Jornalista lança biografia de Luiz Melodia em agosto, três anos depois da partida do artista carioca
São Paulo – Luiz Carlos dos Santos nasceu respirando samba. Morro de São Carlos, bairro do Estácio, zona central do Rio de Janeiro, que viu nascer a primeira escola, a Deixa Falar. Eram os primeiros dias de 1951, 7 de janeiro. No final dos anos 1960, o adolescente compôs algumas letras, que ficaram na gaveta do tempo. Foi na década seguinte que ele acabou descoberto pelos vanguardistas da zona sul e explodiu definitivamente após ser gravado por musas da MPB. Ficou conhecido como Luiz Melodia.
Em 4 de agosto, quando se completam três anos de sua morte, o artista ganhará biografia. Meu nome é ébano – A vida e a obra de Luiz Melodia (Tordesilhas, 336 páginas) tem a assinatura do jornalista Toninho Vaz, que já contou histórias de Torquato Neto e Paulo Leminski, entre outros catalogados de “malditos”.
Melodia – sobrenome artístico herdado do pai, seu Oswaldo –preferia ser chamado de Luiz. Não gostava que o chamassem de “Melô”, como alguns faziam. Mas curtia o “Melódia” inventado pelo violonista Renato Piau, seu amigo. E com quem o próprio Toninho Vaz fez amizade, em 2003, quando estava escrevendo a biografia de Torquato, lançada 10 anos depois.
O poeta piauiense, por sinal, está muito presente na história de Luiz Melodia. Pode ser incluído entre os descobridores do jovem vistoso (1,79 metro) do Estácio. O biógrafo aponta o pioneirismo do artista plástico Hélio Oiticica, “o primeiro cara da zona sul, que não era do morro, a prestar atenção”. Já alertado por Rose, uma amiga em comum, Hélio chamou Torquato e o poeta Waly Salomão e deu o toque: “Vocês precisam conhecer um neguinho que tem lá no Morro de São Carlos”.
Discreto, desligado, rebelde
Luiz era discreto, arredio, sensível, desligado, meio rebelde. Teve relacionamento difícil com as gravadoras, o que ajuda a explicar a fama de “difícil” que o acompanhou vida afora. Toninho conta uma história que considera reveladora, quando o cantor foi convidado pela emissora a gravar a música Ébano para o programa Globo de Ouro.
Ao chegar no estúdio, ficou sabendo que o cenário era uma favela estilizada. Topou. Mas haveria cinco vedetes vestidas de gatas pretas, que o “arranhariam” enquanto ele cantasse. Recusou o roteiro, ficou esperando uma mudança que não aconteceu e foi embora. Tempos depois, diria: “Eles querem que eu faça coisas com as quais não concordo. Ninguém vai dirigir a minha carreira. Eu não sou apenas um cantor, sou um artista”.
Esse artista começou a ser conhecido em 1970. Rose levou uma turma para ouvir Luiz tocar no porão da casa do seu Oswaldo. No meio do grupo, Waly Salomão ficou impressionado. Particularmente, com uma música chamada My black, meu nego, inspirada por uma moça chamada Marlene. Mas implicou com o inglês no título e sugeriu que o autor mudasse o nome, que acabou sendo Pérola Negra. Waly apresentou Luiz a Gal Costa, e a história foi tomando seu rumo. Gal adorou Pérola Negra e encomendou mais uma música – e assim surgiu Presente Cotidiano, pouco tempo depois.
Rasgue a camisa, enxugue meu pranto
Como prova de amor mostre teu novo canto
Escreva num quadro em palavras gigantes
Pérola Negra, te amo, te amo
(…)
Tá tudo solto na plataforma do ar
Tá tudo aí, tá tudo aí
Quem vai querer comprar banana?
Quem vai querer comprar a lama?
Quem vai querer comprar a grana?
Detalhe: Presente Cotidiano, que seria incluída no novo espetáculo de Gal Costa, foi barrada pela censura. O biógrafo acredita que alguém cismou com o refrão “tá tão ruim, tá tão ruim”. Waly sugeriu, então, substitui-la por Pérola Negra. Por esses tempos, o jovem pernambucano Alceu Valença estava na plateia curtindo Gal. E lembra quando a cantora chamou para o palco “um negrinho magro e insinuante”.
