“Bidenomics”:
o novo paradigma econômico dos EUA
Se você estudou, praticou ou escreveu sobre política econômica nas últimas décadas, provavelmente conhece certas regras sobre como o mundo tem funcionado: os governos desregulamentam a economia, evitam déficits, liberalizam o comércio, promovem o encolhimento do Estado e confiam nos mercados.
Esse cânone veio a ser conhecido mundialmente como “consenso de Washington” e nos Estados Unidos como neoliberalismo. O último rótulo sempre foi mais popular entre seus críticos do que seus adeptos. O termo descreveu amplamente a política econômica dos líderes ocidentais de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, passando por Bill Clinton e Tony Blair a George W. Bush, Barack Obama e David Cameron”.
A um custo que pode superar US$ 5 trilhões, o equivalente a 25% do PIB americano e quase 4 vezes o PIB brasileiro, o presidente americano Joe Biden está dando início a uma virada sem precedentes, nos últimos 30 anos, na forma de conduzir a economia. Mais até do que os vultosos montantes de recursos envolvidos, os planos de Biden para enfrentar a pandemia e reerguer a economia dos Estados Unidos configuram uma reação radical em relação às políticas econômicas dominantes no mundo ocidental.
Com seu programa de resgate de US$ 1,9 trilhão, já aprovado no Congresso, e o plano de emprego, de US$ 2,2 trilhões em obras de infraestrutura e modernização econômica, ainda em discussão, Biden chega como um contraponto ao Reaganomics e seu legado. O Bidenomics retoma as bases desenvolvimentistas pregadas por John Maynard Keynes, tido como o maior economista do século 20, para a superação da Grande Depressão dos anos 30 do século passado.
Agora, é o gasto público, com o Estado na linha de frente dos investimentos, a mola propulsora da retomada e da expansão econômica.
Não seria de imediato que as novidades do Bidenomics poderiam chegar ao Brasil. Com o atraso característico, as políticas econômicas inspiradas na contração expansionista ainda são dominantes. Sob regras de controle fiscal tão rígidas quanto inexequíveis, das quais o teto de gastos é a expressão mais acabada, e às voltas com um sistema tributário que taxa mais quem pode contribuir menos.
O Plano Biden e os limites do capitalismo desregulado
Por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari
… the idea of a self-adjusting market implied a stark utopia. Such an institution could not exist for any length of time without annihilating the human and natural substance of society; it would have physically destroyed man and transformed his surroundings into a wilderness.” ― Karl Polanyi, The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time
“There is no alternative.” (slogan de campanha de Margaret Tatcher)
Em seu livro mais recente (“The Upswing: How America Came Together a Century Ago and How We Can Do It Again”), o cientista político Robert Putnam explora as características centrais na evolução da sociedade estadunidense e suas oscilações entre o individualismo e o coletivismo. Entre o fim da Guerra Civil e a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o forte dinamismo econômico, que transformou o país na maior economia do mundo, conviveu com desigualdades profundas, perda de vitalidade da sociedade civil e riscos crescentes para a nascente democracia, dado o acúmulo desproporcional de poder e riqueza na elite.
A assim-chamada “Gilded Age” (“Era Dourada”) coincidiu com o predomínio da ideologia liberal, ainda que na prática os Estados Nacionais protegessem as suas empresas da concorrência externa por meio de elevadas tarifas de importação e criassem mercados consumidores e acesso privilegiado a insumos pelas políticas de expansão imperial. Sua crise nos anos entre as guerras permitiu a emergência de uma fase mais igualitária que, por sua vez, começou a ruir nos anos 1970.
