O direito internacional define genocídio como “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
Por Nkechi Taifa | Tradução de César Locatelli
Há mais de 100 anos, a W. E. B. Du Bois previu que “o problema do século XX seria o problema da linha de cores” [O termo ‘color line’ é usado nos EUA para designar a segregação racial]. Seu prognóstico foi audacioso quando proferiu essas palavras, mas o sentimento hoje assume um caráter mais ameaçador. O problema do século XXI é o problema do genocídio. A enormidade do problema sugere que, mesmo termos como “preconceito racial” ou “injustiça racial”, são muito limitantes.
No ambiente de hoje, está ficando mais fácil falar sobre injustiça racial. Falamos sobre racismo sistêmico, mas o que deveríamos estar pensando e falando é o possível extermínio de um povo. Isso ocorre porque os Estados Unidos suplantaram as leis de Jim Crow e o viés inconsciente em seu sistema de punição criminal para o que eu chamo de “genocídio institucionalizado”. Esta é uma sentença compreensivelmente controversa, mas representa uma estrutura científica que nos permite analisar condições e caracterizar adequadamente o que está acontecendo com os negros no século XXI, ostensivamente através do sistema jurídico criminal.
Portanto, o impacto total do sistema mais amplo de punição criminal pode e deve ser examinado. O genocídio institucionalizado oferece uma estrutura analítica para entender o tratamento destrutivo sistêmico direcionado aos negros. Embora o genocídio pareça para muitos denotar singularmente assassinatos por meio de massacre e aniquilação, sua definição também inclui a criação de “condições de vida calculadas para causar destruição, no todo ou em parte”. Infelizmente, raramente as pessoas examinam os parâmetros adotados internacionalmente do termo genocídio e depois os comparam com o tratamento dos negros nos Estados Unidos pelo sistema jurídico criminal. Se alguém o fizer, o genocídio patrocinado pelo Estado contra os negros, particularmente no que se refere a assassinatos policiais, é pelo menos plausível, se não inegável.
Devemos questionar por que Philonise Floyd, o irmão de George Floyd, foi às Nações Unidas para obter justiça. Foi porque ele não acreditava que poderia obter a responsabilização aqui nos Estados Unidos? Da mesma maneira que ele buscou a arena internacional para socorro, os negros também devem procurar usar o direito internacional em torno do genocídio nos tribunais dos EUA como um meio de prevenir e punir a violência policial e o abuso de nossas comunidades.
Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção Internacional para Prevenir e Punir o Crime de Genocídio. Ele afirmou que, cometido em tempos de paz ou guerra, o genocídio é um crime sob o direito internacional. O direito internacional, conforme descrito pelas Nações Unidas na Convenção de Genebra, define genocídio como “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Essas ações incluem “matar membros do grupo; causar sérios danos corporais ou mentais aos membros do grupo; infligir deliberadamente ao grupo as condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial; impor medidas destinadas a impedir nascimentos dentro do grupo; transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.”
Nos termos da Convenção, o genocídio não é o único ato punível. Atos relacionados – como conspiração para cometer genocídio, incitação direta e pública a cometer genocídio, tentativa de cometer genocídio e cumplicidade sob sua autoridade – também são puníveis. A definição internacional de genocídio nos lembrou que aqueles que cometerem genocídio ou atos relacionados serão punidos, sejam eles governantes constitucionais, indivíduos particulares ou funcionários eleitos. Os Estados Unidos levaram 38 anos a partir do momento da primeira audiência para ratificar a convenção. Acredito que o atraso estava enraizado no medo de que os afro-americanos usassem o tratado a seu favor. Os segregacionistas acreditavam que a ratificação do acordo sujeitaria os Estados Unidos a punições com base em seu tratamento aos povos indígenas e negros.
A convenção sobre genocídio foi aprovada em 1948 e, em 1951, W. E. B. Du Bois e outros apresentaram às Nações Unidas uma petição fortemente documentada, descrevendo o sofrimento genocida, ataques mentais e crimes contra a humanidade infligidos ao povo negro. Esses relatos foram detalhados no livro We Charge Genocide.
