Por Liszt Vieira

Pátria, natureza e identidade nacional

[Título original]

A ideia de nação como identidade cultural unificada é um mito. As nações modernas são híbridos culturais. O discurso da unidade ou identidade oculta diferenças de classe, étnicas, religiosas, regionais etc.

O esquecimento, diria mesmo o erro histórico,
são um fator essencial da criação de uma nação
(Ernest Renan, Qu’est-ce qu’une nation)

A identidade nacional é tradicionalmente apresentada como “comunidade imaginada” (Benedict Anderson), “criação histórica arbitrária” (Ernest Gellner), ancorada em diversos elementos, por exemplo, a narrativa de nação, ênfase nas origens, na continuidade, na intemporalidade e na tradição (Stuart Hall), na invenção da tradição e no mito fundacional (Eric Hobsbawn), na memória do passado, na perpetuação da herança e no esquecimento dos conflitos de origem (Ernest Renan).

Sabemos hoje que a ideia de nação como identidade cultural unificada é um mito. As nações modernas são híbridos culturais. O discurso da unidade ou identidade oculta diferenças de classe, étnicas, religiosas, regionais etc. As diferenças culturais foram sufocadas em nome da construção da identidade nacional. É inegável que a ideologia do nacionalismo e do patriotismo constituiu importante ferramenta na formação do Estado nacional.

No que se refere à identidade nacional brasileira, o Brasil é talvez o único país da América Latina que não conquistou a independência nacional – ela foi concedida de cima para baixo. A República foi uma quartelada a que o povo assistiu “bestializado” (José Murilo de Carvalho). E à Independência, com licença do historiador, nem bestializado assistiu. As guerras e lutas que marcaram o povo brasileiro foram regionais (Farrapos, Sabinada, Inconfidência Mineira, Revolução Pernambucana, Revolta dos Alfaiates, Confederação do Equador etc.).

Nosso mito de origem foi a “descoberta” em 1500, em que já estão presentes “os três componentes da nossa nação imaginada: a identidade lusa, a identidade católica e a identidade cordial” (José Murilo de Carvalho). Esquecimento e erro é o que não faltaram nos mitos da história pacífica e democracia racial. Essa visão europeizante de identidade nacional excluía os colonizados. A história oficial foi escrita pelas elites na qual o povo está ausente. Isso corrobora a explicação de que o brasileiro teria mais orgulho da natureza do que da sua história.

A construção da identidade nacional, na Europa e em toda a América, privilegiou nos séculos XVIII e XIX o sentimento de unidade em detrimento da diversidade. Tratava-se de construir a Nação, o que foi feito oprimindo e sufocando identidades culturais, religiosas, étnicas, de gênero etc. bem como a divisão da sociedade em classes. Enfim, o conceito de nação, baseado na unidade, ocultou a diversidade.

Mas, talvez por isso mesmo, engendrou ideologias – o patriotismo e o nacionalismo – que ajudaram a forjar a identidade nacional e mobilizar as populações, principalmente dos países coloniais, para morrer na guerra pela pátria. É sugestivo que quase todos os hinos nacionais da América Latina falem em “morrer pela pátria”. Além disso, essas ideologias tornaram-se poderosos instrumentos de mobilização popular para as grandes guerras do século XX.

Se na hora de morrer pela pátria não havia muitas distinções perante a lei, o mesmo não ocorria na hora de viver pela pátria. O direito brasileiro, por exemplo, trazia a marca dos costumes escravistas, patriarcais e católicos predominantes na sociedade brasileira do século XIX. Para protestantes e judeus, não havia, durante o Império, qualquer tipo de registro civil de nascimento ou casamento. União entre cônjuges não católicos não tinha nenhum valor legal. Menores trabalhavam, mas não podiam defender-se em juízo. Mulheres casadas podiam gerir fortunas, mas não tinham direito de fazer testamento. Apenas católicos podiam ser eleitos para cargos públicos. Os negros eram escravos. Mesmo o Código Civil da República, promulgado em 1916, distinguia mulheres honestas de desonestas, filhos legítimos de ilegítimos, conforme analisado pela historiadora Keila Grinberg.

