Por Marcela Boni Evangelista
Precisamos falar sobre aborto historicamente
É muito comum associar o aborto ou a necessidade de interromper uma gestação com atos de irresponsabilidade, geralmente vinculados a comportamentos femininos considerados inadequados. Paralelamente, os homens são eximidos de sua parcela de relevância, e o ônus recai de forma intensa sobre as mulheres.
Precisamos falar sobre aborto! Mas precisamos fazê-lo historicamente. Desde os tempos mais remotos é possível identificar a ocorrência de interrupções das gestações, as quais ao longo dos séculos ganharam significados distintos diante de formas de ser e pensar em transformação. Se, em um primeiro momento, podemos associá-las a necessidades de sobrevivência diante de deslocamentos populacionais de grupos ainda nômades, com a sedentarização novas demandas seriam introduzidas às sociedades em formação. Os nascimentos, por sua vez, podiam assumir importância variada, que iam da própria manutenção da espécie até a garantia de braços para o trabalho ou mesmo de cuidados para os integrantes mais velhos da comunidade.
O aborto, a menstruação, a contracepção, o parto e a amamentação, experiências ligadas ao universo das mulheres, que detinham os conhecimentos mais apurados acerca de cada necessidade ligada aos corpos femininos, faziam com que estas soubessem as formas de lidar com situações indesejadas. Assim, redes de apoio se formavam apoiadas em trocas de saberes. Esta condição se estendeu ao longo de muito tempo e configura o que seria uma primeira etapa na compreensão da trajetória histórica do aborto. Segundo Giulia Galeotti, trata-se de um momento em que o feto se confundia com o corpo da mulher, ainda protagonista das decisões acerca dos encaminhamentos das gestações e suas interrupções.
O período conhecido como Idade Média, muitas vezes identificado como uma fase obscurantista e de cerceamento de liberdades, tem sido revisitado à luz de interpretações que apresentam versões alternativas, onde as mulheres possuíam certo domínio sobre o próprio corpo, assim como significativa atuação comunitária. Esta situação, tendo em vista especialmente a história europeia, mudaria drasticamente com a aproximação da “Modernidade”, que seria marcada pela perseguição sistemática às mulheres que representassem quaisquer ameaças ao controle, que passava a ser exercido cada vez mais efetivamente pelo patriarcado, pelo Estado e pela Igreja. Silvia Federicci é uma referência importante para tratar sobre este período e, em seu livro “O calibã e a bruxa”, discorre justamente sobre esta fase da história, trazendo ainda considerações sobre os resultados dos contatos entre europeus e povos africanos e ameríndios, que receberiam tratamento semelhante às mulheres acusadas de bruxaria em terras do “Velho Mundo”.
Domínio masculino e mito do amor materno
Avanços nas ciências e na medicina, em particular, modificaram sensivelmente este estado de coisas, promovendo um deslocamento no que se refere aos conhecimentos sobre os corpos das mulheres e suas experiências singulares, que se voltariam gradativamente para o domínio “masculino”. Cada vez mais medicalizada, a vivência da gestação passaria a ser controlada por homens “especializados”, enquanto parteiras pautadas por métodos tradicionais seriam cada vez mais desqualificadas. A invenção de novos equipamentos permitiu a realização de exames que identificavam e separavam os corpos das mães e dos fetos, garantindo novo status para ambos, que seriam, então, considerados de forma individualizada. Esta “separação” também foi utilizada por agentes políticos como recurso de maior controle sobre a natalidade, o que foi associado a interesses de grupos religiosos e produziu efeitos importantes sobre decisões que poderiam ser tomadas pelas mulheres.
Discursos formulados neste período, que podemos situar em meados do século XVIII, incentivavam comportamentos que começariam a ser identificados como adequados e, aos poucos, alimentaram a ideia de naturalização da maternidade e do amor materno. Elizabeth Badinter é uma autora que, na década de 1980, publica o livro “Um amor conquistado: o mito do amor materno”, onde descreve tal transformação acerca das condutas esperadas por parte das mulheres. Neste sentido, a maternidade enquanto função social a ser por estas desempenhada, as conduz para a dimensão privada da existência, o que já no século XIX assume contornos condizentes com sua naturalização.
Importa aqui ressaltar o componente de classe que orienta tais postulados, uma vez que as mulheres pobres e, em âmbito colonial, escravizadas, experienciam a maternidade de maneiras muito diversas. Seja de forma compulsória, como atesta a condição cativa de inúmeras africanas e suas descendentes em solo brasileiro ou mesmo americano de modo mais amplo, seja na Europa, onde temos como exemplos as amas de leite mercenárias, que abasteciam com seu leite os rebentos da elite enquanto aos seus próprios filhos precisavam racionar o mesmo alimento, a maneira como a maternidade é apresentada confere também novos dilemas à experiência do aborto.
