O ressurgimento do movimento negro

A luta dos negros brasileiros durante a ditadura pode ser pensada em dois campos que, por sua vez, se conectavam: o cultural e o político.

 

No campo cultural, a valorização do negro dentro da cultura brasileira começou a desenvolver um espaço próprio. As velhas teorias da mestiçagem e a ideologia da “democracia racial” começaram a ser duramente criticadas por intelectuais, artistas e agitadores culturais. No mundo acadêmico, sociólogos como Florestan Fernandes desenvolveram críticas sofisticadas e aprofundadas à ideia de “democracia racial”, demonstrando como os negros foram integrados à sociedade industrial e urbana, com a manutenção da uma situação de dupla exclusão, social e racial.

 

A “consciência negra”, se adensou nos anos 1960 e 1970, influenciada, inclusive, pela luta dos povos africanos contra as suas metrópoles, pela luta contra o apartheid racial na África do Sul e pela luta dos negros estadunidenses por direitos civis. “Black is beatiful” era o lema internacional da época, algo como “Negro é lindo”, em português. No final dos anos 1960, a partir das novas posturas do movimento negro dos Estados Unidos, o black power (“poder negro”) se manifestava nos cabelos, nas roupas, nos gestos, manifestando o orgulho pela cor de pele diferente da sociedade WASP (White, Anglo-Saxon, and Protestant – branca, anglo-saxã e protestante), que formava a elite norte-americana.

 

No ano de 1974, na cidade de Salvador, o bloco Ilê Aiyê surgiu com a proposta de celebrar o carnaval sem esquecer o protesto contra o racismo, cantando “É o mundo negro que viemos mostrar a você”. Nas periferias, começou a surgir uma nova consciência entre jovens e adolescentes cujo foco era a valorização da “identidade racial” e a percepção do preconceito explícito ou disfarçado que marcava a sociedade brasileira.

 

No campo político, a novidade dos anos 1970 foi o ressurgimento de um movimento negro altamente politizado e influenciado por ideologias marxistas. Embora os partidos de esquerda sempre tivessem priorizado e luta de classes e não a questão racial, que julgavam derivada da primeira, alguns partidos e grupos marxistas – começavam a inserir a “questão racial” em seus programas, manifestos, resoluções.

 

Repressão aos negros

Documentos confidenciais obtidos no Arquivo Nacional revelam que militares se infiltraram nos grupos, ficharam os líderes e tentaram a todo custo impedir que a luta dos negros crescesse. Segundo os documentos, o movimento negro se configurava um problema porque repudiava o regime, contestava a propaganda oficial de um país sem racismo e encampava a necessidade do restabelecimento da democracia.

 

Durante o regime, 41 líderes negros morreram ou desapareceram após supostas ações militares, segundo dados da Comissão da Verdade de São Paulo.  A repressão a lideranças negras e ao movimento causou a morte e o desaparecimento de nomes importantes na política brasileira, como Carlos Marighella, Helenira Rezende de Souza, Osvaldo Orlando da Costa, conhecido como “Osvaldão”, entre outros. Há ainda relatos por todo o país de centenas de prisões políticas e casos de tortura envolvendo integrantes de lutas contra o racismo.

 

A percepção dos militares de que haveria risco com o movimento negro teve início em meados da década de 1970. No dia 7 de fevereiro de 1975, um primeiro informe expedido pelo Exército foi encaminhado ao SNI (Serviço Nacional de Informações) e ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) com informações de um grupo no Rio de Janeiro “liderado por jovens negros de nível intelectual acima da média”.

 

Em agosto de 1978, um documento da Polícia Federal do Rio Grande do Sul relatava: “Esses movimentos revelam o incremento das tentativas subversivas de exploração de antagonismos raciais em nosso país, merecendo uma observação acurada das infiltrações no movimento ‘black’, tendo em vista que, se porventura houver incitação de ódio ou racismo entre o povo, caberá a Lei de Segurança Nacional”.

 

Movimento espionado

Secreto por muitos anos, um outro documento do Ministério do Exército de outubro de 1979 mostra como os militares infiltraram pessoas dentro do recém-criado MNU (Movimento Negro Unificado). “O método utilizado foi a infiltração em entidades dedicadas ao estudo da cultura negra, por meio de palestras em reuniões e simpósios”, informou.

A investigação espiã deixou clara uma preocupação específica com a Bahia, que estaria liderando o movimento com a temática negra no país. Da espionagem saíram nomes de líderes que deveriam ser acompanhados. Muitos deles viriam a ser presos numa tentativa de enfraquecer o movimento.