A partir da segunda metade do século XX, as identidades culturais antes sufocadas começaram a reaparecer, colocaram no espaço público suas demandas e sobrepujaram muitas vezes a identidade nacional, visivelmente abalada com o processo de globalização que enfraqueceu os atributos básicos do Estado-Nação: territorialidade, soberania, autonomia. Esse ressurgimento de identidades culturais se dá paralelo ao enfraquecimento do nacional. Muitas vezes, o local passa a interagir com o global criando novos patamares culturais. Chico Mendes, ao morrer, era um herói local e global, mas não nacional.

Os hinos nacionais

São os hinos nacionais que refletem o espírito de conquista da independência nacional contra países colonizadores, como ocorreu na América Latina, ou de formação do Estado nacional, como nos países europeus. Neste último caso, os hinos não conclamam os cidadãos a morrer pela pátria. God Save the Queen, Allons Enfants de la Patrie, Deutschland Über Alles, Viva España! Levantai … O Esplendor de Portugal, os hinos dos países da Europa ocidental apelam ao patriotismo, mas não à morte. A única exceção é a Itália que, embora marginalmente, afirma: Siam pronti alla morte.

Na América Latina, basta consultar alguns hinos para verificar até que ponto o apelo para morrer pela pátria está enraizado no espírito da época como marco da identidade nacional. Vejamos alguns exemplos.

O hino nacional uruguaio começa exclamando: Orientales, la Patria o la Tumba!

Libertad o con gloria morir! Da mesma forma começa o hino paraguaio: Paraguayos, República o Muerte! E Cuba, hoje tão conhecida pela palavra-de-ordem “Patria o Muerte, Venceremos”, canta, logo na primeira estrofe do seu hino: No temáis una muerte gloriosa/ que morir por la Patria es vivir.

O hino do Haiti nos ensina que é belo morrer pela pátria: Pour le drapeau, pour la patrie/ Mourir est beau, mourir est beau. O de Honduras fala em morte generosa:

Marcharemos, ¡oh patria!, a la muerte;/ Generosa será nuestra suerte,/ Si morimos pensando en tu amor. O da Bolívia, no mesmo sentido: Morir antes que ver humillado/ de la Patria el augusto pendón. O da Guatemala conclama vencer ou morrer: Libre al viento tu hermosa bandera/ A vencer o a morir llamará.

O colombiano nos lembra que: Se baña en sangre de héroes/ la tierra de Colón. E termina dizendo: “deber antes que vida”/ con llamas escribió. O hino mexicano conclama à guerra e evoca a morte: Tus campiñas con sangre se rieguen,/Sobre sangre se estampe su pie. No final, promete aos heróis combatentes: ¡Un sepulcro para ellos de honor! E assim termina o hino nacional da Argentina: Coronados de gloria vivamos/ O juremos con gloria morir. O chileno é o único que fala em asilo: O la tumba serás de los libres/ O el asilo contra la opresión. No final, não foge à regra: O tu noble glorioso estandarte/ Nos verá combatiendo caer. Em meados do século XX, a guerra de independência nacional da Argélia produziu um hino nacional com versos semelhantes: Et nous avons juré de mourir pour que vive l’Algérie!

No caso dos países que travaram guerras de independência nacional, o apelo dos hinos a morrer pela pátria pode ter um duplo sentido: mobilização para a guerra ou homenagem aos soldados que tombaram no campo de batalha. Não se trata de mera retórica, como no caso brasileiro, onde não houve guerra pela independência, concedida de cima para baixo pelo próprio imperador português. Nem por isso o hino da independência dispensou o apelo a morrer pela pátria: Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil!

A ideia de morrer pela pátria ficou no inconsciente coletivo do imaginário popular brasileiro. Muitas décadas depois, os hinos da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, exclamavam: Antes a morte que um viver de escravosSer Paulista! É morrer sacrificado/ Por nossa terra e pela nossa gente! Ou ainda: Que os irmãos dos vinte estados/ Sejam todos redimidos/ Pelo sangue dos soldados/ Dos paulistas destemidos. Os versos mais conhecidos, de Guilherme de Almeida, conclamavam os estudantes a abandonar a escola para morrer na guerra: Enquanto se sente bater/ No peito a heroica pancada/ Deixa-se a folha dobrada/ Enquanto se vai morrer.

