Por Juliana Domingos de Lima
DE CÁ PARA LÁ
As influências do Brasil e do movimento negro brasileiro na luta por igualdade racial nos Estados Unidos.
Na multidão dos protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) realizados no ano passado em Nova York, uma brasileira clamava por justiça — não só por George Floyd e Breonna Taylor, vítimas da violência policial norte-americana, mas também por João Pedro e outros jovens negros assassinados pela polícia no Brasil.
“Foi emocionante e forte. Vesti a camiseta com a imagem de minha mãe”, conta a Ecoa Bethânia Nascimento Gomes, que vive nos Estados Unidos desde 1991 e é bailarina profissional na companhia Dance Theatre of Harlem.
A imagem estampada no peito era de Beatriz Nascimento, historiadora, ativista, poeta e uma das maiores intelectuais negras brasileiras do século 20. Bethânia colabora atualmente com pesquisadoras afroamericanas na tradução inédita de escritos da mãe para o inglês.
“Em geral os afroamericanos sabem muito pouco do Brasil. O que eles sabem é mais um estereótipo”, diz ela, que vê um interesse crescente no país por autores negros brasileiros.
A influência exercida sobre o Brasil pelo movimento norte-americano por igualdade racial não é nem nunca foi de mão única. Eles também olharam para as relações raciais no Brasil em diferentes momentos de sua história como inspiração, contraponto e até alternativa para a realidade vivida pelos negros no país.
Um “paraíso racial”
Na década de 1920, o médico negro Brian Redfield vivia em Nova York, mas sonhava em se instalar com a família no Brasil. Desde sua volta da Primeira Guerra, o médico sentia uma vontade crescente de escapar da discriminação e segregação a que pessoas negras eram submetidas nos Estados Unidos.
Redfield é um personagem de ficção de “Identidade”, romance de 1929 da escritora Nella Larsen, publicado somente no ano passado no Brasil.
O plano do personagem não foi aleatoriamente inventado pela escritora. Existia entre os afroamericanos da época um imaginário de que as relações entre brancos e negros eram mais harmoniosas no Brasil. Tanto que jornais negros da época chegaram a discutir propostas de emigração de famílias negras americanas para cá.
Pressões políticas, no entanto, levaram o Ministério de Relações Exteriores a instruir os consulados a não emitirem vistos para afroamericanos, frustrando o projeto de emigração.
Mas de onde vinha a ideia de que o Brasil era um lugar com melhores condições de vida para a população negra?
Se o homem negro pôde se elevar da degradação à respeitabilidade no Brasil, com o mesmo tratamento nós também podemos nos elevar aqui. Se ele pode ser estimado como um homem pelo português, ele também pode ser tão estimado pelos anglo-saxões e celtas. Se ele pode obter justiça das mãos dos católicos, por que não também das mãos dos protestantes?
No pós-escravidão dos Estados Unidos, a diferença racial foi inscrita no código de leis. No Brasil, segundo a historiadora e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Luciana Brito, a coisa foi um pouco diferente: o racismo no pós-abolição não ficava explícito na lei, mas era manifestado na vida cotidiana e nas relações entre as pessoas.
Havia uma circulação de ideias entre Estados Unidos e Brasil sobre a questão racial, desde o século 19, e um interesse de indivíduos afroamericanos sobre a experiência do racismo (ou, segundo acreditavam, de sua superação) por aqui.
Segundo a historiadora e professora, desde 1839 e até depois da guerra civil americana, abolicionistas negros americanos “sabiam que era um país escravista, mas enxergavam um Brasil sem preconceito racial, porque era um país miscigenado.”
Como eles não estiveram no Brasil, essa visão se baseava em relatos de viajantes. Brito explica que esses viajantes notavam, em contraste com os EUA, que no Brasil havia pessoas com traços de ancestralidade negra ou indígena ascendendo socialmente e uma grande quantidade de ex-escravizados libertos. Essas impressões eram publicadas nos jornais abolicionistas da época e, assim, circulavam entre os negros americanos.