Criminalização
Legislações são elaboradas e delineiam destinos ao criminalizar a prática do aborto. No Brasil, por exemplo, mesmo condenada ou mal vista perante a igreja, somente no Código Criminal do Império, no século XIX, é mencionada como crime pela primeira vez. A criminalização jamais impediu, contudo, a realização de abortos, que somente se tornaram ainda mais arriscados para a vida das mulheres, sendo motivo de grande número de óbitos maternos. A literatura do final dos novecentos nos oferece exemplo na obra de Figueiredo Pimentel que, no livro “O aborto”, narra uma história de ficção que muito se aproxima do teor moralista que acompanha o tema, ao mesmo tempo em que expõe os riscos aos quais inúmeras mulheres se colocavam quando necessitavam interromper uma gestação.
Trabalhos acadêmicos que se debruçaram sobre o início do século XX, como o de Fabíola Rohden “A arte de enganar a natureza”, trazem dados relevantes sobre a problemática quando, entre outras explanações, revelam o papel das chamadas “fazedoras de anjos”, mulheres que ofereciam seus “serviços” ou cuidados àquelas que precisassem de auxílio no processo de aborto. O mesmo tema está registrado em obra contundente no quadro de Pedro Weingartner, exposta na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
A insistência das mulheres em continuar abortando mesmo com tantas restrições é o que, de fato, nos interessa e chama a atenção, demonstrando que maior que os medos envolvidos, estão as necessidades e motivações que precisam ser investigadas de forma mais delicada.
Na segunda metade do século XX, durante a intensificação de movimentos feministas, o aborto aparece como pauta unificadora, capaz de contemplar, apesar das particularidades, mulheres de diferentes classes, raças, gerações, religiões. Em países europeus e nos Estados Unidos, novas leis são implementadas para descriminalizar o aborto ainda nas décadas de 60 e 70. O caso francês é descrito em pormenores na obra de Simone Veil “Uma lei para a história: a legalização do aborto na França”, onde os debates constitucionais são pautados pelos discursos de uma mulher que recorre, como argumentos válidos, aos próprios significados da maternidade. Ou seja, o aborto e a luta por sua legalização necessariamente passam pela afirmação da condição da maternidade enquanto mote que legitime as decisões das mulheres.
No Brasil, onde vivia-se na mesma época período de exceção, a luta das mulheres pelo aborto dividia espaço com demandas por vezes consideradas mais urgentes. Isto, contudo, não impediu que mulheres exiladas se mobilizassem em discussões internacionais e motivassem seus desdobramentos em território brasileiro. Ao mesmo tempo, iniciativas ligadas à imprensa feminista trouxeram esta discussão em periódicos como “Nós Mulheres”, “Brasil Mulher” e “Mulherio” que, ao longo das décadas de 70 e 80 mobilizaram reflexões e debates sobre a situação das mulheres brasileiras, incluindo a questão do aborto em suas pautas.
O período da Constituinte revela novas tentativas por meio de emendas populares que, apesar de não resultarem em conquistas efetivas, demarcam na história do país a necessidade de discutir um tema que atravessa a história das mulheres ao longo dos tempos. Tais contextos podem ser aprofundados na obra de Amelinha Teles e Rosalina Santa Cruz Leite “Da guerrilha à imprensa feminista”.
O tema ainda vem à tona em conferências internacionais, como a realizada em 1995 em Beijing, que incentivam os governos a assumirem o trato com os direitos sexuais de reprodutivos e a reverem a legislação sobre o aborto. Mesmo signatário de tais instrumentos legais, o Brasil não avança de modo considerável neste campo, a não ser no caso da ampliação dos casos de aborto legal, que passam a incluir, em 2012, a situação de anencefalia comprovada dos fetos.
Diante de avanços importantes, mais recentemente acompanhados em países vizinhos, como Uruguai e Argentina, o Brasil tem vivido inegáveis retrocessos quando se trata deste tema. A despeito disto, em 2018 foi de notável importância a realização de audiências públicas sobre o tema, onde se posicionaram representantes do governo e da sociedade civil com opiniões contrastantes. A reverberação midiática, contudo, não foi capaz de mobilizar setores mais distanciados do debate, embora muito próximos da realidade que se estava discutindo.
O avanço conservador em nosso país pode ser realçado em casos alarmantes envolvendo estupros e abusos em que, ainda assim, autoridades assumem postura denominada “a favor da vida”, como se mulheres que abortam fossem contra. A situação de uma criança estuprada durante anos por um familiar e grávida aos 10 anos foi palco de acusações infundadas e afirmações que reforçam o papel que naturaliza a maternidade independente da vontade da mulher ou sua condição de consentimento.
