Por Camilo Vannuchi
“Eu nunca vi um país com uma mídia dominante tão fraudulenta quanto a mídia brasileira”. O testemunho de Glenn Greenwald dá a tônica no documentário A nossa bandeira jamais será vermelha. Programado para ser exibido na próxima terça-feira (20) no festival United Nations Film Festival, da Califórnia, e lançado na quinta (22) em plataformas de vídeo sob demanda como Now, iTunes, Vivo, Microsoft e Looke, o filme de Pablo Guelli pode ser descrito como um bombardeio aéreo de 72 minutos sobre os seis ou oito feudos que dominam os meios de comunicação no Brasil. Há dez dias, ganhou os prêmios de melhor longa metragem e melhor diretor no Santos Film Festival.
A narrativa é concentrada no período que se inicia nas jornadas de junho de 2013 – os 20 centavos mais caros da história recente – e se estende até 2019, o primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro.
A trama lembra – e atualiza – o hoje cult Muito além do Cidadão Kane, documentário produzido pelo britânico Channel 4 em 1993, um ano após o impeachment de Collor. Transbordando os domínios da Globo e de seu fundador Roberto Marinho, a principal contribuição do filme é mostrar que o cenário de oligopólios não se deve somente à Globo. O filme mostra – revela, escancara, destrincha – as relações para lá de promíscuas entre as poucas empresas, todas elas familiares, que dominam a mídia no país, e que têm, obviamente, seus políticos de estimação.
Se a Itália tem Berlusconi e os Estados Unidos tem Murdock, australiano radicado em Nova York, há uma espécie de consórcio de notáveis com meia dúzia de sobrenomes que fazem da mídia brasileira a mais concentrada do mundo. São os Marinho, os Macedo, os Saad, os Abravanel, os Frias, os Mesquita… Até outro dia havia os Civita. Essas empresas, mesmo que pareçam garantir diversidade e vender democracia, repetem todas as mesmas crenças, os mesmos interesses e, o que é grave, a mesma manipulação.
Manipular é quase-sinônimo de manusear. Aprendemos a usar a palavra manipular como sinônimo de fraudar, transformar a notícia ou a informação de modo a assumir a forma exata para favorecer o que se espera dela. É natural da imprensa a atividade de manipulação, desde que feita sem perversão, com vistas a garantir ao cidadão o direito à informação. O profissional que define qual matéria vai para a capa do jornal e qual vai para a página 8, ou se a matéria terá cinco colunas de 18 centímetros ou somente uma nota de oito linhas, o que ele faz é manipular a informação. Quase sempre, no entanto, essa tarefa é feita com outros interesses para além de oferecer informação de qualidade ao ao leitor ou espectador.
Por que apenas informar se a gente pode formar, convencer, doutrinar? O editor, o acionista ou o dono da porra toda convergem na hora de manipular a informação. Um prédio vazio, abandonado, que passa a ser habitado por um grupo de sem-teto, deve ser chamado de invasão ou de ocupação? Greve é um instrumento legítimo de reivindicação ou uma demonstração inequívoca de arruaça e vandalismo? O que houve na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964 foi uma revolução ou um golpe militar? E em 2016, com Supremo, com tudo?
Homenagear torturador é fato grave ou apenas uma bizarrice folclórica que serve para desopilar o fígado, rir um pouco e entrar para o anedotário político da nação?
No filme de Guelli, nos deparamos com certo jornalismo de esgoto, que faz barulho com denúncias que não param em pé e que foi protagonista na destituição de uma presidente sem crime de responsabilidade, sobre quem pesava unicamente uma barganha com a lei de responsabilidade fiscal, muito menor e menos grave do que verificada em outros governos pós-redemocratização. E conseguimos compreender que tudo faz parte de um mesmo rolo compressor. Para os diretores, deixou de haver razão de haver um jornalista que incomodava, que questionava as convenções e que apontava o dedo dizendo o que estava errado e poderia ser perigoso.
Quem conta tudo isso não sou eu. Nem Guelli. São jornalistas como Xico Sá, Ana Magalhães (Repórter Brasil), Laura Capriglione (Jornalistas Livres), Joaquim de Carvalho e Kiko Nogueira (DCM), Luís Nassif (GGN), Rodrigo Vianna (Brasil de Fato e TVT), Marco Aurélio Carone (Novo Jornal), Lúcio Flávio Pinto (Jornal Pessoal) e Glenn Greenwald (Intercept), ativistas da liberdade de expressão e do direito à comunicação, como André Pasti (Intervozes) e Emmanuel Colombié (Repórteres sem Fronteira), pensadores da comunicação com João Feres Jr. (Manchetômetro), José Arbex (PUC-SP) e Igor Fuser (UFABC) e outros intelectuais, como Teun Van Dijk, Noam Chomsky, Jessé Souza e Tales Ab’Saber.
Por vias tortas, ao revelar tamanho descalabro da imprensa brasileira – que atuou como partido político ao emplacar manchetes como “Brasil vai às ruas contra Dilma” e “Apoiadores de Dilma vão as ruas contra impeachment” e também ao divulgar os protestos contra a presidente do PT com endereço e hora marcada, como se fosse uma atração cultural ou turística – o filme nos faz pensar que o jornalismo também é feito por gente como Marco Aurélio Carone, preso por nove vezes de forma preventiva pela PM de Minas Gerais quando preparava uma reportagem revelando que o então governador Aécio Neves estava havia quase três meses sem governar, recuperando-se de uma overdose, e Lúcio Flávio Pinto, único brasileiro na lista “100 heróis da informação”, elaborada pela ONG Repórteres sem Fronteira, conhecido por publicar críticas à imprensa e por denúncias, sobretudos relacionadas a corrupção e desmatamentos criminosos praticados na Amazônia em favor dos interesses do agronegócio. “A mídia, agora, tem que desfazer o que fez, se não quiser levar o Brasil para uma ditadura”, alerta o psicanalista Tales Ab’Saber no filme.