O moderno capitalismo desregulado e globalizado se desenvolveu a partir da convergência de duas forças fundamentais: a rebelião das elites econômicas contra as políticas de bem-estar criadas no pós-Segunda Guerra; e o fim da Guerra Fria, com a posterior ascensão da China à condição de potência global. A chegada ao poder de Margaret Thatcher e Ronald Reagan representou o início do longo processo de desmonte do “consenso keynesiano”, segundo o qual o Estado priorizava o pleno emprego e a coesão social. Aquele, por sua vez, foi o produto da traumática ruptura da ordem liberal. A crise de 1929, a ascensão de regimes totalitários, duas guerras mundiais – que implicaram na morte de pelo menos 100 milhões de pessoas – e o medo do avanço do socialismo soviético criaram as condições para a emergência do capitalismo regulado.
Neste novo contexto, houve ampla disseminação de direitos políticos e sociais, consubstanciados na intensa elevação dos gastos sociais (educação, saúde, previdência, seguridade social etc.). A recuperação econômica no pós-guerra se deu pela atuação do Estado na provisão de infraestrutura física (transportes, comunicações, energia etc.) e social, bem como pela regulação de vários setores, particularmente os mercados financeiros. Da mesma forma, o financiamento deste novo modelo implicou em substantiva ampliação da carga tributária, com a introdução de sistemas progressivos.
Entre os anos 1950 e 1970, os países ocidentais de alta renda e o Japão colheram os frutos da combinação entre Estados atuantes e mercados controlados. As massas populacionais não-proprietárias melhoraram de vida, sem que a elite proprietária tenha sido prejudicada de forma objetiva. O pacto keynesiano promoveu o período de maior crescimento da renda e da produtividade no moderno capitalismo. Tal trajetória passou a ser revertida a partir do final dos anos 1970 e, com redobrada intensidade, depois dos anos 1990. Rompeu-se, neste momento, a amalgama que havia criado as condições políticas para a pacto keynesiano, qual seja: o medo do comunismo. A queda do Muro de Berlim e o desmonte da União Soviética minaram as políticas inclusivas da social-democracia.
A credibilidade das políticas de desregulamentação e de redução das capacidades estatais foi comprometida com a crise financeira de 2007-2009. Todavia, nem mesmo ela foi capaz de romper a inércia da ideologia anti-Estado. Nos anos que se seguiram, a intervenção estatal se deu, via política monetária, para socorrer os intermediários financeiros. Muito pouco foi feito para recuperar a vitalidade produtiva e disseminar oportunidades entre indivíduos e empresas de menor porte. Para se colocar em perspectiva, a expansão do balanço dos principais bancos centrais entre 2008 e 2018 foi da ordem de US$ 10 trilhões. Com a pandemia, em apenas um ano foram injetados cerca de US$ 9 trilhões. Nos dois casos, a expansão da base monetária evitou a deflação nos preços dos ativos financeiros e estimulou ciclos de elevação intensa em alguns segmentos, particularmente no mercado acionário. No plano fiscal, os estímulos durante a pandemia chegaram a US$ 10 trilhões em 2020, montante três vezes superior àquele empregado em 2008-2010.
O rancor dos excluídos, particularmente nos países de alta renda, se manifestou politicamente pelo apoio aos movimentos antissistema, dos quais o Brexit e a eleição de Trump tornaram-se os exemplos mais notórios. A pandemia do Covid-19, aprofundou os problemas distributivos e de fragilização social dos segmentos menos vulneráveis. No mundo desenvolvido, em geral, e nos Estados Unidos, em particular, a polarização política e econômica foi alimentada por anos de distribuição desigual dos frutos do progresso e de ampliação das barreiras à mobilidade social ascendente. No “Fiscal Monitor” de abril de 2021, o Fundo Monetário Internacional aponta que os Estados Unidos lideram o ranking da desigualdade distributiva da renda e da riqueza dentre os países de alta renda. Da mesma forma, este estudo reafirma que, desde os anos 1980, houve redução na tributação dos estratos superiores de renda e redução na vitalidade das políticas inclusivas, fenômenos que contribuíram para a concentração dos ganhos derivados do crescimento econômico no decil superior da população.
