Por Rodrigo Nagem
As forças contrárias às políticas de ações afirmativas na mídia hegemônica, derrotadas após a decisão favorável do STF em 2012, começam a reerguer suas armas contra a Lei de Cotas, cuja revisão está prevista para 2022. Dando largada à discussão sob um governo que já se manifestou desfavorável à continuidade dessas políticas, articulistas têm mobilizado determinadas leituras sobre o passado com a intenção de sustentar posições que minimizem ou anulem a necessidade das ações afirmativas. Um exemplo desse posicionamento pode ser encontrado em texto recente de Demétrio Magnoli, notório autor anti-cotas, na Folha de São Paulo. No artigo em questão, Magnoli afirma que “militantes identitários” rasgam a historiografia ao conceituar a escravidão como um sistema de dominação racial, e não como um sistema econômico. O autor, entretanto, não poderia estar mais equivocado.
Em primeiro lugar, porque é precisamente ele quem está rasgando a historiografia, que é praticamente unânime em afirmar que uma das principais especificidades históricas da escravidão moderna foi, justamente, engendrar um sistema de dominação racial. Ao contrário das antigas formas de escravidão, que justificavam a si mesmas em bases morais ou consuetudinárias, a escravidão moderna assentou no componente racial a fonte da sua legitimação. Isso não quer dizer que o africano era escravizado porque era negro, mas “ser negro” tornou-se o motivo pelo qual a sua escravização passou a ser justificada. Enquanto processo econômico, portanto, as relações escravistas da modernidade produziram a ideia mesma de raça, em função da qual passou a se legitimar a exploração e a opressão contra os africanos escravizados.
Igualmente, a escravidão moderna produziu uma associação entre cor de pele e cativeiro que, no Brasil, deu vazão a toda uma cadeia de relações sociais, correlações linguísticas e normas privadas de conduta que edificaram o mundo dentro do qual surgimos como Estado-nação no século XIX. Nas palavras de Stuart Schwartz, em sua obra Segredos Internos: “O Brasil-colônia foi uma sociedade escravista não meramente devido ao óbvio fato de sua força de trabalho ser predominantemente cativa, mas principalmente devido às distinções jurídicas entre escravos e livres, aos princípios hierárquicos baseados na escravidão e na raça, às atitudes senhoriais dos proprietários e à deferência dos socialmente inferiores. Através da difusão desses ideais, o escravismo criou os fatos fundamentais da vida brasileira”.
Esses ideais, inclusive, perpetuaram formas de exclusão mesmo após o fim oficial do cativeiro, em 1888, a partir de políticas sistemáticas de branqueamento, como aponta Jerry Dávila em seu livro Diploma de Brancura. O fato de Magnoli ignorar esses elementos ilustra a dimensão da eficácia com que nossa sociedade ignora as perversidades da escravidão, que caracterizaram séculos da nossa história, e os efeitos da franca e aberta política de branqueamento implementada, não por acaso, logo após a promulgação do fim do regime escravista.
Em segundo lugar, o autor se equivoca porque somos rigorosamente nós, historiadoras e historiadores, quem procuramos caracterizar a escravidão moderna como um sistema econômico, cuja lógica interna determinou e, ao mesmo tempo, foi determinada por uma dinâmica racialista de dominação social. Com isso, procuramos defender a análise histórica contra os ataques de ideólogos como Narloch, que nega o próprio caráter estrutural das relações escravistas, reduzindo-as a uma contingência “de época” na qual as exceções ganham o mesmo peso explicativo das regras, bem como de “opiniosos profissionais” como Magnoli, que reconhece esse caráter estrutural, porém o desvincula do seu polo complementar – a dominação racial – e, assim, alcança a proeza de criar uma escravidão sem racismo. Magnoli até admite que os casos de libertos que se tornaram senhores de escravos eram radicalmente minoritários, mas mobiliza esses exemplos para negar o fato de que a dominação racial constituía um elo essencial nas relações escravistas modernas, limitando-as tão somente à sua dimensão econômica.
Mais do que perder de vista a particularidade histórica, Magnoli aqui falsifica diretamente a História, como já apontado pelas historiadoras Hebe Mattos e Ynaê Lopes dos Santos. Parece ficar claro, então, o porquê de o autor recorrer a uma noção tão estapafúrdia como a de “militantes identitários”: incapaz de sustentar uma análise competente, apela para a desqualificação dos seus interlocutores, valendo-se de uma expressão que, a rigor, nada significa. Tais dispositivos sofistas, como o desmerecimento de pesquisadores, o uso inapropriado e oportunista do debate historiográfico e a falsificação ou mesmo ocultamento dos fatos, empregados a torto e a direito por colunistas como Magnoli e Narloch, estão a serviço de uma agenda pautada pela manutenção do status quo, que se vê ameaçado por ações e políticas voltadas à mitigação da desigualdade racial e social neste país.
Nas mãos desses colunistas, o debate histórico e a investigação do passado convertem-se em artifícios esvaziados, cuja função passa a ser dar estofo à defesa da desigualdade e manutenção de privilégios. Neste sentido, torna-se ainda mais imperativa a defesa da pesquisa histórica séria, já tão vilipendiada e deturpada por autores como Magnoli e outros, dado que a História nunca trata somente do passado, mas refere-se também aos embates do presente, visando o futuro. Buscar a compreensão mais ampla possível do que se passou, relacionando as temporalidades passadas ao presente, é uma das funções centrais do trabalho de historiadores. Se não o fizermos, cairemos nas ilusões das leituras ideológicas sobre o passado.
Fonte: Ponte Jornalismo.