Por Rafael Mantovani
Para você que é contra as cotas há aqui algumas certezas que você pode ter, separadas por itens, para explicar por que você está enganado.
Há algum tempo, um movimento contrário às políticas afirmativas tem tomado forma no Brasil. Um revisionismo historiográfico e sociológico, que ignora pontos importantíssimos de interpretação para a compreensão do quadro geral, apresenta-se como nova verdade a respeito do passado com a pretensão política de desqualificar os movimentos sociais e as políticas de reparação. Como resultado disso, temos alguns fenômenos estranhíssimos, como a ideia de “racismo reverso”, as lideranças negras tendo a todo momento que “explicar” sobre os tais “escravos de Zumbi” e outras demonstrações conservadoras contra outros tipos de políticas afirmativas, como a “marcha do orgulho hétero”, que hoje ainda é insignificante, como um dia foram insignificante as manifestações fascistas no país que os progressistas ignoraram, mas que, em 2018, ganharam as eleições. Essas opiniões, que têm sido gestadas desde a primeira década dos anos 2000, hoje já estão bastante popularizadas e vão de boca em boca, de mensagem de Whatsapp em mensagem de Whatsapp, com a clareza que a direita espera que a ideia tenha para se espalhar facilmente.
Assim, o debate sobre questões espinhosas perde a profundidade e passa a ser feito mais com as emoções do que com a razão. E, para você, que é contra as cotas, mas nunca conseguiu perguntar para quem é a favor delas os seus motivos: há aqui 11 certezas que você pode ter, separadas por itens, para explicar por que você está enganado.
Alguns pressupostos:
O racismo é estruturante na sociedade, o que significa dizer que ele tem o poder de dar formas específicas à economia, à política e, mesmo, às estruturas de pensamento com os seus conteúdos, ou seja, a subjetividade: a sua e a minha. Vivemos em uma sociedade racializada e racista e, portanto, estamos todos sujeitos aos seus efeitos. Dizer que o racismo é estruturante também do pensamento significa dizer que certos raciocínios ou preferências estéticas podem ser orientados por um viés racista. O racismo ser estruturante significa que há incentivos sociais para que você pense que, sim, raça define habilidades intelectuais e físicas, que raça define predisposições para isso ou aquilo, que existiria certa hierarquia no que diz respeito à moralidade, à beleza etc. O que é comprovadamente uma inverdade, de acordo com todos os campos do saber que pensaram essa questão.
Vamos às questões.
Se “orgulho negro” não é racista, por que “orgulho branco” seria?
No campo da lógica, o pensamento até pode parecer razoável. Afinal, se uma pessoa pode se orgulhar das suas características físicas, por que uma pessoa com outras características não poderia? Para entender isso, é necessário compreender em que contexto surgem esses discursos e a que eles servem.
O racismo no ocidente é uma invenção dos brancos europeus ou descendentes de europeus. A ideia de colocar as raças hierarquicamente para justificar a dominação de umas sobre outras apareceu cientificamente no século XIX e prosseguiu até o começo do século XX. Tratou-se de uma teoria fortemente legitimada por europeus com o objetivo de exploração econômica decorrente da colonização, o que envolvia a universidade, a ciência, as empresas, o Estado, tudo: uma sociedade inteira que construiu e legitimou determinadas teorias para justificar seus privilégios políticos, econômicos, simbólicos etc.
