Primeiro estudo sobre o tema no Brasil identificou que violências múltiplas contra meninas e adolescentes, no ambiente escolar, apresentam desigualdades raciais: o acúmulo de diferentes violências é maior entre as pretas. O levantamento considerou como polivitimização os casos em que uma mesma adolescente relatou já haver sofrido os três eventos: bullying, violência física e relação sexual forçada.
Artigo publicado na revista Racial and Ethnic Health Disparities (em tradução livre “Disparidades de saúde raciais e étnicas”) documentou os riscos desiguais de exposição a diferentes formas de violência entre adolescentes pretas, pardas, indígenas, asiáticas e brancas no Brasil. A análise foi feita a partir dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE, 2015), com 14.809 adolescentes com idade entre 15 e 19 anos. São coautoras as pesquisadoras do Centro de Integração de Dados e Conhecimento (CIDACS-Fiocruz Bahia), Dandara de Oliveira Ramos, que também integra o Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Emanuelle Freitas Goes e Andrêa Jacqueline Fortes Ferreira.
O estudo “Intersection of Race and Gender in Self-Reports of Violent Experiences and Polyvictimization by Young Girls in Brazil” (Intersecção de Raça e Gênero em Autorrelatos de Experiências Violentas e Polivitimização por Meninas no Brasil) analisou as violências relatadas em relação à características como raça ou cor da pele, religião, região ou origem, orientação sexual, aparência do corpo, aparência do rosto, e outras.
Entre as estudantes que participaram da pesquisa, 47,28% se autentificaram como pardas, 29,16% como brancas, 15,28% como pretas, 4,80% como amarelas, e 3,29% como indígenas.
Quanto à localização geográfica, considerando a raça/cor de pele, a pesquisa demonstrou que meninas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste e Sudeste, respectivamente, relataram serem menos vítimas de bullying do que meninas do Sul. Menores taxas de relação sexual forçada também foram relatadas, respectivamente, entre meninas do Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Norte comparado com a região Sul. Quanto às agressões físicas, as meninas do Sudeste e do Centro-Oeste foram as que mais relataram esse tipo de violência.
A pesquisa concluiu que meninas do Nordeste, Centro-Oeste, Norte e Sudeste, respectivamente, relataram menos ocorrências de polivitimização do que as meninas da região Sul.
Considerado o fator raça/cor, a pesquisa identificou a predominância de relatos de bullying entre meninas e adolescentes pretas (55,02%), sendo a maioria delas motivadas pela raça/cor da pele. Esse grupo também teve a maior porcentagem de relatos de polivitimização. Já as meninas e adolescentes descendentes asiáticas reportaram maiores taxas de violência física, enquanto as indígenas maiores taxas de relações sexuais forçadas.
O estudo conclui que a raça/cor da pele foi significantemente mais associado a todas as formas de violência e à polivitimização. Trata-se do primeiro estudo a abordar a questão no país. A falta de tais evidências na literatura pode ser interpretada em si mesma como resultado das narrativas racistas e patriarcais que ainda estão na base do conhecimento da vida das meninas e mulheres e de seus encontros com a violência.
POR QUE ESSE ESTUDO FOI FEITO?
A violência contra mulheres e meninas é uma violação dos direitos humanos e, também, é reconhecida como um problema de saúde pública. No Brasil, são escassos os estudos que analisam a violência baseada no gênero e a polivitimização, definida como o acúmulo de vitimizações por diferentes formas de violência. Em que pese a violência de gênero esteja em uma dinâmica que vitimiza as mulheres, isso não ocorre de forma homogênea, porque com as intersecções de raça/etnia, classe, geração e marcadores de opressão correlatos essa dinâmica será aprofundada. Com isso, sofrer violências para as meninas tem questões assimétricas de gênero, assim como as questões que localizam essa corporeidade nas dimensões da racialidade.
O QUE O ESTUDO ENCONTROU?
As autoras encontraram desigualdades raciais marcantes nos riscos para todas as formas de violência. O principal achado do estudo foram os riscos até três vezes maiores de polivitimização entre adolescentes pretas quando comparadas a adolescentes brancas de mesmo nível socioeconômico, região de residência e idade. O estudo considerou como polivitimização os casos em que uma mesma adolescente relatou já haver sofrido os três eventos, bullying, violência física e relação sexual forçada.
Desigualdades raciais também foram encontradas na frequência específica dos autorrelatos de bullying, violência física, e relação sexual forçada. Sendo o bullying a forma de violência mais frequente contra meninas pretas (com destaque para o bullying motivado pela raça/cor), a violência física a forma mais frequente contra as adolescentes asiáticas e o sexo forçado contra as meninas indígenas.
O QUE ESSES ACHADOS SIGNIFICAM?
Repercussões destas evidências são esperadas, principalmente, no desenvolvimento das políticas de proteção à violência dentro e fora do ambiente escolar. Considerando as fortes desigualdades raciais encontradas, espera-se que as estratégias de enfrentamento não sejam desenvolvidas sem o olhar específico para essa questão. Programas anti-bullying, por exemplo, devem estar comprometidos com o enfrentamento do racismo no espaço escolar, e com o engajamento de professores, gestores e demais profissionais da educação neste processo.
A marca histórica do racismo patriarcal revela porque meninas indígenas sofrem mais violência sexual, e a hipersexualização dos corpos de mulheres indígenas, pretas e pardas, vitimas recorrentes de estupros, ainda é um reflexo desta ferida nos dias de hoje.
Ao expor o risco de agressão física e violência sexual entre adolescentes asiáticas e indígenas e pretas, respectivamente, é urgente o desenvolvimento de políticas públicas e ações específicas, que considerem as dimensões interseccionais que atravessam meninas e adolescentes, no enfrentamento a violência contra as mulheres devem considerar a dimensão racial. Assim como a ampliação de mecanismos legais de denúncia e acesso a redes de proteção e cuidado da saúde, principalmente no ambiente escolar.
Um dos pontos importantes do estudo é que foi desenvolvido a partir de dados de acesso aberto, amplamente disponíveis no site da PeNSE-IBGE, e encorajam outros(as) pesquisadores(as) a explorarem esses dados para a discussão dos efeitos das desigualdades raciais e do racismo na saúde de crianças e adolescentes no Brasil.
Fonte: Catarinas.