Por Chimamanda Ngozi Adichie
Sob a presidência de Muhammadu Buhari, há uma sensação de que o país pode ser reduzido a cinzas.
LAGOS, Nigéria — Por anos, o nome SARS pairou sobre a Nigéria como um nevoeiro pútrido. O SARS, que significa Esquadrão Especial Anti-Roubo, era para ser a unidade de polícia de elite nigeriana dedicada a combater o crime, mas era na realidade um esquadrão do terror lucrativo isento de responsabilidade. O SARS era aleatório, vicioso, e vilmente extorsivo. Oficiais do SARS faziam batidas em bares ou paravam ônibus nas estradas e prendiam arbitrariamente homens jovens por crimes como usar dreadlocks, ter tatuagens, ter um bom celular ou laptop, dirigir um bom carro. Então eles exigiam grandes quantidades de dinheiro como “fiança”.
Oficiais do SARS prenderam meu primo em uma cervejaria porque ele chegou dirigindo uma Mercedes. Eles o acusaram de ser um assaltante armado, ignoraram as identidades do trabalho que ele mostrou, o levaram para uma estação onde ameaçaram fotografá-lo ao lado de uma arma e alegar que ele era o assaltante, a menos que pagasse uma grande quantidade de dinheiro. Meu primo foi um dos poucos sortudos que puderam pagar a grande quantia exigida pelo SARS, e que foram liberados. Ele não é um dos muitos torturados, ou desaparecidos, como Chijioke Iloanya.
Em 2012, o senhor Iloanya tinha 20 anos quando oficiais do SARS o prenderam em uma cerimônia infantil no estado de Anambra. Ele não havia cometido crime algum. Sua família tentou pagar para que ele fosse solto, mas foi pedido mais dinheiro do que eles tinham. Então eles venderam sua propriedade para arrecadar dinheiro e voltaram ao escritório do SARS, mas o senhor Iloanya não estava mais lá. Eles não o veem desde então. Fotos dele nas redes sociais mostram um jovem, quase uma criança, com olhos sensíveis e um futuro à sua espera. Existem muitas famílias como os Iloanyas que estão presas entre a dor e a esperança, porque seus filhos e irmãos foram presos pelo SARS e eles temem o pior, conhecendo a reputação do SARS, mas ainda ousam ter esperança da maneira desesperada que nós humanos agimos por aqueles que amamos.
Tiveram protestos pelo fim do SARS, desde 2016, mas outubro de 2020 foi diferente, a gota d’água foi alcançada. Os protestos sinalizavam a inversão do padrão – os manifestantes insistiram em não ter uma liderança central, foi a mídia popular ao invés da tradicional que cobriu os protestos, e, em um país com divisões de classe firmes, os protestos atravessaram a classe. Os protestos foram pacíficos, insistentemente pacíficos, consistentemente pacíficos. Foram organizados em sua maior parte por jovens nigerianos, nascidos nos anos 80 e 90, uma geração descontente com coragem para agir. Sua bravura é inspiradora. Eles falam de esperança e da possibilidade do que a Nigéria pode se tornar. Dos envolvidos na organização, ninguém é mais notável do que as feministas nigerianas de um grupo chamado Coalizão Feminista, que arrecadou mais de $180.000 e forneceu auxílio legal, segurança e comida aos manifestantes.
Mas o governo nigeriano tentou interromper sua arrecadação. O governo nigeriano supostamente acusou Flutterwave, a empresa pela qual o link da arrecadação foi criado, de aceitar fundos de terroristas, embora esteja claro que as membras da Coalizão não são terroristas. O link da arrecadação repentinamente parou de funcionar. Ainda assim, elas persistiram, e começaram a arrecadar dinheiro em forma de Bitcoin.
Da capital Abuja até a pequena Ogbomosho, agentes do estado atacaram e bateram nos manifestantes. A política matou alguns e prendeu muitos outros, até a mídia popular e evidências em vídeo os forçarem a soltar alguns dos detentos. Ainda assim, os manifestantes persistiram.
O governo de Lagos acusou manifestantes de violência, o que desafiou a noção de que um protesto tão comprometido com meios pacíficos repentinamente se tornaria violento. Os manifestantes sabem que têm tudo a perder em um país como a Nigéria onde uma mera indicação de violência dá liberdade às forças de segurança assassinas. A cultura política da Nigéria é imersa na criminalidade patrocinada pelo estado. Políticos rotineiramente contratam criminosos para causar caos, especialmente durante eleições, e muitas pessoas acreditam que criminosos foram contratados para prejudicar os protestos. Nas redes sociais, vídeos confirmam isso – de criminosos entrando em carros do governo, de jovens famintos admitindo que foram pagos para se unir aos protestos e torná-los violentos. Ainda assim, os manifestantes persistiram.