As reflexões que se pautaram nessa justificativa não resistiram à análise posterior das suas hipóteses e foram totalmente desacreditadas uma a uma. Contudo, os efeitos sociais dessas crenças permanecem de alguma forma, em níveis mais ou menos conscientes, nos noticiários, nas narrativas cotidianas, nas propagandas de cosméticos e até em material escolar. Ou seja, na nossa sociedade, os brancos sempre tiveram e continuam tendo visibilidade. Os elementos considerados bons dos brancos são sempre ressaltados, seja alguma habilidade intelectual, certa virtude moral. Os brancos precisam se esforçar muito pouco para terem qualidades reconhecidas. E quando há algum “desvio” na sua conduta, a explicação é sempre que alguma coisa terrível lhe aconteceu e todo mundo sente pena. É o exemplo do irmão da Suzane von Richthofen ou da modelo (branca) Loemy Marques (ambos com problemas de vício em crack), por quem Rodrigo Faro se compadecia em seu programa e queria ver recuperada. Ela, e apenas ela a ser recuperada, no meio de um mar de viciados que habitam as ruas da cidade de São Paulo. Isso ocorre porque existe um mecanismo de apresentação dos problemas sociais (crime, vício etc.) que tende a nos fazer perceber a humanidade apenas dos brancos, enquanto a miséria, a fome e a desgraça dos negros são naturalizadas.
Raça foi uma invenção dos brancos para submeter outras populações com uma gigantesca dose de violência física, política, econômica, simbólica e psicológica. Essa violência gerou a crença de que os brancos seriam mais aptos, mais inteligentes, mais morais, mais belos. Quando um branco diz orgulhar-se de ser branco, poderíamos perguntar qual parte da sua branquitude ele se orgulha. É a pele branca? É o cabelo liso? É a moralidade? A inteligência? Note que qualquer perscrutação desse orgulho não tem como cair em uma justificativa que não seja racista, pois reitera uma pretensa superioridade branca em algum quesito sobre outras raças.
O orgulho negro aparece em outro contexto, com outros objetivos e – o mais importante – como resposta ao racismo criado por brancos. À ideia de que os negros seriam inaptos, burros, imorais, feios, surgiram importantes movimentos de combate que tiveram como estratégia a inversão do discurso branco: ao contrário do que dizem os brancos, os negros são aptos, inteligentes, morais e belos. Da parte dos brancos, havia (e há) uma visão pautada na raça para desqualificar determinada cor da pele, determinados tipos de cabelo e feições faciais que não se parecessem aos seus próprios atributos físicos. Portanto, dizer o contrário disso, dizer que a pele negra é bonita, levantar o cabelo black power e insuflar a cultura negra não se trata de outra coisa senão uma resposta à hierarquia racial imposta por brancos. Trata-se da tentativa de recuperar uma autoestima destruída pelo racismo. Autoestima que um branco nunca deixou de ter pelo fato de ser branco. Mesmo que você tenha sido chamado de branco ou branca azeda, isso não afetou a vida dos brancos em nada, porque você não foi essencializado dessa forma ou, em outras palavras, entendido socialmente unicamente por meio de um pretenso azedume branco.
Resumindo: orgulho branco é O racismo. Orgulho negro é uma resposta ao racismo.
Os negros também escravizaram, portanto, não existe dívida histórica por parte dos brancos.
A rigor, não. “Negros” é uma classificação exterior à África. Não havia uma identidade que unificasse os povos africanos. Mas podemos afirmar que pessoas de pele escura, da África, escravizaram outras pessoas de pele escura, também da África.
Dito isso, sim: diversos agrupamentos sociais escravizaram outros agrupamentos sociais. Na África também. A Mauritânia, por exemplo, aboliu oficialmente a escravidão apenas em 1981, mas ela segue por lá, como segue por inúmeros cantos do planeta. A pergunta é: qual é a justificativa para a escravidão na Mauritânia? Caso um dia a Mauritânia reflita sobre os problemas trazidos pelo seu processo específico de escravidão e queira cogitar uma política de reparação, a discussão talvez não passe pela questão da raça.
Novamente, a história é importante para entender o equívoco de um raciocínio essencialista. No discurso essencialista, “os negros” também escravizaram e, portanto, não poderiam arrogar-se do papel de vítimas da escravidão. Ora, nessa linha de pensamento, teriam sido “os brancos” grandes justiceiros “contra a escravidão” ao escravizar “os negros”? De forma alguma. Aliás, esse pensamento se assemelha ao etnocentrismo católico que se justificava afirmando que escravizar aquelas populações consideradas bárbaras e infiéis seria a melhor coisa que lhes poderia acontecer.
