Por João Gabriel Telles

Narrativa distópica de autor incontornável para entender o racismo ganha nova edição brasileira agora.

Jim era “um nada”. Da escadaria do banco em que trabalhava, observava o turbilhão de pessoas passar pela Broadway. Era um anônimo na multidão. Sua sorte foi estar no porão da instituição financeira quando um cometa atingiu a cidade de Nova York.

Ao sair daquele lugar imundo, onde procurava os arquivos que seu chefe lhe pedira, Jim esbarra no corpo frio e inerte do escriturário do porão. Nos demais andares do prédio, mais corpos caídos. Ele sai para a rua, onde a cena se repete. A cidade está imersa em silêncio e Jim, em solidão. Ele fora o único a escapar dos gases tóxicos trazidos pelo cometa.

Publicado em 1920 na coletânea “Darkwater”, “O Cometa” é um conto escrito pelo intelectual americano W.E.B. Du Bois. Um dos primeiros negros a realizar um doutorado em Harvard e autor de vasta obra sociológica e historiográfica, ele também escreveu poemas e três autobiografias. De modo geral, sua obra se debruça sobre uma questão, no entanto —as condições de vida após a abolição da escravidão nos Estados Unidos, em 1865.

Pensador fundamental para as ciências sociais no século 20, ele atuou na criação do pan-africanismo e do movimento pelos direitos civis. Sua obra mais célebre, “As Almas do Povo Negro”, de 1909, foi pioneira ao estudar a modernidade a partir do ponto de vista da raça, e não era acessível aos leitores brasileiros até março deste ano, quando ganhou nova tradução pela editora Veneta.

Em maio, a editora Fósforo lançou o conto “O Cometa” e atualmente planeja publicar mais livros do autor, cuja obra passa por um resgate editorial.

Um dos motivos para a publicação tardia do autor no Brasil seria a forte influência antirracialista no meio acadêmico, que menosprezava os efeitos da desigualdade entre raças para estudar a sociedade, diz Matheus Gato, professor de sociologia da Unicamp e tradutor de Du Bois. Autor visionário, ele antecipou debates relevantes no contexto brasileiro atual, como a impossibilidade de conciliar democracia e racismo.

Mesmo quando escreve um conto apocalíptico em que imagina o fim do mundo, como em “O Cometa”, Du Bois não deixa de abordar a questão racial.

Naquela Nova York distópica e silenciosa, o protagonista negro entra no restaurante de um hotel majestoso, onde se serve de comida farta enquanto pensa “ontem eles não teriam me servido”. Ainda atormentado, parte rumo ao Harlem, bairro historicamente habitado pela comunidade negra. No entanto, quando passa pelo Upper East Side, região nobre às margens do Central Park, um grito o interrompe.

Vencidas as escadas do prédio de onde veio o grito, a porta se abre e revela Julia, uma mulher branca, vestida com requinte. O conflito racial se instala: ela não imaginava um homem como aquele para vir resgatá-la. “Ontem”, o protagonista pensa, “ela mal o teria olhado”.

“O Cometa” foi escrito num contexto de segregação racial nos Estados Unidos, difundida sob a ideologia da “regra de uma gota”, segundo a qual bastava um ancestral africano para alguém ser considerado negro. Tulio Custódio, doutorando em sociologia pela USP, a Universidade de São Paulo, diz que “a miscigenação seria uma ameaça para o povo branco, como um processo de degeneração.”

Ao criar uma história em que a única salvação da espécie humana ocorreria por meio de um relacionamento interracial, Du Bois questiona: o fim do mundo é capaz de demolir o muro que separa negros e brancos?

O conto tem sido lido sob a ótica do afropessimismo, movimento que descarta a possibilidade de reconciliação entre brancos e negros. Segundo Matheus Gato, há uma proximidade com o movimento na medida em que há um recado —“só com o fim do mundo seria possível uma ideia de humanidade mais abrangente”.

O conto, porém, extrapola as fronteiras americanas. Tulio Custódio diz que, em solo brasileiro, a defesa da “democracia racial” é uma tentativa histórica de interditar a discussão sobre racismo. Uma vez que Jim, a partir de um apocalipse, pode transitar pela cidade e passa a ser visto em pé de igualdade pela mulher branca, ele experimenta a vida de um cidadão comum e se sente pela primeira vez um ser humano.

Matheus Gato também encontra paralelos do conto com a realidade brasileira, já que o enredo interroga “o limite do nosso humanismo, ou seja, um humanismo que não se estende aos pobres, à periferia, às pessoas negras”.

Entre outras atividades, Du Bois foi pioneiro da sociologia quantitativa. Ele coletou dados e desenhou infográficos à mão. “Modernos e impactantes, [são] uma tradução visual do estilo literário do autor”, afirma Elisa Von Randow, responsável pelo projeto gráfico da edição da Fósforo. O livro, aliás, traz alguns desses gráficos. A capa estampa um deles, em que círculos coloridos são sobrepostos, remetendo “a um cometa, uma estrela, a um código, um mistério”. Quem sabe, a um alvo.

 

Fonte: Folhapress.

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