Ao redor do meio dia do dia 20 de outubro de 2020, que já contava cerca de duas semanas de protestos, o governador de Lagos repentinamente anunciou um toque de recolher que iniciaria às 16 horas, que deu às pessoas em um estado conhecido pelo seu tráfego intenso apenas algumas horas para chegarem em casa e se protegerem. Eu temia que um toque de recolher serviria de desculpa para a violência estatal, que em nome da restauração da ordem, o exército e a polícia usariam a violência. Ainda assim, eu não estava preparada para a carnificina que aconteceu no pedágio Lekki, o mais importante de Lagos. Oficiais do governo supostamente cortaram as câmeras de segurança e a luz, deixando apenas uma pesada escuridão. Os manifestantes estavam segurando bandeiras nigerianas, sentados no chão, alguns de joelhos, alguns cantando o hino nacional, pacíficos e determinados.
Um vídeo embaçado do que aconteceu em seguida viralizou – soldados andam em direção aos manifestantes com uma calma terrível, o tipo de calma que você não tem se está sendo atacado, e eles atiram, não pra cima, o que também seria uma atrocidade ao lidar com manifestantes pacíficos, mas sim na altura do braço, em direção a uma multidão de gente, atirando para matar. Faíscas dos tiros mancham o ar. Ainda não está claro quantos morreram. Os que estavam presentes disseram que o exército levou alguns corpos, e evitou que ambulâncias se aproximasse para ajudar, e que ainda ouviam-se tiros horas depois, pela manhã.
O estado nigeriano se virou contra o seu povo. A única razão para atirar em direção a uma multidão de cidadãos pacíficos é para aterrorizar: matar alguns e fazer outros recuarem. É um crime colossal e imperdoável. O descaramento é de arrepiar, de que o estado mataria seus cidadãos, de maneira tão premeditada, como se tivesse certeza da falta de consequências.
É anarquia, uma amiga me disse. A Nigéria está descendendo para o caos, outra amiga disse. Elas podem ter razão, mas “anarquia” e “caos” são maneiras diferentes de usar a linguagem para blindar o verdadeiro culpado – o fracasso da liderança. Não precisava ser assim. O governo do presidente Muhammadu Buhari há tempos é ineficaz, com um tipo de indiferença deliberada. Sob sua liderança, a insegurança piorou; há uma sensação de que o país pode ser reduzido a cinzas enquanto o presidente permanece distante. O próprio presidente frequentemente indica uma presunção insolente, como se engajar com nigerianos não seja algo do seu nível. Doze horas após os soldados atirarem em manifestantes pacíficos, o Sr. Buhari ainda não tinha se comunicado com a nação.
Um movimento não pode se espalhar de maneira tão orgânica pela Nigéria se não refletir legitimamente as reclamações das pessoas comuns. Um governo eleito democraticamente que não é capaz ou disposto a integralmente abordar essas reclamações, de fato, fracassou.
Na primeira semana dos protestos, o presidente tuitou e discursou sobre encerrar o SARS. O inspetor geral da polícia anunciou que o SARS havia sido desmantelado, mas o governo anunciou o mesmo outras vezes no passado, começando em 2017. Devido ao fato de os nigerianos serem tão acostumados com a natureza dissimulada dos seus governos, com promessas destruídas mesmo antes de serem feitas, não é de se surpreender que os manifestantes desconfiem do governo e que estejam exigindo ações claras ao invés de palavras.
Estou na minha cidade ancestral há semanas, onde enterramos meu amado pai, e então uma semana depois, enterramos sua única irmã, minha tia Rebecca. Imersa em meu próprio luto, nos momentos frequentes de lamento, pensando no caixão do meu pai sendo rebaixado para o solo úmido, pensando se tudo ainda pode ser um sonho, eu penso com um novo tipo de comoção sobre os que foram mortos. Penso em suas famílias brutalmente jogadas no terrível abismo do luto, que se torna mais terrível sabendo que seus amados foram mortos pelo seu país. E para quê? Porque pediram pacificamente a permissão para viver.
*Publicado originalmente em ‘The New York Times‘ | Tradução de Isabela Palhares, Carta Maior.