“Esta foi mais uma manifestação do MNS [Movimento Negro de Salvador], que vem elaborando uma campanha artificial contra a discriminação racial no BRASIL e, em particular, na BAHIA”, diz um trecho do texto, citando um evento realizado pela organização.

“Ficou delineado que, em SALVADOR, os ‘centros de luta’ têm por função ‘mobilizar, organizar e conscientizar a população negra nas favelas, nas invasões (de terras urbanas), nos alagados, nos conjuntos habitacionais, nas escolas, nos bairros e nos locais de trabalho, visando a formar uma consciência dos valores da raça'”, completa o documento.

Há registro de que a perseguição continuou até o início de abertura política, com a entrada de João Figueiredo (1979-1985) no poder. O último documento disponível no Arquivo Nacional sobre espionagem aos movimentos negros data de 1981 – quatro anos antes do fim da ditadura militar.

 

Alto poder de contestação

A professora Flávia Rios, da UFF (Universidade Federal Fluminense), afirma que o temor dos militares aos movimentos negros tem vários fatores de influência.

“Um deles é que muitos integrantes do movimento negro também eram integrantes de outras organizações semiclandestinas, ou mesmo clandestinas, de esquerdas políticas organizadas, marxistas, trotskistas, comunistas e outras denominações. Isso os colocava em um circuito já de constante observação da ditadura”, afirma.

Outra questão geradora de incômodo aos militares era que os movimentos traziam ao debate o racismo e a discriminação no Brasil. “Isso ia de encontro ao discurso oficial de democracia racial no país. Enquanto isso, o Estado se representava nacionalmente e internacionalmente como um país que não tinha conflitos, desigualdade nem discriminação”, aponta ela.

Um terceiro fator notado pela professora foi a influência do movimento negro norte-americano e movimentos de libertação dos países africanos. “A questão racial no mundo era bastante emblemática, bastante significativa e de um alto poder mobilizatório de contestação. Em particular, por exemplo, temos os panteras negras, de quem as ideias chegavam às lideranças negras e ativistas negros brasileiros. Havia um temor da ditadura em relação a essas ideias, que eram revolucionárias”, diz.

Na época, a organização cultural de bailes, por exemplo, também era vista com grande preocupação. “No Rio, em São Paulo e na Bahia, os bailes ‘black’ eram recepção das ideias de orgulho negro americano e aglomeravam a juventude negra. Eram grandes salões com espaço para mais de 2.000, 3.000 pessoas reunidas. E esses negros jovens eram tidos como um temor pelo aglomerado, sobretudo das periferias”, afirma a professora.

 

O racismo da ditadura militar brasileira*

Por Silva Shakur

 

Introdução

Há um balanço compartilhado de parte da sociedade brasileira e de uma historiografia sobre o golpe de 1964 a qual expõe a dura perseguição, o assassinato e o desaparecimentos dos militantes de esquerda que se rebelaram contra o regime ditatorial, que apesar de reivindicarem estratégias de orientação “foquista” e “guevarista”, colocaram-se contra o autoritarismo do regime militar.

No entanto, há uma outra história. Também essa de perseguição, assassinato e desaparecimento de trabalhadores negros, de militantes negros de movimentos sociais antirracista, mas que diferentemente daquela outra, essa parte da história da ditadura militar brasileira carrega a marca mais cruel e sanguinária do racismo.

O golpe de 1964 foi um golpe contra a classe trabalhadora e, sem sombra de dúvidas, aprofundou ainda mais o racismo estrutural e a violência contra a população negra. A ditadura militar precisou acentuar ainda mais o preconceito racial para a acumulação de capital e para derrotar o proletariado que vinha sendo, no pré-64, um fator de desestabilização do regime (Estratégia Internacional Brasil – A classe operária na luta contra a Ditadura, p. 164-1980).

Sem percebemos a íntima ligação entre a questão racial e a questão de classe, ficam vedados maiores entendimentos entre a ditadura militar brasileira e o racismo. Acerca dessa relação entre raça e classe Karl Marx numa carta em 1846 a Engels sugeriu que a exploração racial esteve intimamente ligada ao modo de produção, para ele, sem a escravidão do negro “não haveria algodão, e sem o algodão não haveria a indústria moderna”, sendo a escravidão uma “categoria econômica de primordial importância” para o sistema capitalista. (Anderson, 2010, p. 83).

 

Os militares e a democracia racial

A ditadura militar foi uma defensora da democracia racial. A fim de acentuar a exploração econômica e dominar subjetivamente as massas negras, os militares defenderam de maneira irrestrita o mito da democracia racial, que tentava apagar da sociedade brasileira a situação de desigualdade entre negros e brancos a partir da miscigenação e do distanciamento gradual do povo negro em relação à condição escrava.

