Em entrevista a Isaías Dalle da Fundação Perseu Abramo, Nilma Lino Gomes avalia que “Os números e as estatísticas que demonstram as desigualdades raciais causam indignação. Essa indignação tem de ser canalizada para uma ação incisiva do Estado. Para isso é preciso orçamento”. E para ter orçamento, completa, é preciso a criação de um Fundo Nacional de Combate ao Racismo que, a exemplo do Fundeb, seja amparado em lei e envolva a participação e gestão de todos os entes da federação e as entidades da sociedade civil, e que “não fique ao sabor do vento de um desgoverno”. Fundo que, por sinal, já é objeto de um projeto de lei no Senado. Destacamos aqui as demandas do movimento negro explicitadas por ela.
Antropóloga, socióloga e pedagoga, Nilma é professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e ex-ministra da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, no início de 2015 e, meses depois, do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, fusão de pastas feita pela ex-presidenta Dilma em outubro de 2015.
FPA: Uma das propostas que chamam a atenção é a de criação de marcadores raciais no âmbito do SUS, para poder traçar o quadro epidemiológico da população negra. Explique um pouco como funcionaria e quais mudanças isso trará.
Nilma: O Estatuto da Igualdade Racial prevê a saúde integral da população negra. E essa política nós começamos a realizar no Ministério da Saúde, em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, à época, junto com organizações do movimento negro. Já há um debate sobre a saúde da população negra, e como é uma intersecção entre as outras diversas formas de desigualdade que já atingem essa população e já são atestadas pelo IBGE, por pesquisas do IPEA, pelo Mapa da Violência. E a saúde pública é fulcral para qualquer democracia, principalmente para sociedades muito desiguais, como o Brasil, e com racismo estrutural, também caso do Brasil. No caso dos marcadores sociais, o que queremos em primeiro lugar é a continuidade da implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. O que um governo deveria fazer na pandemia, com os marcadores sociais, é um recorte específico de como essa situação atinge a população negra. Recorte de gênero, um recorte etário, pensando também nas comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana. 70% da população mais pobre do Brasil é negra. São os mais atingidos pela pandemia. Este era o momento de o governo, com os marcadores sociais, fazer um grande mapeamento da saúde da população negra e pensar políticas emergenciais. Os marcos significam mais do que os marcadores em si. Dentro de uma ideia de ação afirmativa, da ideia de que o Estado tem que implementar políticas de promoção de igualdade racial, de correção de desigualdades históricas, é este o momento de não fazer vistas grossas nem numa posição de suposta neutralidade. A pandemia não afeta a todos da mesma maneira, e não só do ponto de vista econômico, mas de gênero, diversidade sexual, questão racial e localização geográfica. Eu diria que seria um refinamento ainda maior das políticas de saúde com um recorte de ação afirmativa.
Os marcadores raciais, no longo prazo, poderiam ajudar em outras questões, como a violência?
Sim. Em outras questões como violência obstétrica também. Os ganhos que tivemos ao incluir indicações de raça e cor em formulários de saúde nos ajudam a mapear violações dos direitos, quais as principais doenças que atingem a população negra, e os marcadores nos ajudariam a construir políticas públicas de saúde que pudessem proteger essa população negra de uma série de outras violências e que somente com os marcadores sociais, desagregando os índices de raça/cor, é que poderemos refinar a construção da igualdade. Este é um mecanismo de melhora de vida da população brasileira como um todo, e não somente da população negra. Um instrumento para melhor conhecer a população em sua diversidade. E intervir por meio de políticas, por meio do orçamento, em conjunto com estados e municípios. Mas algo que eu acho importante salientar é que os marcadores raciais não são propostas de agora; estamos colocando como emergencial porque este governo está atropelando tudo e fazendo retroceder todas as políticas sociais. A gente já estava caminhando. Temos que retomar passos que já havíamos dado e colocá-los como emergenciais. Aliás, uma das propostas que temos para a transformação do Brasil, que não deixa de ser emergencial, é a recriação de ministério para promoção da igualdade racial. Embora tenhamos um acúmulo maior entre as forças progressistas que a luta antirracista deve estar presente na vida do cidadão e da cidadã, sem um órgão que coordene essas ações, muitas delas se perdem em meio a tantas demandas que existem para se governar um país.