Pois bem: a nossa escravidão sim teve como prisma justificativo a raça. A sua justificativa era racial. Portanto, aqui, tratou-se de uma política de exploração econômica por meio da violência de brancos sobre negros e indígenas e que deixou fortes e notórias consequências até os dias de hoje: a sociedade brasileira não foi uma sociedade com escravos, foi uma sociedade escravista, ou seja, a sua economia dependia da escravidão, portanto, a sua dimensão é um fator importante a ser levado em conta.
Neste item, alguns raciocínios aparecem como consequência daquele primeiro. Vamos a dois deles.
– “Mas os negros entregavam uns aos outros na África.”
Sim, uma parcela “dos negros” desembarcados no Brasil era de negros capturados por outros e trocados por armamento levado pelos portugueses (e por holandeses também que, durante um pequeno período, trouxeram negros escravizados para a região nordeste do Brasil). Trocar inimigos por armas significava maior poderio em duas frentes: diminuição do contingente inimigo e maior poder bélico. Portugueses se aproveitaram de rixas locais para que as tribos capturassem e entregassem seus inimigos para serem trazidos à América. Conflitos tribais envolveram violências de umas contra as outras e geraram sofrimento em algum grau. Isso é uma coisa. Outra é a globalização da escravidão, aliás, de uma escravidão específica, que é a de europeus sobre africanos, para conseguir a força de trabalho para dominar a América. Domínio que, de um lado, dependia desse transporte forçado – ou seja, sequestro em massa – de africanos para a América e, de outro, que resultou na morte de cerca de 70 milhões de indígenas do continente americano só de 1500 a 1600. Isso não é um sofrimento localizado, é uma hecatombe.
– “No Brasil, escravos libertos compraram escravos”.
É verdade. Tratava-se de uma sociedade escravista pautada economicamente na violência. Os escravos libertos que compraram outros escravos estavam fazendo o que todos eram impelidos a fazer, pois o funcionamento social estava condicionado a isso e, portanto, condicionava a isso: como já dito, não era uma sociedade com escravos, era uma sociedade escravista. A existência e a permanência de uma sociedade escravista pautada na raça não são consequências da atitude desses escravos libertos, mas de uma estrutura social pensada e implantada pelos portugueses em solo americano com o trabalho forçado de negros e indígenas.
A questão central é a forma e a dimensão da escravização europeia: não se tratava apenas de pequenas sociedades conquistadas depois de uma guerra, mas sim, de uma gigantesca mercantilização dos corpos negros, de mais de 14 mil viagens de captura e manutenção em cativeiro dessas pessoas durante mais de três séculos, da estrutura montada que em nada se parece com as escravizações que havia até então, pois desgraçou milhões de vidas por séculos e cujos efeitos ainda estruturam a sociedade atual.
Zumbi tinha escravos.
Não há nenhum documento que indique isso, embora essa afirmação tenha sido feita por alguns sociólogos e historiadores com importantes trabalhos nas suas áreas e por alguns outros jornalistas oportunistas. Só que a história é contada por meio do que está documentado. O que, sim, é completamente correto de se afirmar é que os quilombos não eram sociedades escravistas como era a sociedade brasileira daquele momento, ou seja, uma sociedade que é economicamente movida pela escravidão.
A afirmação de uma possível escravidão dentro do quilombo, símbolo da liberdade, é devido ao espanto ao se descobrir que havia níveis de liberdade dentro dele, pois havia uma rígida hierarquia. E esse espanto acontece graças a um anacronismo impressionante, porque uma vez em que falamos de liberdade, nós já imaginamos que, se é livre, precisa ser uma comunidade hippie dos anos 1970, senão não pode ser considerada uma comunidade livre. Isso era impossível por algumas razões.
A primeira delas é óbvia: estamos falando do século XVII. As sociedades europeias e africanas transplantadas ao Brasil tinham fortes hierarquias. Os quilombos eram sociedades do seu tempo e, portanto, com práticas sociais comuns a inúmeras sociedades daquela época, com as suas divisões e hierarquias. Não podemos transplantar a ideia que temos hoje de liberdade para aquele momento.