Fala-se sobre vidas, mas de que vidas estamos falando, afinal?
É muito comum associar o aborto ou a necessidade de interromper uma gestação com atos de irresponsabilidade, geralmente vinculados a comportamentos femininos considerados inadequados. Paralelamente, os homens são eximidos de sua parcela de relevância, e o ônus recai de forma intensa sobre as mulheres. Neste processo de julgamento, fala-se: “na hora do bem bom não pensou”, “com tantos métodos, não se preveniu porque não quis”, ou ainda, “se fez, agora que aguente”. É nítido que tais argumentos de voltam para as mulheres, as quais geralmente são também responsabilizadas pelos cuidados dispensados aos filhos, cuidados que se estendem, por vezes, por toda a vida de sua prole. Curiosamente, são estas mesmas pessoas, cuja responsabilidade é exigida, as que são impedidas de tomar as próprias decisões sobre seus corpos e destinos. Tratadas como incapazes, são infantilizadas até que se justifique a maternidade como destino e desejo inatos.
Experiências femininas
A academia tem sido espaço importante de reflexões e produção de dados e conhecimentos sobre o tema, o que acreditamos seja um passo essencial para a aceitação deste como fenômeno social de relevância e que merece o devido tratamento das autoridades competentes. A última “Pesquisa Nacional do Aborto”, de 2016, revelou a magnitude desta realidade, além de ter permitido traçar um perfil sobre as mulheres que recorrem às interrupções voluntárias de gestações. Ao afirmar que uma em cada cinco mulheres realizou um aborto aos 40 anos, nos afeta e sensibiliza a olhar cada mulher por quem passamos no nosso dia a dia como pessoas que podem ou poderão, em algum momento, precisar passar por essa experiência. A pesquisadora Flávia Biroli tem sido referência fundamental para refletir sobre o tema, sobretudo, a partir de seus aspectos políticos e as dimensões sociais que reverberam na contemporaneidade.
Diante de uma realidade que não podemos captar em sua integridade, pela precariedade dos dados e pelo silenciamento provocado pela criminalização e pela estigmatização, voltamos para a possibilidade de compreender esta experiência enquanto um fenômeno social, mas também subjetivo, íntimo e marcado por singularidades.
Foi movida por tais constatações que desenvolvi minha pesquisa de doutorado em História Social na USP, que transcorreu entre 2011 e 2017, amparada pelos procedimentos metodológicos da história oral desenvolvidos no Núcleo de Estudos em História Oral da USP (NEHO-USP). Considerei que mais que números, este tema é permeado por experiências cuja subjetividade necessita ser considerada e que pode fomentar reflexões acerca do que motiva os abortos e como podemos, por meio destas histórias, interpretar uma dinâmica social e histórica. Entrevistei 16 pessoas, sendo 13 mulheres e 3 homens e, a partir de suas histórias de vida, pude traçar um panorama plural sobre o aborto no Brasil na contemporaneidade. Cada narrativa fala de sua/seu protagonista, mas representa inúmeras outras pessoas, algo que pude constatar quando da publicação recente de parte da pesquisa no livro “O aborto na vida: experiências femininas”, onde publicizo as histórias das 13 mulheres que dividiram comigo suas histórias e experiências de aborto.
Para além das nuanças inerentes ao que cada mulher poderia dizer sobre sua experiência, fato é que os abortos seguem acontecendo, demonstrando em uma interpretação não muito prosaica, um ato não apenas de resistência, mas de responsabilidade. Responsabilidade sobre si e sobre as pessoas pelas quais precisa ou precisaria se dedicar em relação aos cuidados e amparo. No que se refere ao cuidado de si, muito pouco se fala a respeito da sexualidade e da liberdade das mulheres em viverem sob seus próprios ditames, sem vincular sexo e reprodução. Menos ainda se fala sobre maternidade compulsória ou o desejo de não ser mãe. Outro tópico que merece consideração é a existência concomitante de maternidade e aborto, que se explicam mutuamente quando permitimos que as narrativas se construam em sua integridade. Tais aspectos puderam ser considerados na pesquisa que realizei e que continuo desenvolvendo, tendo em vista que o aborto pode, sim, ser revisto de forma mais humana e cuidadosa, respeitando as experiências e pontos de vista das mulheres.
Marcela Boni Evangelista é historiadora formada pela USP, onde fez mestrado e doutorado. Atualmente é professora da Faculdade de Educação da USP e coordenadora do Núcleo de Estudos em História Oral da USP (NEHO) e co-coordenadora do Grupo de Pesquisa em Gênero e História (GRUPEGH). É autora de “O aborto na vida – experiências femininas” e “Padecer no paraíso? – Experiências de mães de jovens em conflito com a lei”, ambos publicados pela editora Pontocom.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.