Por Roberto dos Santos
Em março de 1978, começou a circular em Porto Alegre a revista Tição, sendo reconhecida hoje como uma importante representante da imprensa negra gaúcha, iniciada em 1892 com o jornal O Exemplo. Pouco mais de um ano depois, em agosto de 1979, uma nova edição em formato revista foi publicada. O terceiro e último número saiu em outubro de 1980, desta vez em formato tabloide. Há de se pensar por que a ocorrência de três exemplares em três anos tenha produzido um significado tão intenso para a questão negra. O periódico tem sido apontado com muita frequência como um desdobramento do Grupo Palmares, fundado há 50 anos, em 1971, e responsável pela proposição do 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, tal como registrado na exposição virtual elaborada por integrantes da Rede de HistoriadorXs NegrXs.
Afora Oliveira Silveira, Antônio Carlos Côrtes, Ilmo da Silva e Vilmar Nunes, os quatro jovens que primeiro formularam a proposta, o grupo também se fez com a atuação de homens e mulheres negras como: Jorge Antônio dos Santos (Jorge Xangô), Luiz Paulo Assis Santos, Helena Vitória Machado, Anita Abad, Antônia Mariza Carolino, Marli Carolino, Marisa Souza da Silva, Vera Daisy Barcellos, Maria da Conceição Lopes Fontoura, Margarida Maria Martiniano Ramos, Irene Santos, entre outros e outras. As atividades do Grupo Palmares foram registradas até 1978 com a participação de novos integrantes. Entre esses, havia quem se envolveria também na criação da revista Tição no mesmo ano, como Oliveira Silveira, Vera Daisy Barcelos e Helena Vitória Machado.
Como mencionado, a Tição é um artefato da imprensa negra, tal como conceituado pelos historiadores Ana Flávia Magalhães Pinto e José Antônio dos Santos. Ou seja, trata-se de um periódico pensado, construído e endereçado para a comunidade negra e tratando de suas questões. Alguns trechos dos editoriais mostram a permanência da proposta em todas as edições, assim como a influência dos debates provocados pelo Grupo Palmares.
Na edição de 1978, o editorial destacava: “Tição pretende falar com a comunidade negra não só de Porto Alegre através de uma linguagem simples e buscando um trabalho de conscientização racial, social e cultural”. Entre os artigos destacam-se acontecimentos em território africano, principalmente acerca do debate decorrente dos processos de independência das áreas de domínio colonial português e também da crítica sobre uma ideia de África produzida pela dominação europeia. Também há uma ênfase na ligação com a cultura como resistência política a partir do exemplo do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, idealizada por Antônio Candeia Filho e seu grupo.
Havia uma preocupação em inserir as questões do negro porto-alegrense e gaúcho num debate mais amplo. Ainda no mesmo editorial, o grupo destaca: “A Revista se propõe a discutir a participação do negro neste âmbito e sua história, geralmente mal contada e distorcida, como exemplo mais típico sendo o Quilombo dos Palmares”. Nas três edições existe um comprometimento tácito com a história em seu aspecto pedagógico e identitário. O grupo de redatores coloca uma história do negro e o negro na história como uma forma de resistência. Esta resistência consiste em apontar e valorizar os saberes negros em todos os aspectos da sociedade e, ainda, coloca em debate estudos sobre a história que sejam processados pelos negros, em uma dialética entre pertencimento e endereçamento.
O artigo sobre Palmares, que utiliza Décio Freitas como fonte, segue a construção identitária da figura de Zumbi e do 20 de novembro na narrativa política de uma leitura negra de resistência na contemporaneidade. Na edição de 1979, os argumentos em torno do 20 de novembro são refinados e inseridos no discurso negro. Em artigo com poemas de Solano Trindade e citações de Abdias do Nascimento, os usos sobre o quilombo são postos: “Palmares é e só tem que ser um símbolo do povo negro na sua luta por identificação histórica e cultural, reconhecimento social e condições de sobrevivência”. Esta articulação política em torno do 20 de novembro já fora posta em cena na formação do Grupo Palmares (1971) e significou a necessidade, também, de questionamentos sobre a história do negro no Rio Grande do Sul.
A Tição se utiliza da história como uma estratégia pedagógica, como forma de propor um jeito de ser negro construído por uma consciência negra alicerçada no conhecimento, com proposta de desmistificar o discurso oficial sobre o escravismo gaúcho e chamar a atenção para que os negros conheçam seu protagonismo histórico. Em dois artigos sobre o Negro no Rio Grande (1978 e 1979), destaca-se a participação negra na história política gaúcha como “bucha de canhão”, na negociação de posições de maior significância, recebendo como pagamento a manutenção dos interesses dominantes. A história é a memória como resistência, que deve servir como denúncia e material de construção de uma nova forma do negro ver a si mesmo. A memória negro-gaúcha da Revolta da Chibata, o significado histórico e político dos clubes sociais negros em Porto Alegre e a questão da mobilidade territorial urbana negra, ao mencionar a Colônia Africana, são facetas do peso da história nesta luta pela emancipação do pensamento.