Às vésperas da posse do seu 46º presidente, a sociedade estadunidense se viu diante de um processo acentuado de polarização e violência, que culminou com a invasão do Capitólio. Tal fato abriu a perspectiva de que o novo governo democrata poderia aprofundar as fraturas da sociedade se optasse por ser simplesmente uma retomada do que fora a administração Obama. A pandemia, a concorrência crescente da China, a perda internacional de prestígio do país, a ameaça produzida pelas mudanças climáticas e a corrosão das instituições sociais eram heranças não somente da gestão Trump, mas de quatro décadas de capitalismo desregulado.
Sim, Há Alternativas
Em 2021, os Estados Unidos estavam, uma vez mais, assolados por problemas similares aos da “Gilded Age” e pelos novos desafios, especialmente a pandemia da COVID-19 e as mudanças climáticas. Por isso mesmo, o presidente afirmou à nação que “… vencer estes desafios – restaurar a alma e assegurar o futuro da América – demanda mais do que palavras.”. De fato, Biden tem sido coerente com o discurso de posse. Em pouco mais de dois meses o novo presidente assinou 37 ordens executivas, muitas delas revertendo medidas da administração Trump em áreas sensíveis como meio ambiente, políticas de gênero, migração, assistência social, dentre outras. E, mais importante, garantiu a aprovação de um amplo pacote de US$ 1,9 trilhão com medidas para mitigar os efeitos sociais, econômicos e sanitários da pandemia.
Poucos dias depois, em 31 de março, foi divulgado o “American Jobs Plan”, onde se prevê a alocação de US$ 2,3 trilhões para renovar a infraestrutura física e social do país. Com isso, espera-se incrementar os investimentos públicos em áreas como energia, transporte e comunicação em 1 ponto percentual do PIB por ano no período de oito anos. Nas demais áreas (reformas de escolas e universidades, pesquisa e desenvolvimento etc.) o incremento seria de 0,5 ponto percentual. O seu financiamento se dará ao longo de um horizonte mais dilatado de tempo – 15 anos – a partir de uma reforma tributária progressista, vale dizer, pela elevação dos impostos das corporações e dos segmentos de alta renda.
A proposta de Biden converge com as estimativas do Mckinsey Global Institute sobre a necessidade de se investir US$ 2,1 trilhões em uma década para recuperar a infraestrutura do país. Sua ambição é moderada, sem quaisquer indícios de uma proclividade estatizante. Ele simplesmente repõe níveis já observados de investimento público e de tributação sobre empresas e ricos. Como nos lembra Paul Krugman, é longa a tradição estadunidense de utilizar grandes obras de infraestrutura para alavancar o (“Bidenomics Is as American as Apple Pie”, NYT, 01/04/2021).
A administração democrata trabalha em um terceiro pacote de estímulos na área social, com ênfase para a ampliação da cobertura de saúde, os subsídios para o cuidado de crianças, a gratuidade do ensino superior, dentre outras. Assim, se o pacote de alívio aos efeitos da pandemia trata dos problemas de curto prazo com um horizonte de execução em 2021-2022, as novas iniciativas miram solucionar os desequilíbrios do passado e pavimentar alternativas para a recuperação econômica e social do país.
A nação mais poderosa do planeta apresenta indicadores de desenvolvimento socioeconômico que estão aquém da autoimagem projetada em sua própria sociedade. No último Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2020), os EUA aparecem na 17ª posição dentre 190 países, com um índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,926. Dos três componentes que definem o IDH, o único em que o desempenho dos EUA é significativamente superior à média dos 66 países classificados como de “desenvolvimento humano muito alto” é a renda per capita. Nos outros dois, expectativa de vida ao nascer e escolaridade, os resultados estadunidenses estão ao redor da média.