Em segundo lugar, eram africanos em luta constante pela sua liberdade. Ou seja, libertar-se do cativeiro português e poder viver de acordo com os modos de vida que estavam acostumados antes pressupunha uma forte organização militarizada: ela foi um aspecto importante para a longevidade desse quilombo.
– “Eles devolviam alguns escravos para os seus senhores.”
O quilombo tinha relações com o seu entorno, não era uma ilha incomunicável. E eles queriam, acima de tudo, manter a sua liberdade com relação à sociedade escravagista. Contudo, como já afirmado acima, não existiam “os negros” no século XVII. Nós tendemos a olhar para o passado e supor que Zumbi ligaria o celular pela manhã e receberia as notícias com as novidades sobre o tráfico vindo da África e a necessidade de irmandade entre todos eles. Mas não havia um grupo de Whatsapp, em uma língua, chamado “Grupos originários da África em solo brasileiro”, porque todas aquelas pessoas estavam sendo unificadas, naquele momento, apenas na cabeça dos brancos. O escravo que não era aceito no quilombo não era “um deles”. Não era do mesmo lugar, não falava a mesma língua, não era da mesma cultura. Explicando bem grosseiramente, achar isso estranho é quase como o eleitor do Trump não entender por que você, eu, o tangueiro torcedor do Boca Juniors e o colombiano que dança reggaeton não termos sentado juntos na Final Interclubes de 2013 pra torcer para o Atlético Mineiro e tomar uma tequila. Ou, ainda, que Zumbi seria condenável por não lutar contra algo que ele nem sequer tinha como saber que estava acontecendo naquele momento, como a gigantesca escravidão africana imposta pelos portugueses.
Contudo, do ponto de vista da espoliação racial que justificou o desastre humano que foi a escravidão dos negros (ou seja, do ponto de vista dos brancos), o Quilombo de Palmares foi o maior símbolo de resistência, pois foram inúmeras e inúmeras expedições contra esse território que durou mais de um século, até a sua derrota. Zumbi se tornou um símbolo de bravura, cujo assassinato foi cruel e exemplarmente exposto na capital de Pernambuco, para que aqueles que os brancos entendiam como “negros” se calassem.
Nada mais compreensível do que o movimento negro levantar exemplarmente a imagem de Zumbi como herói, compreendido o incômodo que ele representou para os colonizadores como “negro rebelde”, que não se deixou escravizar.
Sou contra as cotas porque o sucesso depende do esforço individual.
A crítica à meritocracia é, geralmente, entendida como coisa de esquerdista. Contudo, não é. A quantidade de estudos que asseguram a força das determinações sociais, culturais, regionais, territoriais e da herança familiar sobre o sucesso individual é vastíssima e apresenta um rigor até agora não refutado. Estatisticamente, as famílias mais ricas (e nisso há o recorte de classe, mas também o de raça) são aquelas em que os descendentes têm os melhores resultados escolares devido à abundância de tempo disponível para os estudos, possibilidade de mobilidade fácil na cidade e estrutura material para o aprendizado.
Como não estamos diante de uma realidade preconizada pelo liberalismo de igualdade de possibilidades e escolhas que justificaria o mérito individual, o mérito não é uma variável que possa ser contabilizada. Ele só seria válido se houvesse o pareamento das condições de partida e de crescimento, o que não se verifica na realidade social minimamente.
Em suma, só poderia haver avaliação do mérito de cada um se as oportunidades fossem iguais para todos.
Concordo com cotas, mas elas deveriam ser sociais e não raciais.
Você sabia que as cotas já são sociais? E que mais de 80% das cotas distribuídas nas universidades levam em conta a renda familiar e se o estudante é proveniente de escolas públicas? Partindo daí, pensemos por que ainda assim temos um número de cotas para negros e indígenas.