A pesquisadora Karin Kosling, por exemplo, afirmou que, “no regime militar, o mito da democracia racial e da congregação racial harmônica brasileira fazia parte de um projeto político ideológico”, e que, portanto as denúncias do movimento negro organizado que concorressem para combater esse mito propagandeado pelo regime, certamente acabou sendo alvo de repressão e perseguição política.

O fundamental é que a defesa do mito da democracia racial pelos militares desde 1964 cumpriu um papel-chave na exploração econômica e na dominação capitalista, ao afirmar que não haveria racismo na sociedade brasileira, a ditadura militar e a burguesia brasileira tentaram desviar as explosivas contradições sociais resultado de uma estrutura econômica baseada na escravidão e no racismo.

 

Não se pode falar sobre racismo!

O ditador Costa e Silva, a partir das atribuições conferidas pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), assinou o decreto-lei 510, artigo 33º, que vedava qualquer discussão pública que colocasse em questão o tema da raça, sendo esta prática observada como uma forma de “incitar o ódio e a discriminação racial”. Ora, os militares que defendiam a ideologia da democracia, através de dispositivos bonapartistas do regime, tentaram criar um ambiente que eliminasse do conjunto da sociedade e, sobretudo das massas proletárias, a questão negra, criminalizando e punindo aqueles que ousassem falar sobre discriminação racial e racismo.

Essa foi a senha para perseguir, criminalizar, prender e torturar trabalhadores e militantes de entidades dos movimentos negros e da esquerda brasileira que denunciavam o racismo e a violência policial perpetrados pelos militares. O regime ditatorial se valeu de dispositivos autoritários como o AI-5 para intensificar ainda mais a perseguição e a violência contra negros e negras, sufocando qualquer voz dissonante do regime que denunciasse o cotidiano racista e violento vivido pelos trabalhadores brasileiros.

Enterro de vítima na ditadura militar brasileira. Crédito: Wikipédia.

 

Identidade negra e perseguição policial

A polícia política também cumpriu um papel semelhante e não menos racista. Servindo com um departamento de perseguição aos movimentos sociais, organizações de esquerda e sindicatos, a repressão e perseguição aos negros foi um fator fundamental de sua atuação. Em um documento da Aeronáutica datado de 2/3/1978 enviado ao Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), um informe da Diretoria de Eletrônica e Proteção ao Voo, órgão diretamente vinculado à repressão política do regime ditatorial, descreve dois “suspeitos” da seguinte maneira: “Havia dois homens num ‘opala beje (ano 77 ou 78)’, ao volante um homem magro moreno e cavanhaque e óculos escuros”, ao seu lado “um homem moreno forte, cabelo Black Power”.

Para o sistema de vigilância de um organismo vinculado à polícia política do regime, o fator que condicionou dois homens dentro de um carro a serem suspeitos de algum crime foi a cor negra de sua pele e seu cabelo crespo. Dois homens negros, tendo um deles cabelo black power eram os alvos perfeitos de um regime autoritário que perseguia os negros e as negras que de alguma forma tentavam expressar sua identidade. A perseguição e a criminalização da identidade negra não parou por aí. As batidas policiais, investigações e repressão dos bailes souls eram uma constante, bem como a violência nas periferias e favelas.

 

Conclusão

O golpe de 1964 e a ditadura militar que seguiu durante 20 longos anos teve um inimigo central, os trabalhadores brasileiros e se valeu de expedientes bonapartistas do próprio regime, para intensificar a exploração sobre as massas proletárias e para enriquecer uma burguesia diretamente ligada ao imperialismo. No Brasil, um país de estrutura econômica profundamente marcada pela escravidão e subordinada aos ditames dos centros capitalistas, principalmente os EUA, esse golpe teve que ser direcionado, sobretudo, aos negros. A ditadura militar brasileira se utilizou do racismo, seja a partir de expediente de repressão política, seja pelo mito da democracia racial, para perseguir, matar, torturar e explorar trabalhadores e trabalhadoras negras.

 

Referências

ANDERSON, Kevin B. Marx at the margins. Chicago, 2010.

KOSSLING, Karen Sant’Anna. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob a vigilância do DEOPS/SP. São Paulo, 2007.

PEDRETTI, Lucas. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970. Rio de Janeiro, 2018.

 

*Texto originalmente publicado em 31/03/2019, no Esquerda Diário.

 

Edição: Valdisio Fernandes, Instituto Búzios.

Fonte: Memorias da Ditadura, Esquerda Diário, UOL.

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