Pérola Negra
No final de 1971, Gal começou os ensaios para um show que se tornaria um dos mais marcantes de sua carreira. Fa-Tal (Gal a todo vapor). O disco traz joias de autores diversos, como Fruta Gogoia, Charles Anjo 45, Como 2 e 2, Falsa Baiana, Antonico, Sua Estupidez, Dê um Rolê, Vapor Barato… E Pérola Negra. O registro ao vivo da então musa hippie é incendiária. A interpretação do autor, que viria apenas em 1973, é mais contida, suave.
Ainda antes desse disco de estreia, a presença de outra estrela vinda da Bahia impulsionou ainda mais o nome de Luiz Melodia. Em 1972, Maria Bethânia lançava o álbum Drama, produzido pelo irmão Caetano Veloso. Entre as faixas, lá estava Estácio, holly Estácio, que, como conta Toninho, o autor chamava de hino.
Se alguém quer matar-me de amor
Que me mate no Estácio
Bem no compasso, bem junto ao passo
Do passista da escola de samba
Do Largo do Estácio
Mais ou menos por essa época, Luiz Melodia estreou no palco. A estreia mesmo não aconteceu. Na primeira noite, ele e a banda tomaram todas no tradicional Adega Pérola, em Copacabana, onde também ficava o Teatro Opinião. Segundo relata Piau, quando eles se levantaram, tudo começou a girar. O baixista desmaiou. Em resumo, não teve estreia. Furioso, Torquato Neto fulminou o músico: “Você pode tocar com a Joan Baez e com o Bob Dylan, mas comigo você não trabalha mais”. Um dura que Piau jamais esqueceu. E nunca mais se atrasou para um trabalho.
O primeiro disco
As gravações para o primeiro LP de Luiz Melodia, que já nasceria clássico, foram entre dezembro de 1972 e janeiro do ano seguinte. Dez faixas já escolhidas, todas de autoria do estreante. Muitas participações especiais, como Robertinho Silva, Rildo Hora, Hyldon, Dominguinhos. O biógrafo conta que Luiz não gostou da mixagem final, por achar que sua voz ficou “escondida” entre os instrumentos. A famosa fotografia com o cantor dentro de uma banheira, cercada de feijões pretos, foi feita por Rubens Maia em um ferro-velho de Copacabana. Outras imagens foram captadas pelo bairro, na mesma tarde. Com o dinheiro, Luiz comprou uma motoneta. Uma parte deu para seu Oswaldo. Depois veio um Fusca, que ele destruiu pouco tempo depois, para comprar outro em seguida.
Luiz Melodia se tornaria um nome ainda mais conhecido em 1975, quando uma música da nova safra, Juventude Transviada, entrou para a trilha sonora da novela global Pecado Capital. Certamente, é uma das mais cantadas até hoje.
Lava roupa todo dia, que agonia
Na quebrada da soleira, que chovia
Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada
Uma mulher não deve vacilar
O livro traz várias histórias de relações amorosas conturbadas de Luiz. Da relação com a dançarina capixaba Beatriz Saldanha nasceu, em 1974, seu primeiro filho, Hiram, que ele só foi conhecer quase dois anos depois. Como a relação não andava nada bem, ela havia voltado para Vila Velha. Tempos depois, ele dedicaria Congênito ao menino.
Seriam 10 dias, foram sete meses
Um episódio decisivo aconteceu no início de 1977, e ganhou um capítulo inteiro do livro. O empresário Guilherme Araújo organizava o concorrido Festival de Verão de Itaparica, na Bahia. “Ele (Luiz Melodia) não estava na lista, não era artista convidado, ele foi porque já era amigo de todo mundo”, diz Toninho. Seriam uns 10 dias em Salvador. Tornaram-se sete meses. Tempo em que ele foi ficando e pedindo adiantamentos para uma desesperada gravadora. Um ano antes, havia lançado Maravilhas Contemporâneas. No seguinte, gravou Mico de Circo.
