Antenor Firmim: Contra Gobineau, antes de Cheik Anta Diop e com José Martí e Fernando Ortiz

Por Marcio Farias*.

Que esse livro possa ser refletido e possa contribuir para acelerar o movimento de regeneração que realiza minha raça de baixo do seu azul e claro das Antilhas.

Que possa inspirar a todos os filhos da raça negra, dispersos na terra imensa, ao amor e progresso, a justiça e a liberdade! Dedico ao Haiti, dedico-o à todos eles, aos deserdados do presente e aos gigantes do futuro . Antenor Firmim, Igualdade das Raças Humanas (1885).

As tarefas de toda nova geração de militantes passa pela recuperação de certas tradições, estratégias e táticas no campo politico, como também toda uma literatura, antigos autores que dão conta de novos temas. Ou melhor, velhos temas que se apresentam como novos e que foram debatidos ao seu modo, por outras gerações, mas que ainda servem de orientação para os novos militantes. Aqui estamos no terreno dos clássicos e, tal como define Ítalo Calvino: “Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer”[1].

O enfrentamento ao racismo no mundo contemporâneo exige da geração atual uma ampla capacidade de articulação. Beber na fonte dos mais velhos, para não querer inventar a roda, mas, ao mesmo tempo, coloca lá para rodar diante das novas veredas e caminhos a serem percorridos. Nesse sentido, a obra de Antenor Firmim(1850-1911) urge em se tornar parte da bibliografia de referência para a nova geração da militância antirracista brasileira. Conforme Machado de Assis ” O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assunto remotos no tempo e espaço.”[2] Essa é a melhor descrição para o legado teórico desse haitiano que escreveu sobre temas de seu tempo, fez embates que o colocaram como uma grande referência teórico para seus contemporâneos, ainda que sua obra atravesse o tempo e ainda tenha valor teórico no século XXI.

Seu texto mais importante é Igualdade das Raças Humanas[3](1885) um clássico! A obra surgiu como resposta ao texto Ensaio sobre as desigualdades das raças humanas(1855) escrita pelo eugenista francês Arthur de Gobineau(1816-1882). Para contrapor o ideário do grande mentor do pensamento racista do século XIX, Firmim, neste grande ensaio, discute temas como: 1) As bases teóricas de uma antropologia não eugenista, antecipando temas depois discutidos pelo pai da antropologia cultural, Franz Boaz; 2) O debate sobre miscigenação e a falta de base cientifica da discussão sobre degeneração das raças; 3) as bases sócio culturais de sociedades não europeias e suas contribuições para o conhecimento universal. Aqui antecipa um debate que entre nós ficou consagrado pelos escritos de Cheik Anta Diop (1923-1986): A civilização egípcia como sociedade negro africana. Sendo rigoroso, esse tema do Egito enquanto civilização de origem africana já era debatida por historiadores desde a Grécia antiga. Alias, a relação entre Africanos e Europeus anterior ao processo colonial é amplamente documentada. Inclusive, destaca se que na Europa medieval e renascentista a identificação que os nativos tinham sobre pessoas de pele escura eram distintas das que ocorrerá nos séculos seguintes, conforme Hall (2017, p. 28): “Na Espanha e Portugal medievais, pessoas de pele escura era muitas vezes identificadas como conquistadoras e governantes, não como escravos”. [4]

Mas de fato, o discurso histórico colonial e neocolonial destituiu essa discussão e consagrou uma histórica única da Europa como universal. Ao fim e ao cabo, o fator de destaque das contribuições de Firmim e Diop são as bases contemporâneas da discussão do Egito negro e africano, as características de seus estudos, bem como o método e a estrutura de suas respectivas contribuições para o tema. Em ambos, temos um estatuto teórico, com ampla margem daquilo podemos chamar de ciência moderna.

A circunstância de sua escrita se deu diante do processo de formação do Estado Moderno no século XIX. Nesse sentido, os intelectuais buscavam refletir sobre como uma série de diversidades e conflitivas sociais – classe, gênero, regiões, culturas, etnias/raça – poderiam ter algum nível homogeneidade para a efetivação unidade nacional, seja pela exclusão ou pela inclusão. Emerge assim a ideia moderna de povo, uma categoria que unifica as mais diversas contradições para a emergência do Estado moderno. Sobre esse processo, Hobsbawm[5] (2013) comenta:

(…) o que caracteriza o povo-nação, visto de baixo, era precisamente o fato de ele representar o interesse comum contra os interesses particulares e o bem comum contra o privilégio, como na verdade é sugerido pelo termo que os americanos usaram antes de 1800 para indicar a existência de nações, embora evitassem a própria palavra (Hobsbawm, 2013, p. 33).

Na Europa, em geral, os Estado-Nações modernos surgem como resposta ao antigo regime, em que as noções de privilégios se ratificavam na expressão ideo-jurídica do Estado Absolutista. O ideal liberal forja, nesse sentido, uma nova configuração que se propõe enquanto universal, diante dos antigos privilégios. Nasce a noção de indivíduo dotado de direitos iguais, independente das contradições e classe que persistem na nova configuração social:

O problema diante de nós deriva do fato de que a nação moderna, seja um Estado ou um corpo de pessoas que aspiram formar um Estado, difere em tamanho, escala e natureza das reais comunidades com as quais os seres humanos se identificaram através da história, e colocam demandas muito diferentes para estes. A nação moderna é uma comunidade imaginada (Hobsbawm, 2013, p. 33).