Quando se defende que pobres em geral, independentemente da raça, estariam igualmente em desvantagem, ignoram-se os resultados não econômicos do racismo e conclui-se que se o salário total de uma família branca pobre for igual ao de uma família negra pobre, as duas estariam em igualdade de condições de exigir reparação social.
Uma coisa é você ser pobre e entender que o mundo torce por você (no caso do branco). Outra coisa é você ser pobre e ser extremamente vigiado quando entra em uma loja (seria perigoso), avaliado injustamente com muito mais rigor (recorrente dúvida sobre a capacidade e do desempenho), entendido como indesejado (seja pela atitude da polícia, pelo sistema penal, a representação social do negro exposta da televisão, nas narrativas cotidianas etc.). Da mesma forma que as oportunidades não são equivalentes para homens e mulheres da mesma classe por questões mais subjetivas do que a renda, elas não são equivalentes para negros e brancos da mesma classe social.
Para finalizar, vamos ao óbvio: as cotas sociais servem para combater a desigualdade de renda, já as cotas raciais são para combater outro problema, o racismo. Trata-se de uma política afirmativa para que negras e negros estejam melhor distribuídos nos papéis sociais e nas profissões, ou seja, para que não seja mais algo surpreendente ver uma negra médica, um negro advogado, um professor universitário indígena, para que as próximas gerações não acreditem que o seu destino é o lugar subalterno que o passado e o presente lhes reservaram e lhes têm reservado.
Sou branco, mas tive avós negros. Então, eu teria direito a cotas.
Não. Conforme dito acima, a política de cotas visa a corrigir um problema causado quando a sociedade entende um indivíduo como negro e o discrimina. Ainda que você faça parte de um grupo de pertença que se identifique como negro, mas não seja entendido como negro pela sociedade, você não foi vítima dos preconceitos raciais sofridos pelos indivíduos de pele escura.
Negro canta bem, não é?
A princípio não há nenhum problema em notar o talento artístico ou esportivo de ninguém e, também, notar a cor da pele. Contudo, como tudo, a nossa percepção também é determinada socialmente. Você percebeu que cantores negros são ótimos e diz que os negros cantam bem, mas quando viu a foto do Machado de Assis você não disse que negros são ótimos romancistas. Ou disse?
Temos dois problemas aqui:
para o reconhecimento de uma aptidão de um negro, o esforço precisa ser muito maior se considerado com a de um branco. Logo, sim, as expressões artísticas, intelectuais ou de qualquer outro gênero provavelmente serão incríveis quando vierem de um negro: você só teve acesso a elas exatamente porque são surpreendentes.
há, no fundo, uma crença arraigada de que as atividades intelectuais são para brancos e que as atividades corpóreas são para negros. A escritora Conceição Evaristo uma vez disse que as pessoas perguntam: “mas você dança? Você canta?”. Esses questionamentos são muito sintomáticos porque revelam que, de acordo com essa crença de que as aptidões se dividem entre as raças, ela estaria subvertendo a hierarquia. Suponho que nunca se intrigaram a ponto de perguntar ao João Cabral de Melo Neto ou ao Jorge Amado se eles teriam outro dote artístico. Supõe-se que o branco pensa e escreve e que, por outro lado, o negro sente, dança, canta e é mais corpóreo, o que justificaria o motivo pelo qual negros teoricamente se dariam melhor nos esportes ou em serviços pesados.
Contudo, não há nenhuma evidência científica de que brancos e negros sejam biologicamente diferentes. Aliás, a diferença genética entre brancos e negros são as mesmas que de grupos sociais da mesma raça. A diferença entre brancos italianos e brancos dinamarqueses não são menores do que as diferenças entre italianos e nigerianos. Essas diferenças são construções sociais, ou seja, elas existem devido a experiências de vida distintas, com expectativas sociais que se tornam previsões autorrealizáveis, pois as expectativas traçam caminhos e delimitam escolhas e, portanto, funcionam de certa maneira como determinantes da conduta de grandes agrupamentos sociais.
Estatísticas mostram que há menos brancos no mundo do crime.