A apropriação de conhecimentos sobre a história e a cultura negra já estava no projeto do Teatro Experimental do Negro, organizado por Abdias do Nascimento na década de 1940, e que os redatores da Tição tinham conhecimento. Em quase meia página divulgam o lançamento do livro O Genocídio do Negro Brasileiro, de Abdias, e sobre sua biografia destacam: “Participou ativamente da experiência do Teatro Experimental do Negro, de 1944 a 1961.” Antes da Lei n. 10.639/2003, a Tição já movimentava uma proposta de História e cultura afro-brasileira na composição dos saberes da sociedade brasileira. É certo que muito imbuída pela ideia de uma “verdadeira história”, mas ainda assim a possibilidade de um outro olhar e da construção de um espaço de debates.
Importante destacar que o periódico Tição está no contexto dos movimentos sociais negros da década de 1970 no país. Assim como o Grupo Palmares, é pertinente frisar também a fundação do Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) em 1973, do bloco afro Ilê Aiyê em 1974, da Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (SINBA) em 1974, do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) em 1975, do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR) em 1978, que depois se consolida como Movimento Negro Unificado (MNU) com representação em vários estados do país. Se formos pensar em continuidades, Oliveira Silveira e Helena Machado foram redatores da Tição que depois se somaram ao MNU.
Além dos temas relacionados à construção de um conhecimento histórico e de uma identidade negra combativa, a revista e o jornal articulavam questionamentos que feriam a ordem instituída. A década de 1970 foi um momento conturbado da vida política nacional em decorrência dos tensionamentos gerados pela ditadura. Nesse sentido, tratar de assuntos como o racismo, a situação de exploração sobre as mulheres negras e o questionamento público sobre o “mito da democracia racial” era marcar posição na política nacional.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Vera Daisy Barcellos confidenciou que: “1978, ainda na ditadura, e [eu] era quem levava os textos para apresentação à censura, no DOPs, o que era aterrorizante”. No expediente das revistas constava o número dos protocolos registrados junto aos órgãos de censura. Talvez este seja um dos motivos para que artigos ou matérias tenham autoria individual destacada, exceto uma série de depoimentos de mulheres negras e uma entrevista com o jogador de futebol Escurinho, ambos de autoria de Vera Daisy no número de 1978. Outra possibilidade era a ideia de grupo ou de coletivo marcado pelas leituras marxistas.
O formato em jornal significou, também, algumas alterações. Entretanto, ressalta-se a continuidade de pensamento. No editorial de 1980, com o singelo nome de “Recado”, o grupo de redatores reforça: “Sob nova roupagem e novas propostas, tentamos definitivamente ocupar o espaço da consequente discussão sobre o problema racial brasileiro e sobre a luta desenvolvida por todos os setores combativos da sociedade”. Reforça-se a perspectiva de alinhamento às discussões encaminhadas pelo MNU, já presentes na revista de 1979, no sentido da luta direcionada contra o racismo. Esta postura destaca as questões históricas e estruturais do Brasil com relação às relações de trabalho e ao processo de exploração capitalista em reportagens sobre o custo de vida, a mulher negra e a ineficiência do censo de 1980. Ademais, ainda existia espaço para a poesia como resistência, o que se vê no anúncio de um livro de Ele Semog e, também, numa coluna denominada de “Lambanças”, que mencionava o nascimento do Quilomboje, a imprensa negra, o teatro negro e o carnaval.
Os artigos e reportagens são caminhos riquíssimos para a compreensão da atuação de intelectuais ativistas negros e negras. A ênfase em discussões locais sobre Porto Alegre e o Rio Grande do Sul dialoga com uma perspectiva mais ampla, contextual e estrutural dos negros no Brasil e no mundo. É o que fica sugerido na atenção dispensada para assuntos africanos, nas três edições, e na ausência de referências ao movimento negro norte-americano, que podem ser pensados como um posicionamento frente ao contexto de exploração e dominação capitalista. Também, títulos de capa como “Democracia racial: lenta, gradual, relativa” e “Chega de violência” atentam para ações da Tição no contexto de articulações políticas de oposição ao regime político ditatorial no país. Tudo isto nos permite dizer que estamos diante de um quadro de intensa complexidade. Debruçar-se sobre estas leituras reforça que a experiência da Tição faz parte da construção das “Nossas Histórias”.
Assista ao vídeo do historiador Roberto dos Santos no Cultne.TV sobre este artigo:
Fonte: Geledés.