Por Thomas Piketty*

 

Para reparar a sociedade dos danos do racismo e do colonialismo, é necessário mudar o sistema econômico.

 

A onda de mobilizações contra o racismo e a discriminação coloca uma questão crucial: a das reparações diante de um passado colonial e escravista que definitivamente não passa. Qualquer que seja sua complexidade, a questão não pode ser evitada para sempre, nem nos Estados Unidos nem na Europa.

 

No final da Guerra Civil, em 1865, o republicano Lincoln prometeu aos escravos emancipados que obteriam após a vitória “uma mula e 40 acres de terra” (cerca de 16 hectares). A ideia era compensá-los por décadas de maus-tratos e trabalho não remunerado e permitir-lhes encarar o futuro como trabalhadores livres. Se tivesse sido adotado, este programa representaria uma redistribuição agrária em larga escala, principalmente às custas dos grandes proprietários de escravos.

 

Mas assim que a luta terminou, a promessa foi esquecida: nenhum texto de compensação foi adotado e os 40 acres e a mula se tornaram o símbolo da decepção e da hipocrisia dos nortistas – tanto que o diretor [de cinema] Spike Lee utilizou a expressão ironicamente para nomear sua empresa de produção. Os democratas retomaram o controle do Sul e impuseram a segregação e discriminação racial por mais um século, até a década de 1960. Novamente, nenhuma compensação foi aplicada.

 

Estranhamente, no entanto, outros episódios históricos deram origem a tratamentos diferentes. Em 1988, o Congresso aprovou uma lei concedendo US $ 20.000 aos nipo-americanos internados durante a Segunda Guerra Mundial. A indenização foi aplicada às pessoas ainda vivas em 1988 (cerca de 80.000 pessoas em 120.000 nipo-americanos internados de 1942 a 1946), a um custo de US $ 1,6 bilhão. Uma compensação de mesmo tipo paga às vítimas afro-americanas da segregação teria um forte valor simbólico.

 

No Reino Unido e na França, a abolição da escravidão era sempre acompanhada de compensações do Tesouro Nacional [pagas] aos proprietários. Para intelectuais “liberais” como Tocqueville ou Schoelcher, tratava-se de uma obviedade: se privamos esses proprietários de suas propriedades (que, afinal, foram adquiridas em um contexto legal) sem justa compensação, então onde iríamos parar nessa perigosa escalada? Quanto aos ex-escravos, eles deveriam aprender a liberdade trabalhando duro. Não tiveram direito senão à obrigação de estabelecer contratos de trabalho de longo prazo com proprietários, cuja falta ensejaria prisão por vadiagem. Outras formas de trabalho forçado foram aplicadas nas colônias francesas até 1950.

 

Quando da abolição britânica [da escravatura], em 1833, o equivalente a 5% da renda nacional do Reino Unido (hoje 120 bilhões de euros) foi pago a 4.000 proprietários, com remuneração média de 30 milhões de euros, origem de muitas fortunas ainda hoje visíveis. Uma compensação também foi aplicada em 1848 aos proprietários da [Ilha da] Reunião, da Guadalupe, da Martinica e da Guiana. Em 2001, durante os debates em torno do reconhecimento da escravidão como um crime contra a humanidade, Christiane Taubira tentou, sem sucesso, convencer seus colegas deputados a criar uma comissão encarregada de refletir sobre compensações para os descendentes de escravos, em particular quanto ao acesso à terra e à propriedade, sempre muito concentradas entre os descendentes dos plantadores.

 

A injustiça mais extrema é, sem dúvida, o caso de Saint-Domingue, que foi a joia das ilhas escravistas francesas no século 18, antes de se revoltar em 1791 e proclamar sua independência em 1804 sob o nome de Haiti. Em 1825, o Estado francês impôs ao país uma dívida considerável (300% do PIB haitiano da época) para compensar os proprietários franceses pela perda de propriedades escravistas. Ameaçada de invasão, a ilha não teve outra escolha a não ser cumprir e pagar essa dívida, que o país arrastou como um grilhão até 1950, depois de muitos refinanciamentos e juros pagos aos banqueiros franceses e americanos.

 

O Haiti agora está pedindo à França que devolva esse tributo injusto (30 bilhões de euros hoje, sem contar os juros), e é difícil não concordar. Ao recusar qualquer discussão sobre uma dívida que os haitianos tiveram que pagar à França por querer deixar de ser escravos, quando os pagamentos feitos de 1825 a 1950 estão bem documentados e não são contestados por ninguém, e que se pratica ainda hoje compensações pelas espoliações que ocorreram durante as duas guerras mundiais, corre-se inevitavelmente o risco de criar um imenso sentimento de injustiça.

 

O mesmo vale para a questão de nomes de ruas e estátuas, como a do comerciante de escravos que foi recentemente derrubada em Bristol. Obviamente, nem sempre será fácil traçar a linha entre estátuas boas e ruins. Mas, assim como para a redistribuição de propriedades, não temos outra escolha senão confiar nas deliberações democráticas para tentar estabelecer regras e critérios justos. Recusar a discussão é perpetuar a injustiça.

 

Bem além desse debate difícil, mas necessário, sobre reparações, devemos também e acima de tudo olhar para o futuro. Para reparar a sociedade dos danos do racismo e do colonialismo, é necessário mudar o sistema econômico, tendo como fundamento a redução das desigualdades e a igualdade no acesso de todos à educação, emprego e propriedade (inclusive por meio de uma herança mínima), independentemente das origens, tanto para negros quanto para brancos. A mobilização que hoje reúne cidadãos de todo o mundo pode contribuir para isso.

 

*Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Aluisio Schumacher [postada no site Carta Maior]

 

Fonte: A Terra É Redonda | Publicado originalmente no jornal Le Monde.

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