Essa é talvez a forma mais clássica de racismo: a associação entre raça e crime. Mesmo que haja estatísticas que demonstrem que alguma raça comete algum crime com maior frequência, não existe relação biológica entre as duas coisas. Não há predisposição inata para quase nada na vida. Há fatores policiais e da justiça criminal que explicam essa aparente relação entre raça e crime: Michelle Alexander, no seu A nova segregação, traz estudos nos Estados Unidos que mostram que o tráfico de drogas entre brancos e negros é estatisticamente igual e que os brancos tendem levemente mais a usar drogas do que negros. Contudo, a quantidade de negros presos por questões de drogas é intoleravelmente maior. Se você não tiver interesse em ler o excelente livro da Michelle Alexander, simplesmente pense em quantas operações policiais ocorrem no Capão Redondo, Paraisópolis ou Madureira, Nova Iguaçu e quantas há no Itaim Bibi, Morumbi ou Ipanema e Leblon.
Além disso, existem mecanismos sociais que fazem com que um egresso do sistema prisional tenha dificuldades gigantescas de se livrar do sistema penal. Não bastasse a humilhação e todas as violências a que os presos são submetidos, o sistema carcerário acaba se tornando a sombra de quem passa por ele, entre outras coisas porque a sociedade não aceita a reinserção do indivíduo. Portanto, não é o indivíduo que não se “regenerou” quando cai na reincidência: é a sociedade – com as suas exigências de antecedentes criminais para contratação, dentre diversos outros mecanismos – que dificulta qualquer atividade de quem já esteve preso. Aí vem aquela ladainha de que o “criminoso” não trabalha em um serviço “digno”. Mas todos os serviços “dignos” exigem que o indivíduo não tenha passado pela cadeia. Contraditório, não?
Não somos todos da “raça humana”?
Biologicamente sim, socialmente não. Por mais que “raça” seja um falso conceito em termos biológicos, ele foi um conceito que teve grandes e graves consequências sociais. Por isso, podemos dizer que o conceito existe sim socialmente, ou seja, teve um efeito real nas relações humanas, mesmo que biologicamente incorreto.
Muitos brancos podem achar até contraditório que parta do movimento antirracista a ênfase na raça. Já explicamos acima a questão da positivação da negritude como elemento importante para desfazer a terrível imagem que o racismo faz dos aspectos físicos (e, também, de uma pretensa especificidade mental e cognitiva) dos negros. Falta entender a ênfase desses movimentos para que os brancos se reconheçam como brancos e o que a branquitude acarreta.
Não se precisa fazer um grande esforço para provar a existência do privilégio branco, haja vista tudo o que foi comentado até aqui e o inegável peso que isso acarreta nas relações sociais. Este reconhecimento é o primeiro papel dos brancos na luta antirracista. E disso deriva uma conclusão difícil e dura para os brancos: ainda que você não tenha nunca tido nenhuma atitude racista ou tenha deliberadamente agido para prejudicar um negro, a sua simples existência reafirma e reforça o racismo estrutural da sociedade. Os brancos têm extrema dificuldade de assimilar isso porque gera um incrível sentimento de culpa em quem muitas vezes vê com nojo qualquer expressão de racismo. Mas, estruturalmente, o branco ocupa determinado lugar na estrutura social, e você o está ocupando agora. Existir é existir socialmente. E, infelizmente, se a sociedade é racista, a sua existência social é reflexo e corroboração do racismo.
Isso é bastante difícil, claro, até porque o maior privilégio é exatamente que os brancos não se sentem obrigados a pensar sobre as desigualdades raciais. Brancos não pensam sobre isso porque nem percebem que têm oportunidades que são tolhidas a pessoas negras. Um branco entende as oportunidades que a vida lhe oferece como naturais e óbvias. Assim como lhe parece natural que tenha medo de um negro andando na rua, não tenha amigos negros em país de maioria negra ou não leia autores negros.
Existe racismo reverso?
