Por Renato Sztutman

Muito se tem falado hoje em dia sobre o animismo. E mais, muito se tem falado sobre uma necessidade de retomar o animismo – uma forma de responder ao projeto racionalista da modernidade, que transformou o ambiente em algo inerte, opaco, sinônimo de recurso, mercadoria. Em tempos de pandemia, constatamos que algo muito importante se perdeu na relação entre os sujeitos humanos e o mundo que eles habitam, e isso estaria na origem da profunda crise que vivemos.

Animismo é, em princípio, um conceito antropológico, proposto por Edward Tylor, em Primitive Culture (1871), para se referir à forma mais “primitiva” de religião, aquela que atribui “alma” a todos os habitantes do cosmos e que precederia o politeísmo e o monoteísmo. O termo “alma” provém do latim anima – sopro, princípio vital. Seria a causa mesma da vida, bem como algo capaz de se desprender do corpo, viajar para outros planos e tempos. O raciocínio evolucionista de autores como Tylor foi refutado por diferentes correntes da antropologia ao longo do século 20, embora possamos dizer que ainda seja visto entranhado no senso comum da modernidade. A ideia de uma religião embrionária, fundada em crenças desprovidas de lógica, perdeu lugar no discurso dos antropólogos, que passaram a buscar racionalidades por trás de diferentes práticas mágico-religiosas.

Uma reabilitação importante do conceito antropológico de animismo aparece com Philippe Descola, em sua monografia “La nature domestique” (1986), sobre os Achuar da Amazônia equatoriana. Descola demonstrou que, quando os Achuar dizem que animais e plantas têm wakan (“alma” ou, mais precisamente, intencionalidade, faculdade de comunicação ou inteligência), isso não deve ser interpretado de maneira metafórica ou como simbolismo. Isso quer dizer que o modo de os Achuar descreverem o mundo é diverso do modo como o fazem os naturalistas (baseados nos ditames da Ciência moderna), por não pressuporem uma linha intransponível entre o que costumamos chamar Natureza e Cultura. O animismo não seria mera crença, representação simbólica ou forma primitiva de religião, mas, antes de tudo, uma ontologia, modo de descrever tudo o que existe, associada a práticas. Os Achuar engajam-se em relações efetivas com outras espécies, o que faz com que, por exemplo, mulheres sejam tidas como mães das plantas que cultivam, e homens como cunhados dos animais de caça.

Para Descola, a ontologia naturalista não pode ser tomada como único modo de descrever o mundo, como fonte última de verdade. Outros três regimes ontológicos deveriam ser considerados de maneira simétrica, entre eles o animismo. Esse ponto foi desenvolvido de maneira exaustiva em Par-delà nature et culture (2005), no qual o autor se lança em uma aventura comparatista cruzando etnografias de todo o globo. O animismo inverte o quadro do naturalismo: se neste último caso a identificação entre humanos e não humanos passa pelo plano da fisicalidade (o que chamamos corpo, organismo ou biologia), no animismo essa mesma identificação se dá no plano da interioridade (o que chamamos alma, espírito ou subjetividade). Para os naturalistas, a alma seria privilégio da espécie humana, já para os animistas é uma mesma “alma humana” que se distribui entre todos os seres do cosmos.

A ideia de perspectivismo, que autores como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima atribuem a cosmologias ameríndias, estende e transforma a de animismo. O perspectivismo seria, grosso modo, uma teoria ou metafísica indígena que afirma que (idealmente) diferentes espécies se têm como humanas, mas têm as demais como não humanas. Tudo o que existe no cosmos pode ser sujeito, mas todos não podem ser sujeitos ao mesmo tempo, o que implica uma disputa. Diz-se, por exemplo, que onças veem-se como humanas e veem humanos como presas. O que os humanos veem como sangue é, para elas, cerveja de mandioca, bebida de festa. Onças e outros animais (mas também plantas, astros, fenômenos meteorológicos) são, em suma, humanos “para si mesmos”. Um xamã ameríndio seria capaz de mudar de perspectiva, de se colocar no lugar de outrem e ver como ele o vê, portanto de compreender que a condição humana é partilhada por outras criaturas.

