvis não só rompeu com as teses culturalistas, como tensionou, por dentro, o eurocentrismo do marxismo branco no Brasil, que relegava ao negro um papel objetificado e imobilizado na história e secundarizava o racismo como elemento estruturante do capitalismo brasileiro. Ele também pode ser considerado um dos pioneiros dos estudos culturais no país, na medida em que possui diversos textos sobre como a literatura e a historiografia nacional contribuíram para a estereotipação, infantilização e bestialização da população negra. Neste sentido, destaca-se a obra pioneira Preconceito de Cor na Literatura de Cordel, de 1976.
A importância de Clóvis é tamanha que ele pode ser colocado em uma constelação de intelectuais negros marxistas da diáspora que revolucionaram a história da escravidão e as interseções entre raça e classe, como C.L.R. James, Eric Williams, Walter Rodney e Angela Davis. Neste sentido, Clóvis é parada obrigatória para demolir certos mitos ainda comuns, como as ideias de que a teoria marxista é exclusivamente branca ou, então, de que a leitura de marxistas negros requer o contato com autores estrangeiros, o que nos leva, muitas vezes, a ficar à mercê de demoradas traduções.
Assim, a releitura do passado proposta por Clóvis é sempre mediada pelas problemáticas do tempo presente. A luta pela democratização da memória é parte integrante da construção de um outro futuro. Neste sentido, um dos argumentos centrais na obra de Clóvis, o qual ele condensa no livro As Injustiças de Clio, 1990, é de que a história oficial do Brasil é um aparelho ideológico de dominação da elite branca, que tem como dispositivo principal o falseamento da história do negro. Como ele aponta, esse falseamento não se dá apenas por meio de livros e narrativas, mas também pela escolha de ídolos, ícones e eventos históricos que privilegiam uma forma ainda escravista de enxergar o passado, o presente e o futuro do Brasil. Em síntese, história é poder.
No texto Atritos entre história, o conhecimento e o poder, Clóvis é explícito: a história oficial continua selecionando heróis da pátria a partir de uma perspectiva elitista e conservadora e não entre aqueles que, em diversos momentos, buscaram transformar o Brasil. Através dos seus intelectuais orgânicos, as classes dominantes manipulam critérios que estabelecessem quais personalidades devem ser valorizadas e quais devem ser esquecidas:
Daí por que o julgamento de valor de quase todos eles em relação aos fatos e heróis continuará sendo o mesmo estabelecido pelos historiadores do Império. Esses heróis “oficiais” continuam sendo Duque de Caxias, Domingos Jorge Velho, Pedro I, Pedro II, Princesa Isabel, Barão de Cotegipe, Feijõ, Barão de Rio Branco e, também, Deodoro da Fonseca e os demais participantes do golpe militar republicano.
Enquanto isso, figuras populares e que apresentaram projetos alternativos de país, como Zumbi dos Palmares, os membros da Revolta dos Búzios na Bahia, em 1798, Frei Caneca, Pacífico Licutã e os demais malês e inúmeros outros, “constituem o grande painel de heróis sem monumentos, mas que desarticularam as estruturas de poder em vários momentos da nossa história. Eles não são considerados heróis porque o seu heroísmo passa pela áspera estrada dos derrotados”.
Assim, a obra de Clóvis aponta que se há alguma possibilidade de refundação do Brasil a partir de um pacto nacional que de fato inclua o povo brasileiro, isso necessariamente passa pela demolição da história oficial, que é branca, colonial e elitista. Na sua opinião, esse ato de fazer história requer, necessariamente, uma agência fora da institucionalidade, bem como a construção de uma ética de desamor pelo Brasil oficial e de amor pelo Brasil real. Uma ética, portanto, de desapego à memória dos supostos vencedores: “fazer história e, por extensão, ciências sociais fora dos quadros institucionais e da visão marcial do poder é um ato de coragem”.
Neste sentido, dentro da atual polêmica das estátuas, a perspectiva de Clóvis nos diz que a desconstrução do lugar inconteste da nossa memória oficial, presente em livros e monumentos, é justamente esse ato de coragem que o fazer da história deve ter em países como o Brasil. A pronta defesa de esculturas de escravistas, genocidas e comerciantes negreiros demonstra como a obstrução do passado não é só um debate em torno da memória e do esquecimento, mas uma disputa sobre que futuro queremos construir. O risco de derrubada ou remoção que estátuas até muito recentemente não corriam é a evidência mais explícita de que as lutas contemporâneas contra o racismo e o fascismo carregam no seu bojo a luta pela democratização da memória. Que caiam os mitos de ontem e de hoje.
Fonte: Jacobin Brasil.