No caso da expectativa de vida ao nascer, o indicador estadunidense (78,9 anos) equivale ao de Cuba (78,8 anos) e está muito abaixo dos níveis observados nos países mais longevos: Hong Kong (84,9 anos) e Japão (84,6 anos). Já a expectativa de vida saudável ao nascer nos EUA é de apenas 65,3 anos – 3 anos a menos do que a média dos países de IDH muito alto (68,3 anos) e do que Cuba (68,4 anos) e China (68,5 anos); ou 9 anos a menos do que os países com melhores indicadores neste quesito.
O mesmo acontece quando são analisados dados qualitativos de educação. Os resultados dos EUA estão ao redor da média observada nos países com IDH muito alto, mas abaixo dos primeiros colocados em desenvolvimento humano. Assim, por exemplo, os países escandinavos (Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca), que lideram o ranking geral do IDH, apresentam volumes de gasto público em educação entre 7% e 8% do PIB, contra a média de 5% do PIB nos países com IDH muito alto. Já o poder público estadunidense gasta 4,9% do PIB. Portanto, não causa surpresa o fato de que os EUA estão somente na 13a. posição no ranking dos testes educacionais padronizados da OCDE (PISA).
A vulnerabilidade social e os indicadores de violência também são piores nos EUA em comparação aos países com desenvolvimento humano muito alto: a população encarcerada por 100 mil habitantes é de 4 vezes maior nos EUA (663 versus 173); a taxa de homicídios por 100 mil habitantes é de 5,0 nos EUA contra os 3,0 naquela média. Ainda neste tipo de comparação, os EUA apresentam indicadores sociais piores do que a média de seus pares nos seguintes quesitos: número de médicos e leitos hospitalares por mil habitantes; relação entre o número de alunos em sala de aula e professor; jovens entre 15 e 24 anos que não estão na escola ou trabalhando; para citar alguns.
O “World Competitiveness Report 2019” revela que os EUA são segunda nação mais competitiva do mundo. O modelo multidimensional utilizado pelo Fórum Econômico Mundial destaca o excelente posicionamento estadunidense em aspectos regulatórios, tamanho de mercado e sofisticação do ambiente financeiro e empresarial. Já em outras dimensões, as fragilidades não são desprezíveis: em infraestrutura física o país aparecia somente na 13ª posição dentre os 141 países analisados. A qualidade da saúde (55ª posição), a adoção de novas tecnologias de informação (27ª posição), a estabilidade macroeconômica (37ª posição) e a qualidade geral das instituições (20ª posição) estão claramente desalinhadas com a perspectiva de uma nação que se propõe a estar sempre na liderança global.
O Plano de Biden tem um horizonte de mais longo prazo, sendo mais do que uma política de alívio aos efeitos da pandemia ou de ajuste cíclico do nível de atividades. Ela se direciona ao enfrentamento de gargalos estruturais do desenvolvimento econômico nos marcados das tendências atuais, que enfatizam a importância da qualificação dos recursos humanos, da infraestrutura associada à revolução digital e a renovação dos setores de energia, transportes e produção de manufaturas, dados os efeitos negativos das mudanças climáticas. Portanto, as fragilidades da infraestrutura física e social do país comprometem a competitividade do país. Estes aspectos aparecem no diagnóstico oficial que o fundamentou, qual seja “… reconstruir a infraestrutura do país e reposicionar os Estados Unidos para superar a China.”
A rebelião das elites das últimas quatro décadas está sendo colocada em xeque pela nova administração democrata. Da mesma forma que Franklin. D. Roosevelt, com o New Deal, e Lyndon Johnson, com o Great Society, Joe Biden parece disposto a enfrentar os desequilíbrios gerados pelo capitalismo desregulamentado. Como nos alertou Karl Polanyi, os mercados livres são ficções perigosas, pois produzem desestruturação da vida social e minam a própria possibilidade de preservação das liberdades individuais e da democracia.
(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS
Esta é uma versão resumida e sem referências do texto homônimo depositado no portal da Faculdade de Ciências Econômicas: https://www.ufrgs.br/fce/category/analise/.