Como insiste Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem (2002), a perspectiva está nos corpos, conjuntos de afecções mais do que organismos. A mudança de perspectiva seria, assim, uma metamorfose somática e se ancoraria na ideia de um fundo comum de humanidade, numa potencialidade anímica distribuída horizontalmente no cosmos. Se o perspectivismo é o avesso do antropocentrismo, ele não se separa de certo antropomorfismo, fazendo com que prerrogativas humanas deixem de ser exclusividade da espécie humana, assumindo formas as mais diversas.

O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2010), traz exemplos luminosos desses animismos e perspectivismos amazônicos. Toda a narrativa de Kopenawa está baseada em sua formação como xamã yanomami, que se define pelo trato com os espíritos xapiripë, seres antropomórficos que nada mais são que “almas” ou “imagens” (tradução que Albert prefere dar para o termo utupë) dos “ancestrais animais” (yaroripë). Segundo a mitologia yanomami, os animais eram humanos em tempos primordiais, mas se metamorfosearam em seus corpos atuais. O que uniria humanos e animais seria justamente utupë, e é como utupë que seus ancestrais aparecem aos xamãs. Quando os xamãs yanomami inalam a yãkoana (pó psicoativo), seus olhos “morrem” e – mudando de perspectiva – eles acessam a realidade invisível dos xapiripë, que se apresentam em uma grande festa, dançando e cantando, adornados e brilhosos. O xamanismo yanomami – apoiando-se em experiências de transe e sonho – é um modo de conhecer e descrever o mundo. É nesse sentido que Kopenawa diz dos brancos, “povo da mercadoria”, que eles não conhecem a terra-floresta (urihi), pois não sabem ver. Onde eles identificam uma natureza inerte, os Yanomami apreendem um emaranhado de relações. O conhecimento dessa realidade oculta é o que permitiria a esses xamãs impedir a queda do céu, catalisada pela ação destrutiva dos brancos. E assim, insiste Kopenawa, esse conhecimento passa a dizer respeito não apenas aos Yanomami, mas a todos os habitantes do planeta.

Embora distintas, as propostas de Descola e de Ingold buscam na experiência animista um contraponto às visões naturalistas e racionalistas, que impõem uma barreira entre o sujeito (humano) e o mundo. Como propõe Viveiros de Castro, essa crítica consiste na “descolonização do pensamento”, pondo em xeque o excepcionalismo humano e a pretensão de uma ontologia exclusiva detida pelos modernos. Contraponto e descolonização que não desembocam de modo algum na negação das ciências modernas, mas que exigem imaginar que é possível outra ciência ou que é possível reencontrar o animismo nas ciências. Tal tem sido o esforço de autores como Bruno Latour e Isabelle Stengers, expoentes mais expressivos dos science studies: mostrar que a ciência em ação desmente o discurso oficial, para o qual conhecer é desanimar (dessubjetivar) o mundo, reduzi-lo a seu caráter imutável, objetivo.

No livro Sobre o culto moderno dos deuses “fatiches” (1996), Latour aproxima a ideia de fetiche nas religiões africanas à ideia de fato nas ciências modernas. Um fetiche é um objeto de culto (ou mesmo uma divindade) feito por humanos e que, ao mesmo tempo, age sobre eles. Com seu trabalho etnográfico em laboratórios, Latour sugeriu que os fatos científicos não são meramente “dados”, mas dependem de interações e articulações em rede. Num laboratório, moléculas e células não seriam simplesmente objetos, mas actantes imprevisíveis, constantemente interrogados pelo pesquisador. Em seu pioneiro Jamais fomos modernos (1991), Latour assume que fatos científicos são em certo sentido feitos, e só serão aceitos como fatos quando submetidos à prova das controvérsias, isto é, quando conseguirem ser estabilizados como verdades.