“Ele conhece a Jane Reis”, conta o jornalista sobre a temporada baiana do verão de 1977. “Eles se encontraram numa festa e não se largaram mais”, conta o jornalista. No caso, “não se largaram mais” não é força de expressão: Jane e Luiz ficaram juntos até a morte do artista. Em 1979, nasceu, no Rio, Mahal Reis dos Santos. O nome foi influenciado por uma das paixões de Luiz, o bluesman norte-americano Taj Mahal. Outro da sua lista de afeições musicais era o trompetista e cantor Chet Baker, especialmente na interpretação de My funny Valentine.
Toninho lembra que a principal formação de Luiz no início era a Jovem Guarda. Mais que Roberto, ele era fã de Erasmo Carlos. (Em 2010, realizaria um sonho ao cantar para ele Minha fama de mau, no programa Altas Horas, de Serginho Groisman.)
Fã de futebol também. Bom de bola, inclusive. “Gostava de ser o distribuidor do jogo, o cérebro no meio de campo”, conta Toninho no livro. Há relatos de uma vitória maiúscula contra o Politheama, time de Chico Buarque. E um episódio curioso, em que Luiz Melodia chegou embriagado para jogar, mas seus parceiros de time só perceberam com 10 minutos de partida. A bebida, sempre presente, causará danos severos à saúde de Luiz.
Vascaíno doente, ele ficou arrasado ao tomar conhecimento da morte do jogador Dener, em um acidente, em 1994. Jane conta que naquela noite ele nem conseguiu fazer sua apresentação. Na Copa de 2010, Luiz e banda estavam justamente em Amsterdã. Foi lá que assistiram o Brasil ser eliminado pela Holanda.
Racismo, violência, pé de valsa
Também era distraído de andar sem dinheiro e documentos. Uma vez não tinha um centavo para tirar o carro do estacionamento, e o responsável chamou a polícia. Passou por episódios de racismo e se entristeceu com a violência que, com o tempo, foi crescendo no seu Morro de São Carlos. Elegante, disse certa vez que também poderia ser estilista. E era reconhecido como pé de valsa.
Outro episódio de desentendimento com gravadora surgiu logo depois do primeiro LP. Pressionaram para que ele logo gravasse outro, e apenas de sambas. “Ele teve um desconforto com isso, se recusou, e aí vem aquela fama dele de maldito”, conta o jornalista, para quem Luiz teve uma relação “um tanto tumultuada” com o samba. Irão se reconciliar bem mais tarde. Em 2007, o artista grava Estação Melodia, quase todo com canções de outros atores. Dele mesmo, só Nós Dois, parceria com Piau.
No livro, o autor conta que o pai de Luiz gostava de música, tocava e compunha, adorava Jair Rodrigues, mas, devoto da Igreja Batista, proibiu o filho e as irmãs de frequentar a quadra da escola de samba – carnaval, jamais. (Ele e dona Eurídice tiveram quatro filhos: Luiz Carlos, Marize, Raquel e Vânia.) Em 1991, Luiz gravou Maura, samba de autoria de seu Oswaldo, que já tinha morrido. Dedicou Estação Melodia ao pai, além de Waly Salomão.
O “barbeiro” Tim Maia
O autor, que entrevistou 64 pessoas para o livro, traz histórias saborosas, engraçadas, tristes. Narra, por exemplo, a insistência de Tim Maia para cortar o cabelo do amigo, que nunca mais deixou de ter falhas. Ou um encontro inusitado, de Luiz com o poeta mato-grossense Manoel de Barros.