Não. Os brancos são chamados pelos Guarani de “juruá”. Imagino que não seja necessário explicar que, para os povos indígenas, os brancos representam a desgraça, conforme nos conta Lia Vainer Schucman. Pois bem: “juruá” afeta você, branco que está lendo este texto? Suponho que os prejuízos que você tenha sofrido na vida devido a isso sejam tão grandes quanto o seu conhecimento a respeito desse vocábulo.
Algum tipo de discriminação é o efeito colateral de algo que é extremamente humano: o ato de conhecer, que se dá conforme classificações. Para Lévi-Strauss, conhecer é classificar. Contudo, em que a classificação Guarani afeta a vida dos brancos? Em absolutamente nada.
Voltando ao princípio deste texto: quem dividiu toda a humanidade em uma hierarquia de raças foram os europeus. E junto com esta classificação havia um enorme poder, ou seja, uma enorme capacidade bélica e econômica de coação e coerção. Dessa maneira, o racismo é uma estrutura ocidental de classificação hierárquica de seres humanos que coloca o branco no topo da pirâmide. Se porventura há algum indício de discriminação contra branco, não se trata de um pensamento coletivo, estrutural e racionalmente organizado que gere qualquer prejuízo para os brancos.
O que eu tenho a ver com isso? Só porque eu sou branquinha?
Ao substituir o casal Taís Araújo e Lázaro Ramos como representantes do Brasil na Copa do Mundo de 2014, Fernanda Lima soltou essa pérola acima e ainda completou: “Não discrimino ninguém. Também não levanto bandeiras. Simplesmente acho que a gente tem que ser respeitado, sem violência. Eu não alimento esse tipo de coisa”.
Para a Fernanda Lima, ser questionada sobre esse ocorrido é entendido como violência: trata-se da “fragilidade branca”, ou seja, a dificuldade dos brancos quando confrontados sobre o racismo.
E ela “não levanta bandeiras”, seja lá o que isso signifique, mas que soa mais ou menos um “não tenho culpa de ser branca”. De fato, Fernanda Lima é bem branquinha como ela disse e, de fato, não tem “culpa” de algo que não é responsabilidade sua. Assim como um brasileiro não tem “culpa” de ser brasileiro, um inglês não tem culpa de ser inglês. Contudo, fazer de conta que ser uma mulher branca ou uma mulher negra não interfere em nada… é cínico. Simples assim. Aí, quando ela disse isso, veio a (necessária) pressão pelo reconhecimento do privilégio. Mas ninguém em sã consciência “culparia” a Fernanda Lima por ser bem branquinha, mas sim, pelo fato de ela não levantar nenhuma consideração crítica sobre essa substituição e o que ela significa e representa socialmente.
É curioso que quando os brancos são chamados a pensar a respeito do privilégio de serem brancos, eles trazem à tona a (óbvia) inocência biológica de terem nascido brancos. Mas, curiosamente, às vezes, chegam a defender que nasceram ricos porque mereceram, como é o caso da garota do meme gritando que sim o pai é rico, que sim ele é empresário e que sim ele a contratou. Mas que, se há tudo isso em jogo, é porque ela mereceu. Mereceu ter nascido de pai rico? Mereceu. E não tem culpa de ser branca? Ah não, isso não. Inocentemente brancos e merecidamente ricos.
Não, ela não tem culpa de ser a descendente de uma linhagem rica e, portanto, também não tem mérito nenhum na própria riqueza. Aliás, tampouco tem culpa de ser branca (ninguém está levantando essa culpa, mas é bom esclarecer de antemão). Mas tem sim o dever de entender que assim como essa riqueza não é mérito (é simples herança), a sua posição social – naturalizada como devendo ser superior – é ilegítima. E se você não questiona por que está ocupando o espaço que poderia ser de uma pessoa negra, você está legitimando esse raciocínio, ou seja, naturalizando o racismo.
Rafael Mantovani é sociólogo, doutor pela FFLCH/USP e pós-doutorado pela Faculdade de Saúde Pública/USP. Autor do livro “Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840)” – Fiocruz (2017). Colaboraram Juliana Vinuto e Lia Vainer Schucman.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.