Na América Latina, esse processo de formação do Estado Nação moderno terá especificidades, sobretudo, no que diz respeito à ideia de povo, uma vez que a população da região era de “não europeus”. Durante todo o século XIX, o debate se dará em torno da inclusão, exclusão ou assimilação dos ex-cativos indígenas e africanos. A ideologia do racismo ganha maiores adeptos entre os intelectuais representantes das elites locais. Domingo Faustino Sarmiento Albarracín (1811-1888) é um grande exemplo desses intelectuais latino-americanos adeptos das ideias que distinguia a humanidade entre civilização e barbárie. Intelectual e politico, destacado romancista na Argentina, escreveu “Facundo – Civilización y Barbarie” (1845) e “Conflicto y armonías de razas en América” (1883), entendendo os indivíduos de cor como entraves para a modernização na nação argentina. E aqui Joseph Anténor Firmim foi sem dúvida uma das vozes destoante que, no século XIX, rebateram a ideia de raças humanas:

Quão orgulhoso eu ficaria se todos os homens negros e seus descendentes estivessem convencidos ao ler este livro que têm o dever de trabalhar, para melhorar continuamente a si mesmos para livrar sua raça do que é injustamente imputado a eles e que por tanto tempo abateu. Quão feliz meu país me veria – que eu amo e venero infinitamente por seus próprios infortúnios e sua laboriosa existência – em entender no final que ele tem uma tarefa muito especial e delicada a cumprir: a de mostrar ao mundo inteiro que todos os homens, negros ou brancos, são iguais para suas causalidades e para direitos! Tenho uma convicção profunda: uma esperança viva e brilhante me disse que esse desejo se tornará realidade (Firmim, 2013(1885), p. 7) (Tradução Livre).

Firmim teve grande influência sobre outro grande nome do pensamento social latino-americano, José Martí (1853-1895), que também rechaçou a ideia de raça como atributo de inferioridade biológica:

A palavra “racista” está se tornando uma palavra confusa, que é preciso esclarecer. O homem não tem nenhum direito especial pelo fato de pertencer a uma ou outra raça: diga-se homem, e já se dizem todos os direitos. O negro, por negro ser negro, não é inferior nem superior a nenhum outro homem; peca por redundante o branco que diz: “minha raça”. Tudo o que divide o branco os homens, tudo o que os especifica, os afasta ou os encurrala, é um pecado contra a humanidade (Martí, 1983 (1892) p. 229).

Em seu famoso ensaio “Nuestra América” (1891), Martí já havia enunciado a proposta de superação da raça como elemento fundante do processo de independência cubano, mas que se estenderia a toda América Latina, partindo da recuperação do passado latino-americano antes da colonização como elemento unificador da formação identitária latino-americana. A formação social latino-americana teria como bases à contribuição indígena, africana e europeia, e em igual escala de importância. Em alguma medida, o humanismo de Martí antecipa o debate que no Brasil se dará nos idos dos anos de 1930.

Rene Deprest (1926 -) no seu célebre ensaio Bom dia e adeus à negritude(1980)[6] afirma que as contribuições de Firmim antecipam todo o debate sobre relações raciais empreendidos pela Unesco na metade do século XX, com a diferença de que já afirmava, ainda no século XIX, que as diferenças raciais eram forjadas enquanto ideologia para justificar a exploração do homem pelo homem.

Os cientistas sociais Jean Maxius Bernard e Luis Toledo Sande também apontam os desdobramentos teóricos da obra de Firmim em obras como a do eminente sociólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1961) e toda sua elaboração sobre as influencias africanas na formação social de Cuba.

Em suma, Firmim escreveu contra Goubineau, antecedeu Cheik Anta Diop, e subsidiou autores e lideranças politicas latino americanas como José Martí e Fernando Ortiz em fins do século XIX e inicio do século XX. Foi um arauto da luta antirracista internacional e certamente tem muito a dizer ao movimento negro brasileiro.

 

*Marcio Farias é mestre e doutorando em Psicologia Social na PUC-SP. Coordenador do Núcleo de Extensão e Rede do Museu AfroBrasil. Professor convidado do Celacc (Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação) Eca/ USP. Membro do colegiado do Instituto Amma Psique e Negritude. Membro de Comissões de Avaliação de Ações Afirmativas em Concursos Públicos para a Fundação Carlos Chagas.

 

Referencia Bibliográfica

 

FIRMIM, Antenor. Igualdad de las razas humanas: Antropologia positiva. Havana: Editorial de Ciências Sociales, 2013.

HALL, Gwendolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas Américas: restaurando os elos. Petrópolis:Vozes, 2017.

HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

MARTÍ, JOSÉ. Nossa América. São Paulo: Hucitec, 1983.

 

[1] CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. [2] ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In:______. Obra completa em quatro volumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 3. [3] Tradução livre. [4] HALL, Gwendolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas Américas: restaurando os elos. Petrópolis:Vozes, 2017. [5] Hobsbawm( 2013) assinala na introdução deste livro que se trata de um estudo sobre as formações das nações na Europa e que há grandes diferenças para pensarmos as mesmas formações em outras regiões do mundo em que outros fatores são determinantes do processo. [6] DEPESTRE, René. Bom-dia e adeus à negritude. In http://www.ufrgs.br/cdrom/depestre/depestre.pdf. Acessado em 04 de março de 2017.

Fonte: Nepafro.

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