Apesar de o Brasil ter sido o último país a abolir a escravidão, a ideia de um paraíso racial continuou a ser propagada no início do século 20. Um dos responsáveis por isso foi Robert Abbott, fundador do jornal negro “Chicago Defender”, que viajou pela América Latina em 1923 e ficou especialmente impressionado com o Brasil.
“Ele vai continuar apostando na ideia de paraíso racial mesmo com algumas pessoas dizendo a ele que existia racismo no Brasil. Mas esse racismo tinha um padrão que ele tinha dificuldade de identificar porque a cabeça dele estava nas dinâmicas raciais dos Estados Unidos”, diz a Ecoa o historiador e professor da Universidade Federal do ABC Flávio Francisco.
Usando a língua materna de Abbott, o professor define essa aposta do americano como “wishful thinking”: um desejo de encontrar modelos que pudessem servir de exemplo para a construção da igualdade racial na sociedade americana.
Após sua visita ao Brasil, Abbott seguiu acompanhando o estado das relações raciais no país. Assim, ficou sabendo da formação da Frente Negra Brasileira em 1931, organização pioneira de ativismo negro no país. Sua estrutura, seus líderes e estratégias receberam uma cobertura detalhada no “Chicago Defender” que a apresentava como um exemplo a ser seguido pelos afroamericanos.
Quilombismo como estratégia
Já na segunda metade do século 20, foi fundamental a presença de um negro brasileiro no meio acadêmico americano para desconstruir a fantasia de que não havia racismo no Brasil. O artista e ativista Abdias Nascimento emigrou para os EUA em 1968, em um autoexílio que durou pouco mais de uma década. Lá, lecionou como professor visitante em universidades e ficou bastante conhecido entre intelectuais e ativistas negros norte-americanos.
“Abdias desempenhou um papel importante ao informar que a desigualdade racial era um problema sério no Brasil”, disse a Ecoa o professor da Universidade de Pittsburgh George Reid. “Isso pode ter contribuído para levar os ativistas [americanos] a pensarem sobre o racismo e o antirracismo como fenômenos globais, não só restritos aos Estados Unidos.”
O conceito de quilombo como um espaço de autonomia e resistência política negra esteve muito presente na militância de Abdias Nascimento e Beatriz Nascimento e circulou nos Estados Unidos a partir dos anos 1970, segundo a professora da Universidade Federal Fluminense Flavia Rios.
Abdias cunhou o termo “quilombismo”, uma proposta de mobilização política da população negra nas Américas com base na sua experiência histórica e cultural.
Um dos grandes nomes da militância negra norte-americana a partir da década de 1970, a filósofa Angela Davis sempre chamou atenção em suas vindas ao Brasil para a contribuição das feministas negras brasileiras para o debate racial e de gênero. “Acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”, disse em São Paulo em 2019.
Lélia Gonzalez insistiu que não só deveríamos compreender a complexa interrelação de raça, classe e gênero, mas ter em mente as conexões entre os povos indígenas e negros. Essas são as lições que nós, dos Estados Unidos, precisamos aprender com a história do feminismo negro no Brasil. Existe, geralmente, a suposição de que a forma mais avançada de feminismo negro é encontrada nos Estados Unidos. Essa é uma visão colonialista e imperialista.
Uma resistência transnacional de diáspora
Se o impacto do ativismo negro brasileiro entre os americanos é menos conhecido devido à enorme projeção das manifestações políticas e culturais que acontecem nos EUA, o desconhecimento dos próprios brasileiros também contribui, como coloca a professora da UFF Flavia Rios:
“Há até pouco tempo, os meios de comunicação e a produção cultural davam muito pouca atenção para o movimento negro brasileiro. É provável que muitos brasileiros saibam mais sobre a história do movimento negro norte-americano do que do brasileiro, e isso faz com que a gente conheça menos qual a repercussão que o nosso movimento negro tem nos Estados Unidos”, afirma.
Para Bethânia Gomes, esse intercâmbio tende a fortalecer as lutas por igualdade nos dois países.
“O fato de termos sido separados pela colonização não pode perpetuar esse rasgar entre nós. Os americanos podem aprender [com o Brasil] que há um mundo muito maior, uma força maior contra o racismo”, diz.