Plantas desejam a minha boca
Pra crescer por cima
Sou livre
Para o desfrute das aves
Dou meiguice aos urubus
Sapos desejam ser-me
Quero cristianizar as águas
Já enxergo o cheiro do sol
Aconteceu quando Piau conheceu a artista plástica Martha, filha de Manoel, com quem viveu durante quase duas décadas. O músico notou semelhanças entre o estilo do poeta e do compositor. Presenteou o amigo Luiz com o livro Retrato do artista quando coisa – que se tornaria nome de um disco lançado em 2001 “Manoel de Barros e Luiz Melodia, guardadas as devidas proporções tinham algo em comum como poetas de versos de fácil construção e belíssimas resoluções”, escreve Toninho, que o define como “um letrista de formação naïf, sem estudo rebuscado, que compunha com facilidade”. Jards Macalé afirma que Luiz tem um timbre de voz “tão magnífico quanto o de Milton Nascimento”.
Na discografia reunida no livro, aparecem 18 álbuns, sendo quatro ao vivo e dois póstumos. No total, foram 13 discos de estúdio gravado. De acordo com Toninho, o artista compôs 146 músicas. Em entrevista de 2001 para a revista Trip, queixou-se de não ter o devido reconhecimento, talvez apenas no início da carreira. “Durante um tempo, pode ser até que esteja enganado, fui boicotado. Não recebi muita atenção das gravadoras por onde passei. Tenho uma obra que não é muito extensa, mas acho que merecia muito mais atenção.”
Último álbum de Luiz Melodia
Seu último álbum, Zerima, foi gravado em 2013 e lançado no ano seguinte. É um anagrama com as sílabas que formam o nome de uma de suas três irmãs, Marize, que morreu em 2009. Luiz não lançava um disco de inéditas havia 13 anos. “Eu não tinha uma seleção que fosse legal, que me fizesse entrar em estúdio. Não abro mão do rigor”, comentou na época. Em uma das faixas, uma versão pop rap de Maracangalha, de Dorival Caymmi, canta com o filho Mahal. Moça Bonita é de Jane Reis.
Em 10 de junho de 2016, Luiz apresentou-se em Jaú, no interior paulista. Tudo correu bem, mas ele se sentiu mal durante o voo de volta ao Rio. Ficou dois dias em casa, abatido, até que foi com Jane ao hospital. Depois de consultas e exames, o diagnóstico foi de mieloma múltiplo, ou câncer de medula.
Tratamento pesado: quimioterapia, transfusões de sangue, até o transplante de medula, em maio de 2017. O quadro se agravava com uma lesão hepática, consequência do consumo de álcool. Havia completado 66 anos em 7 de janeiro. Teve períodos de melhora, mas o estado permaneceu grave, até que Luiz partiu, na madrugada de 4 de agosto, uma sexta-feira. Um pouco antes, Jane recitou Manoel de Barros. No celular, fez com que ele ouvisse My funny Valentine. O velório foi realizado na quadra da Estácio.
Biografias
Com 72 anos, especializado na área musical, o jornalista Toninho Vaz escreveu biografias de Leminski, Torquato, Zé Rodrix e sobre o Solar da Fossa, lendário casarão no Rio que abrigou artistas no anos 1960. Em comum, um atração por certo aspecto “marginal” da arte. “Sou filho disso”, explica. “A gente lidava com a chamada poesia marginal, aquela coisa não acadêmica e não estruturada em burocracias literárias e culturais. É minha turma.”
Paulo Leminski – O bandido que sabia latim segue com circulação proibida, por imposição da família, desde a quarta edição. “Continuo sob censura. Não há justificativa, a não ser que sejam aquelas que estejam debaixo do tapete”, lamenta Toninho. Ele repete uma frase: uma escritora (referindo-se a Alice Ruiz, viúva do poeta curitibano) fazer censura a livros é crime hediondo.
Em depoimento para o livro, o jornalista Joel Macedo disse que Luiz Melodia, com “raiz e tradição”, inventou o samba-blues carioca. Desceu o morro, fascinou ambientes intelectualizados. Um “negro gato genial” e sem precedentes na MPB. Zezé Motta, a cantora que mais gravou suas composições – como Dores de Amores –, contou que uma vez uma repórter comentou que ela deveria ser quem mais entendia da obra dele. Ao que Zezé respondeu, rindo e citando a letra “louca” de Fadas: “Às vezes eu não entendo, mas adoro!”.