Importante destacar também que o senador Paulo Paim apresentou ao Congresso o projeto de lei 2179, que pretende instituir a política de marcadores raciais. A cada dez pessoas que relatam mais de um sintoma da doença, sete são pretas ou pardas.
Lembrando que a secretaria, com status de ministério, foi das mais atacadas pela mídia, com o argumento de que era um gasto desnecessário, uma estrutura que aumentava o suposto gigantismo do Estado. Isso não é aleatório.
Não, não é aleatório. Mas mesmo com todos esses ataques que recebíamos e recebemos até hoje, nós, dos anos 2000 pra cá, depois da Conferência de Durban em 2001, depois que assumem os governos do PT, são momentos em que de fato o Estado brasileiro, concretamente, instituiu política de igualdade racial que tem dado resultado até hoje. Quando pensávamos sobre essas ações emergenciais, nós discutíamos que esses ataques feitos às políticas de igualdade racial acontecem tanto de forma incisiva – por exemplo quando vemos um presidente da Fundação Palmares atacar a política antirracista – mas há outras formas, como o teto de gastos e a reforma da Previdência, que atacam a população de forma racista. O que falta é muitas vezes a gente fazer a ligação entre uma coisa e outra.
A mim parece que a população negra tem se colocado, tem demonstrado de maneira enfática, que não está mais disposta a sofrer certos desmandos. Isso veio pra ficar, isso vai resistir às tentativas de retrocesso? O que você acha?
Há várias questões contidas nesta questão. A população negra organizada, os movimentos sociais, as ONGs, as entidades culturais, progressistas, emancipatórias, nunca estivemos parados. O que acontecia antes – regime militar, depois a tentativa da retomada da democracia – é que não tinha ressonância dentro do Estado brasileiro esta luta, esta demanda. Por não ter ressonância macro, digamos assim, não ganhava a visibilidade necessária, nem tampouco a repercussão nacional que fizesse as pessoas não-negras a também parar para pensar no que é o racismo. Tivemos inflexões importantes que trouxeram essa visibilidade e esse ativismo, até chegarmos ao que temos hoje. Lembramos a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, que chegou ao presidente, aos ministérios, ao Congresso, e resultou na criação de um grupo interministerial. Depois houve Durban, na África do Sul, e a participação do Brasil com dados desagregados por raça e cor, que fez com que a desigualdade racial ficasse escancarada e a diplomacia brasileira saísse de lá com o compromisso de Durban de fazer política de combate ao racismo. E o que temos agora que, na minha opinião, causa tudo isso? Com a pandemia, e com o próprio movimento negro conseguindo pautar para a sociedade brasileira as consequências da pandemia para essa população – um movimento mais maduro, que consegue fazer uma luta inclusive internacional – e a gente tem uma juventude negra. E eu quero chegar neste ponto: temos hoje uma juventude negra ativista, muito crítica, articulada nas redes sociais, e muitos frutos deles e delas são dessas ações afirmativas que falamos aqui, das cotas, dos coletivos de estudantes, e esses meninos e essas meninas são aqueles que vão para as ruas, mesmo com a Covid põem as máscaras e vão lá falar: Vidas Negras Importam.
E neste momento em que estamos com um governo de extrema-direita e esse perfil multifacetado da militância negra, perfil que vai além do movimento negro, você tem mais articulações entre o movimento negro, o que dá força, dá robustez, e você tem esses jovens, esses estudantes, que têm uma leitura nova da política. Visão muito atravessada pela questão da cultura, da estética, pelo direito de se ser o que se é, muito calcada na releitura de intelectuais negros e negras brasileiros e estrangeiros, o que contribui muito para essa efervescência.