A natureza no hino brasileiro

Já o hino nacional brasileiro trilhou outros caminhos. A ênfase está menos no heroísmo guerreiro do povo e mais na grandeza e gigantismo da nossa natureza. Os brasileiros teriam mais orgulho da nossa geografia do que da nossa história. O orgulho pelas nossas belezas naturais é uma atitude cultural que se tornou visível no romantismo literário no século XIX e deixou marcas até hoje. Por isso, há quem afirme que a degradação da natureza destrói, no inconsciente, o amor próprio do brasileiro.

A exaltação da natureza como afirmação da identidade brasileira foi ilustrada nos versos da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, que se institucionalizaram definitivamente na letra do hino nacional:

Canção do exílio: Nosso céu tem mais estrelas / Nossas várzeas têm mais flores/ Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida mais amores.

Hino nacional brasileiro, versos 31,32 e 33: Do que a terra mais garrida/ Teus risonhos, lindos campos têm mais flores/ Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida no teu seio mais amores.

Nosso hino nacional está repleto de imagens ligadas à natureza. Foram as margens plácidas do Ipiranga que ouviram o brado retumbante de um povo heroico que estava ausente e não bradou nada. Sol da liberdade, formoso céu risonho e límpido, gigante pela própria natureza, deitado em berço esplêndido, sol do novo mundo, terra adorada, abundam no hino nacional metáforas sobre natureza. Talvez isso explique a síntese surpreendente de Nelson Rodrigues: “O Brasil é uma paisagem”.

Pro Patria Mori

O escritor Ernst Kantorowicz pesquisou a Idade Média e mostrou que a atitude de morrer pela pátria tem uma essência religiosa de origem medieval. A pátria terrena foi desqualificada pelo cristianismo em favor da cidade de Deus, a pátria eterna. Os cruzados morriam por Deus e eram santificados: o papa Nicolau I (858-867) prometeu a “pátria celeste” aos que morrem pela fé na luta contra os infiéis. A noção de pátria estava subsumida na noção de Deus. Por outro lado, os guerreiros que se sacrificavam heroicamente em batalhas o faziam por lealdade a seu senhor e não por alguma noção de território ou Estado.

Os gregos e romanos homenageavam seus mortos pela polis ou res publica, mas a noção de pátria, tal como a conhecemos hoje, acompanhou a construção moderna de nação e Estado. Houve, é claro, um longo período de transição. Carlos Magno, por exemplo, foi considerado pelos franceses dos séculos XII e XIII, “imperador da França” e seus soldados, tombados na luta contra os sarracenos, “santos mártires”. Pátria e religião começam a assumir uma dimensão nacional. Na primeira metade do século XV, Joana d’Arc exclamará: “Os que declaram guerra ao santo Reino da França, declaram guerra ao rei Jesus” (Ernst Kantorowicz).

Inspirado no exemplo anterior da Igreja, que cobrava dízimos “em defesa da Terra Santa”, o rei passa a cobrar impostos “em defesa do reino” ou “em defesa da pátria”. O “corpo místico” identificou-se com o corpo político, e tornou-se sinônimo de nação e pátria. A morte pro patria, numa perspectiva verdadeiramente religiosa, aparece como sacrifício pelo corpo místico do Estado. Se Cristo é a cabeça do corpo místico da Igreja, o príncipe é a cabeça do corpo místico do Estado. A associação da visão espiritual e secular de corpo místico está na raiz da construção moderna do Estado. O humanismo do renascimento desempenhou papel importante no resgate de idéias clássicas e na adaptação do pro patria mori aos tempos modernos. Mas o essencial aqui é que o Estado como pessoa jurídica tenha aparecido como corpo místico e que a morte por esse novo corpo místico tenha recebido um valor igual à morte de um cruzado pela causa de Deus.