A Convenção sobre Genocídio estabeleceu um recorde por ser o tratado não militar mais minucioso a ser considerado pelo Senado dos EUA. A audiência ocorreu durante 13 dias e a transcrição tinha mais de 2.000 páginas, de acordo com Stephen Klitzman, presidente de um comitê da American Bar Association [a associação que congrega advogados nos EUA] que registrou a história do processo de ratificação da Convenção do Genocídio. Quatro décadas após sua adoção pelas Nações Unidas, e em meio à crença de que o progresso dos direitos civis enfrentava desafios, o Senado dos EUA finalmente consentiu em ratificá-la em 1988.
O que é significativo é que é o único tratado internacional de direitos humanos adotado pelos Estados Unidos que se auto-executa, o que significa que tem a capacidade de ser diretamente aplicado em tribunal do país. A Convenção contra a Tortura, a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial e outras são, em grande medida, gestos simbólicos da forma aplicada nos EUA, pois exigem a adoção de legislação específica para sua aplicação. De fato, a legislação que implementa a Convenção contra a Tortura limita seu alcance a ações civis contra alguém que atue com poder oficial contra uma nação estrangeira ou atos de tortura cometidos fora do país.
Como já existe legitimidade para punir os autores de genocídio nos EUA, por que não estamos considerando essa lei como base para processos judiciais e ações legais contra os órgãos para o cumprimentos da lei nos governos estaduais e órgãos federais? Com base na definição de genocídio, podemos argumentar que os EUA são culpados de genocídio contra negros.
Há um aumento de policiais assassinos que atacam negros, incluindo crianças. O mundo está chocado com os assassinatos horríveis, injustificados e desproporcionais, violência e abuso de pessoas negras pelos órgãos responsáveis pelo cumprimento da lei. Esses casos constituem uma violação do artigo 5 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que garante “o direito à segurança da pessoa e à proteção do Estado contra a violência ou danos corporais, infligidos por funcionários do governo ou por qualquer indivíduo, grupo ou instituição.” Da mesma forma, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Artigo 9, garante o “direito à liberdade e à segurança da pessoa”, e o Artigo 14 garante “a igualdade perante os tribunais”. Esses tratados, no entanto, ratificados pelos EUA em 1994 e 1992, respectivamente, são limitados, pois cada um deles inclui, ao assinar uma declaração de que as disposições não seriam passíveis de ação na lei dos EUA, sem legislação para sua implementação, entre várias outras disposições limitantes.
Nossos ancestrais foram (e, em alguns casos, continuam sendo) vítimas de sequestro e escravização, aluguel de condenados, Jim Crow, linchamento, redlining [negação de serviços públicos, e outros, para territórios onde moram negros], disparidades educacionais e de saúde e encarceramento em massa. Cada um desses atos são violações dos direitos humanos que nunca foram sanadas. Experimentamos o trauma de casos como Oscar Grant em Oakland, Trayvon Martin na Flórida, Sandra Bland no Texas, Freddie Gray em Baltimore, Akai Gurley no Brooklyn, Breonna Taylor no Kentucky e Ahmaud Arbery na Geórgia à lista aparentemente interminável de negros mortos por brancos que operam sob a ‘cor da lei’ [o termo ‘color of law’ refere-se a o que tem somente a aparência de de direito legal].
Em 1951, assassinatos extrajudiciais de negros foram enquadrados sob a bandeira do genocídio, e esse quadro deve ser ressuscitado hoje. Afirmo que não há outra maneira de realmente examinar os assassinatos sistemáticos e rotineiros de negros em todo o país, além do genocídio. Se não levarmos a sério a matança de negros e responsabilizarmos os policiais assassinos, toleraremos conscientemente a eliminação de gerações de negros pelo Estado.
Advogados e defensores devem ir aos tribunais e usar as disposições da Convenção sobre Genocídio para acusar aqueles que tentam destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico ou racial de pessoas. Os assassinatos policiais sob a ‘cor da lei’ e as condições prejudiciais da vida que afetam negativamente as gerações constituem um genocídio – a crise dos direitos humanos que a América Negra do século XXI enfrenta. Aqueles que cometem genocídio devem ser responsabilizados.
Fonte: Carta Maior – Publicado originalmente em ‘Truthout‘ | Imagem: Junião, Ponte Jornalismo.