O investigador e professor da Universidade de Howard Rui Diogo analisa o colonialismo europeu e compara-o, em termos de mortos, com o extermínio em massa perpetrado pelo regime nazi.
Por Rui Diogo
João Miguel Tavares escreveu, na última pagina da edição de quinta-feira (dia 18) do “Público“, o qual leio diariamente desde há anos, um artigo com o titulo: “Mais uma comparação com o nazismo e eu grito.” É preciso notar que o artigo estava na última página do jornal, a qual é facilmente visionada por todos os que compram este jornal, ou outros.
Sendo eu português, especialista em temas ligados ao racismo e colonialismo – que são o tema principal do meu último livro -, e professor na Howard University, uma universidade mundial constituída principalmente por alunos descendentes de africanos e com prestígio e influência mundiais precisamente por chamar a atenção para estes temas – é preciso lembrar que Kamala Harris, agora vice-Presidente dos E.U.A., foi aluna de Howard -, este artigo parece-me totalmente indigno de um jornal de prestígio internacional como o “Público“. Por ser não só uma falta de respeito para as centenas de milhões de mortos resultantes do colonialismo europeu – muitíssimos mais que o número atroz e horripilante de mortos de judeus – e também ciganos, e pessoas com deficiência, não podemos esquecer – causados pelo horrível Holocausto, mas também para os sobreviventes e descendentes dos que foram colonizados, como os meus alunos em Howard, e muitos milhares de alunos, professores e outras pessoas a viver em Portugal.
Que o colonialismo europeu matou muito mais que o Holocausto é um facto histórico consensualmente reconhecido por historiadores internacionais. Mas na Europa, e sobretudo em Portugal – contrariamente ao que se faz por exemplo na Alemanha, em que se reconhecem muito mais, a nível público, as atrocidades feitas pelos nazis e também pelo colonialismo alemão – continua a nem querer sequer fazer uma comparação entre o Holocausto e o colonialismo. Isto porque o primeiro é visto como o ‘mal absoluto’, e o segundo como algo que no fundo “não foi tão mau” – ou, como escreveu João Miguel Tavares, que foi muito mais “rico” do que simplesmente “brutalidade e opressão”.
Não há dúvida que o Holocausto é um dos eventos mais horríveis da humanidade: entre 1941 e 1945, os nazis e os seus colaboradores mataram cerca de 6 milhões de judeus, ou mesmo mais, segundo os números consensualmente aceites hoje em dia, e isso envolveu um planeamento frio, totalmente inumano, desde tirar as pessoas das suas casas, construir linhas de caminho de ferro e ter comboios para as transportar, e criar campos de concentração, de extermínio para os matar, e câmaras de gás para as gazear: o mal absoluto, sem dúvida – cerca dois terços dos judeus Europeus foram mortos, nesses 4 anos.
No realidade, o facto de pessoas como João Miguel Tavares, e no fundo uma grande maioria dos portugueses, continuarem a nem aceitar que se façam comparações entre o colonialismo europeu e o Holocausto, tem precisamente a ver com este último ponto: porque o Holocausto afetou-nos sobretudo a “nós”, os europeus, enquanto o colonialismo afetou os “outros”. Porque na realidade, uma comparação factual revela que não só o colonialismo matou muito mais que o Holocausto, mas que também envolveu planeamento igualmente horripilante e inumano: como construir barcos para levar escravos, aglomerados, acorrentados, em viagens de meses, sabendo de antemão que em muitos casos um terço, ou mesmo dois terços, deles iriam morrer nessas viagens. Nesse sentido, essas condições foram ainda mais horríveis que aquelas terrivelmente inumanas que ocorreram nos comboios usados pelos nazis para transportar judeus durante o Holocausto.
E, sim, acima de tudo, temos os dados mais nefastos de todos: o colonialismo matou mais, muito mais – entre 10 e 20 vezes mais, no mínimo – que o Holocausto. Por exemplo: consensualmente aceita-se que só em relação aos povos indígenas das Américas, entre 1492 e as primeiras décadas de 1600 morreram cerca de 56 milhões de indígenas, devido às armas usadas e aos germes levados pelos colonizadores europeus. Esse número é, por si só, 10 vezes maior que o número horrivelmente atroz de mortos do Holocausto. E se compararmos em números relativos as coisas são ainda piores: enquanto a chamada “grande morte” desses indígenas representa a morte de cerca de 10% da população total do planeta, nesse tempo, o Holocausto causou a morte de cerca de 0,2% da população global, no meio do século passado: 50 vezes pior, em termos comparativos.