No século XX, o nazifascismo deixou muitos exemplos de exaltação à morte. Tivemos também na América Latina apelos a morrer pela pátria. Não ocorreu apenas no Brasil, onde o suicídio de Vargas deixou marcas, mas também na Argentina, principalmente com a morte de Eva Perón. Idolatrada pelo povo, muitas vezes há filas para visitar seu túmulo aos domingos no cemitério de Recoleta, em Buenos Aires.

Nos anos 1970, em sua luta contra a ditadura militar, o grupo peronista Montoneros retoma o lema “morte pela pátria”, já sob a influência do mito de sacrifício heroico de Che Guevara e do exemplo da Revolução Cubana. O militante Montonero não apenas está disposto a morrer pela pátria, ele se prepara para morrer. Suas ações são muitas vezes suicidas. No fim do caminho, há apenas a vitória ou a morte. Seus lemas “pátria, vitória ou morte”, “Perón ou morte. Vencer ou morrer pela Argentina” revelam um etos sacrificatório, na visão da pesquisadora argentina Beatriz Sarlo.

E o México – “tão longe de Deus e tão perto dos EUA” – parece haver esgotado sua cota de derramamento de sangue na revolução camponesa pela reforma agrária. Após a Revolução Mexicana, o México institucionalizou os conflitos, sem guerras.

O Brasil tem uma história brutal de violência contra o povo. E, desde a República, os frequentes golpes militares configuraram a história política do país. O último episódio foi a ditadura militar de 1964 a 1984. Agora, temos um presidente ameaçando golpe para implantar uma ditadura. Também ele falou em morte. Mas – lembrando Marx no 18 Brumário de Luís Bonaparte – como a história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa, soou de forma grotesca a declaração de Bolsonaro na manifestação do 7 de setembro último: Prisão, Morte ou Vitória. Não foi preso, não morreu, nem venceu. É bom não esquecer, contudo, que a farsa tem origem na tragédia.

E a tragédia foi muitas vezes reprimida em nome da construção do Estado nacional. A elite brasileira branca, herdeira dos colonizadores portugueses e, já no século XX, ao lado de enriquecidos imigrantes europeus e japoneses, sufocou a identidade dos negros e indígenas, bem como das mulheres, gays e minorias étnicas, religiosas e culturais, enaltecendo a identidade e o Estado nacional brasileiro. Em nome da unidade, a diversidade foi reprimida. O retorno do reprimido surgiu na segunda metade do século XX, principalmente com as reivindicações das mulheres, negros, índios e gays contra a misoginia, o racismo, a homofobia e os direitos dos indígenas. A nação perde seu caráter unívoco que esmagou a diversidade no período histórico de construção do Estado nacional. Hoje, não é mais possível deixar de reconhecer que a nação tem uma pluralidade de etnias, crenças, classes sociais e gêneros.

Os segmentos sociais de moral conservadora, em todas as classes, rejeitam a diversidade e se aninharam no discurso retrógrado do bolsonarismo. Querem de volta o Brasil de antigamente, dominado pela elite branca, racista, misógina, opressora e autoritária. Ignoram a escravidão, o massacre de índios. o sofrimento do povo. Afinal, como dizia o pensador francês Ernest Renan, o esquecimento e o erro histórico são fatores essenciais para a criação de uma nação. O que está em jogo hoje é a luta por uma identidade nacional baseada na pluralidade e na diversidade. O que foi recalcado, ao retornar, não retrocede mais. Por isso, a luta pela democracia no Brasil, além da dimensão política, social e econômica, tem uma forte dimensão cultural. Está em questão o destino da democracia e da identidade nacional brasileira.

*Este artigo é uma adaptação, resumida e atualizada, de parte do artigo Morrer Pela Pátria? Notas Sobre Identidade Nacional e Globalização, que publiquei no livro Identidade e Globalização, Editora Record, 2009.

Liszt Vieira é defensor público, professor e doutor em Sociologia. Foi preso político, exilado, deputado no Rio de Janeiro nos anos 80, coordenou o Fórum Global na Rio-92 e foi presidente do Jardim Botânico do RJ. Autor de vários livros, sendo o último “A Democracia Resiste”.

 

Fonte: Carta Maior.

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