Isabelle Stengers vai além da analogia entre fatos (“fatiches”) e fetiches para buscar na história das ciências modernas a tensão constitutiva com as práticas ditas mágicas. Segundo ela, as ciências modernas se estabelecem a partir da desqualificação de outras práticas, acusadas de equívoco ou charlatanismo. Ela acompanha, por exemplo, como a química se divorciou da alquimia, e a psicanálise, do magnetismo e da hipnose. Em suma, as ciências modernas desqualificam aquilo que está na sua origem. E isso, segundo Stengers, não pode ser dissociado do lastro entre a história das ciências e a do capitalismo. Em La sorcellerie capitaliste (A feitiçaria do capitalismo, 2005), no diálogo com a ativista neopagã Starhawk, Stengers e Philippe Pignarre lembram que o advento da ciência moderna e do capitalismo nos séculos 17 e 18 não se separa da perseguição às práticas de bruxaria lideradas por mulheres. Se o capitalismo, ancorado na propriedade privada e no patriarcado, emergia com a política dos cercamentos (expulsão dos camponeses das terras comuns), a revolução científica se fazia às custas da destruição de práticas mágicas. Stengers e Pignarre encontram no ativismo de Starhawk e de seu grupo Reclaim, que despontou na Califórnia no final dos anos 1980, um exemplo de resistência anticapitalista. Para Starhawk, resistir ao capitalismo é justamente retomar (reclaim) práticas – no caso, a tradição wicca, de origem europeia – que foram sacrificadas para que ele florescesse.

Retomar a magia, retomar o animismo seria, para Stengers, uma forma de existência e de resistência. Como escreveu em Cosmopolíticas (1997), quando falamos de práticas desqualificadas pelas ciências modernas, não deveríamos apenas incorrer em um ato de tolerância. Não se trata de considerar a magia uma crença ou “cultura”, como fez-se na antropologia da época de Tylor e até pouco tempo atrás. Ir além da “maldição da tolerância” é levar a sério asserções indígenas, por exemplo, de que uma rocha tem vida ou uma árvore pensa. Stengers não está interessada no animismo como “outra” ontologia: isso o tornaria inteiramente exterior à experiência moderna. Ela tampouco se interessa em tomar o animismo como verdade única, nova ontologia que viria desbancar as demais. Mais importante seria experimentá-lo, seria fazê-lo funcionar no mundo moderno.

Que outra ciência seria capaz de retomar o animismo hoje? Eis uma questão propriamente stengersiana. Hoje vivemos mundialmente uma crise sanitária em proporções jamais vistas, que não pode ser dissociada da devastação ambiental e do compromisso estabelecido entre as ciências e o mercado. A outra ciência, diriam Latour e Stengers, seria a do sistema terra e do clima, que tem como marco a teoria de Gaia, elaborada por James Lovelock e Lynn Margulis nos anos 1970. Gaia é para esses cientistas a Terra como um organismo senciente, a Terra como resultante de um emaranhado de relações entre seres vivos e não vivos. Poderíamos dizer que Gaia é um conceito propriamente animista que irrompe no seio das ciências modernas, causando desconfortos e ceticismos. O que Stengers chama de “intrusão de Gaia”, em sua obra No tempo das catástrofes (2009), é uma reação ou resposta do planeta aos efeitos destruidores do capitalismo, é a ocorrência cada vez mais frequente de catástrofes ambientais e o alerta para um eventual colapso do globo. Mas é também, ou sobretudo, um chamado para a conexão entre práticas não hegemônicas – científicas, artísticas, políticas – e a possibilidade de recriar uma inteligência coletiva e imaginar novos mundos.

O chamado de Stengers nos obriga a pensar a urgência de uma conexão efetiva entre as ciências modernas e as ciências indígenas, uma conexão que retoma o animismo, reconhecendo nele um modo de engajar humanos ao mundo, contribuindo assim para evitar ou adiar a destruição do planeta. Como escreve Ailton Krenak, profeta de nosso tempo, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”. Em outras palavras, quando desanimamos o mundo, o deixamos à mercê de um poder mortífero. Retomar o animismo surge como um chamado de sobrevivência, como uma chance para reconstruir a vida e o sentido no tempo pós-pandêmico que há de vir.

 

Fonte:  Revista Cult.

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