Por Rodrigo Portela Gomes

O movimento quilombola, representado pela Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), propôs no Supremo Tribunal Federal (STF), no início deste mês, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742, que tem como objeto assegurar a vida e a saúde quilombola na pandemia da covid-19.

Neste artigo, tenho por objetivo destacar como a litigância estratégica protagonizada pelos quilombolas é um importante marco da democracia constitucional brasileira para compreensão histórica-social do racismo.

A ADPF 742 é mais do que um documento de denúncia do racismo como estrutura de hierarquização social. Neste contexto pandêmico, a ação recupera o programa constitucional formulado por quilombolas, em 1988, e aponta sentidos para sua reconstrução hoje.

Essa reconciliação com o projeto democrático constitucional perpassa pela presença da experiência negra na narrativa constitucional, pois nós não podemos mais figurar nas cenas de violência. Esse é o chamado do Manifesto da Coalizão Negra por Direitos quando diz que: “enquanto houver racismo, não haverá democracia”[1].

Nesse sentido, é inconciliável democracia e violência racial. Apesar deste pressuposto lógico aos Estados Constitucionais, o Brasil segue o curso da normalização dos efeitos da pandemia, o que escancara as múltiplas formas de violência que recaem sobre a população negra e, especificamente, a quilombola.

Na ADPF 742, a CONAQ denuncia a ausência de informações oficiais sobre os casos e óbitos do novo coronavírus confirmados nos territórios quilombolas. Por estratégia autônoma, mas precária, o movimento tem monitorado por si as informações das secretarias de saúde. Atualmente são 165[2] vidas quilombolas perdidas.

Acompanha este conjunto de violações a situação de vulnerabilidade socioeconômica e infraestrutural nos territórios quilombolas, que, somadas a falta de um Plano de Contingência da covid-19 nas comunidades, aprofundam um cenário irreversível de mortes negras. Assim, contra a agudização da violência nos quilombos, a CONAQ recupera a própria historicidade quilombola como projeto comprometido com a radicalidade constitucional, a vida.

Nos argumentos da ADPF 742, podemos dimensionar como a experiência quilombola se confunde com a luta por direitos no Brasil, constituindo movimento fundamental para compreensão da efetivação de direitos no presente.

O quilombo está alicerçado numa matriz histórico-jurídica que denominamos de diáspora africana. Trata-se de uma experiência secular inaugurada com o deslocamento forçado da África para América, o qual, diferente do que se propagou na história oficiosa, não foi experienciado de forma passiva. Pelo contrário! Essa experiência resultou numa busca constante por reconstrução da vida, por sobrevivência diante da violência racial.

Assim, os quilombolas convocam o STF para contribuir com uma história constitucional que reforce a agência e o pensamento quilombola. Para fazer-pensar um constitucionalismo que se oponha ao genocídio antinegro não é suficiente mobilizar a face da violência, que é marca inegável na experiência negra. É primordial acionar as tecnologias de luta negra por direitos, pois são elas que dão sentido e conteúdo aos direitos fundamentais, e o quilombo é uma dessas.

Na ADPF 742 os quilombolas indicam o caminho desta hermenêutica constitucional e essa reconstrução precisa acessar a narrativa quilombola. A situação de extrema vulnerabilidade comprovada na petição por documentos produzidos pelo próprio poder público é provocada por constantes desestruturação das políticas públicas que levavam a efeito as promessas constitucionais de 1988, conformando um verdadeiro processo desconstituinte.

Mas, além das provas constitutivas dos direitos pleiteados, o desafio apresentado pelos quilombos na ADPF é enraizar os postulados da democracia constitucional na história de luta por direitos do Brasil, que é eminentemente uma luta contra o racismo. A experiência quilombola é o próprio sentido normativo para essa reconciliação, pois o que é o quilombo, senão, a reconstrução da vida negra no território brasileiro?

 


[1] Disponível em: https://comracismonaohademocracia.org.br/.

[2] Informação obtida no Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/.

Fonte: Carta Capital | Foto ilustrativa: Manifestação do Quilombo Rio dos Macacos na AGU-BA.
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