Por Samantha Prado
Em debate promovido pela editora Boitempo, Silvia Federici e Sonia Guajajara falam sobre a necessidade de um movimento baseado na luta por justiça social e no afastamento do isolacionismo pregado pelo sistema neoliberal e pelo feminismo disseminado na mídia.
“A transformação só vem a partir do coletivo com consciência política e ecológica. Precisamos de coragem para romper com o neoliberalismo, empatia e sensibilidade para reflorestar o mundo, começando por reflorestar o pensamento”. Com essa fala Sonia Guajajara fechou o debate “Feminismo, comuns e ecossocialismo”, ao lado da autora Silvia Federici e da mediadora Bruna Della Torre.
A iniciativa aconteceu na primeira semana do evento “Feminismo para os 99%” promovido pela editora Boitempo e que conta com apoio do Le Monde Diplomatique Brasil. A conversa teve como foco a importância da expansão da luta feminista por meio da união de pautas da nossa atualidade, como a causa ambiental e indígena.
A pensadora italiana abriu o debate com um alerta sobre a captação do movimento feminista pela mídia e estruturas capitalistas, vendendo-o como uma ideia de luta pelo indivual e não pelo coletivo. Assim, um movimento cuja base deveria ser a crítica ao sistema, passa cada vez mais a prestigiar ações que representam bandeiras vazias e que em muito pouco contribuem para as mulheres em geral. A proliferação da ideia de “girl boss” como um atributo feminista é um dos mais recentes exemplos disso.
É necessário que o feminismo traga perspectiva para pensar o todo – incluindo classe, trabalho, mudança coletiva e raça – para lutar por justiça social, definida como uma luta cotidiana por Silvia. “Acredito na perspectiva que vê a luta da transformação social do ponto de vista da reprodução – o que abre um campo comum onde podemos conectar diferentes lutas”, declarou após apontar a necessidade do movimento feminista se engajar em pautas que ela vê representadas na figura de Sonia Guajajara.
“Falar ainda faz parte de um rompimento de barreira para mulheres indígenas”
Sonia Guajajara relembrou o longo caminho percorrido pelas mulheres indígenas para, agora, começarem a ter espaço e representatividade. Para elas falarem e terem suas vozes ouvidas é necessário romper muitas barreiras. “Eu menina não enxergava o tempo onde nós, indígenas, estaríamos falando por nós mesmos”, revelou. Ela também lembrou as eleições de 2018, a primeira na história do país em que uma mulher indígena fez parte da chapa presidencial: “Precisamos de 518 anos para esse momento chegar, nós ainda somos estranhos dentro da própria sociedade brasileira.”
Nos últimos anos, o termo “feminismo indígena” tem sido utilizado em alguns meios na tentativa de abranger o enfrentamento interseccional (gênero/etnia) vivenciado por essas mulheres. Sonia, porém, atenta que feminismo ainda é um conceito em construção para as mulheres indígenas: “feminismo indígena não é falado por nós, são outras pessoas falando de nós e por nós”.
Os ataques do governo Bolsonaro contra os povos indígenas e suas terras – por meio do descaso com o vírus, o avanço do agronegócio e de mineradoras, garimpo ilegal e madeireiras também foram debatidos no evento. Sonia aponta que houve um crescimento de casos de violência contra mulher dentro das aldeias nesse período, mas nem sequer há dados coletados e sistematizados sobre isso, o que contribui para o silenciamento das vítimas.
Desenvolver vs. envolver: a saída pela coletividade
Silvia e Sonia ainda dialogaram sobre os conceitos de desenvolvimento e envolvimento. A líder indígena trouxe a pauta à tona, lembrando que as e os indígenas sempre foram vistos como um obstáculo para o desenvolvimento do Brasil. Tirar o prefixo “des” faz a diferença. “Desenvolvimento é deixar as pessoas para trás e pensar no lucro. Esse modelo econômico atual é errado. O que precisamos é de um modelo que envolva as pessoas, justiça social e sustentabilidade. Nós queremos envolver”, disse.
Para a autora italiana, precisamos ampliar o conceito de violência e darmos uma nova perspectiva ao trabalho de reprodução social executado pelas mulheres – como criar filhos, cuidar dos mais velhos e das tarefas domésticas. Essas atividades não costumam ser vistas como trabalho de fato e representam a forma como o capitalismo explora até mesmo quem não recebe um salário. “Vivemos em um mundo onde produzir armas é considerado trabalho produtivo, mas criar crianças não”, disse Federici.
Um dos grandes desafios da nossa sociedade é organizar a vida diária de maneira comunitária, e não isolada como prega o capitalismo: a saída é por meio do engajamento e da coletividade. “O desafio é reproduzir a luta e não o capitalismo”, alerta Silvia Federici.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.