Na minha opinião, veio para ficar. Agora neste momento, o que há de mais interessante, é uma ampliação dessa discussão do antirracismo para as pessoas não-negras também, que começam a se tocar que essa pauta diz respeito a elas também: “eu quero lutar contra a extrema-direita, eu quero lutar contra o fascismo, e não tem jeito de fazer essa luta sem lutar contra o racismo”.
E o que a gente começa a ter também é algo que o movimento de mulheres negras estadunidense trouxe – e brasileiro também – que é essa dimensão das interseccionalidades. A gente começa muito devagarinho, no campo emancipatório, a compreender que temos de hierarquizar as igualdades, mas pensar como são interseccionalizadas. Inclusive para que um governo democrático pense em gênero, raça, classe, diversidade sexual, na hora de estabelecer política. É mais do que política intersetorial, que a gente fala há algum tempo. Acho que a gente está nesse momento. Isso exige muito mais articulação de forças do que caixinhas separadas.
Há uma outra proposta emergencial no plano que é a criação do Fundo Nacional de Combate ao Racismo. Como seria?
É uma discussão já antiga no movimento negro. Há um manifesto pelo fundo, de 2013, e um projeto de iniciativa popular, dessa mesma época. Mais tarde, em 2016, o senador Paim apresenta uma proposta de emenda constitucional – reelaborada agora, neste momento de exacerbação do racismo – e a ideia é a de que, como todos os fundos democráticos, que a gente tenha recursos públicos voltados exclusivamente para a promoção da igualdade racial. No sentido de uma reparação histórica. O fundo tem esse caráter político de reparação e de amparo às políticas de igualdade racial. Uma coisa é você ter um ministério com um orçamento pequeno, tentando fazer políticas transversais. Outra é você ter um fundo, como o Fundeb, para implementar uma política em nível nacional, envolvendo estados e municípios. Ao propor o fundo, queremos afirmar que o tema deixa de ser restrito aos militantes negros, mas passa a ser visto pelo conjunto do partido como um eixo estruturante, assim como é o capitalismo e o patriarcado. Não se pode ter só um discurso para a reconstrução do Brasil, é preciso criar condições. O fundo será voltado para a construção de políticas públicas em articulação com os outros entes da federação e a sociedade civil. Os números e as estatísticas que demonstram as desigualdades raciais causam indignação. Essa indignação tem de ser canalizada para uma ação incisiva do Estado. Para isso é preciso orçamento. E as políticas que temos hoje, se já houvesse esse fundo, estariam menos atacadas do que estão. E não ao sabor do vento de um desgoverno.
Muito obrigado pela sua entrevista. Você quer acrescentar algo?
Eu quero acrescentar uma outra dimensão que acho muito importante, que é a dos quilombolas. A Conaq, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, entrou no dia 9 de setembro com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, solicitando que o STF cobre do governo federal medidas emergenciais em relação à saúde da população quilombola neste contexto da pandemia. Nós temos o decreto 4887, de 2003, que regulariza a titulação, o reconhecimento das comunidades quilombolas, a gente caminhava para fazer uma política, mas agora essa população está entregue à própria sorte. A gente falava em marcadores raciais. Sob coordenação da Conaq, os quilombolas desenvolveram uma forma própria que consiga mapear e monitorar como a pandemia está assolando a vida dessas comunidades. A Conaq identificou 4.750 casos de contaminação e 179 óbitos em decorrência da Covid-19. Até agora o STF não deu uma resposta.
Esse trabalho que a Conaq está fazendo, cobrindo uma lacuna deixada pelo Estado, serve inclusive para impedir que esta história seja apagada depois. Porque daqui a cinco, dez anos, quando os historiadores forem pesquisar este período, se dependerem só da documentação oficial, vai parecer que só se tratou de uma “gripezinha”.
Exatamente. Para ficar marcado na História que momento é este que o Brasil está vivendo.
Fonte: Fundação Perseu Abramo.