Por Ronaldo Tadeu de Souza

Dez teses sobre o racismo de classe no Brasil e algumas modestas sugestões de como lutar contra ele.

“A voz de escura era, de desamor, fadiga da terra feita grave abordagem, edolorosa, vinda lá de longe, de montanhas ancestrais […][mas] nas montanhas. Outono. Crepúsculo.” (Fogo aceso. James Joyce, Ulisses).

1.

Não há nenhuma dúvida para qualquer pessoa séria e com escrúpulos que o problema e solução da sociedade brasileira encontra-se nas marcas que a escravidão deixou e todo o sistema social que organiza vida de milhões de indivíduos no Brasil. Foi sobre os ombros, com a força dos braços, subjetividade e inteligência, cultura ancestral e história de negros e negras aqui trazidos pelo capitalismo colonial (português)  e amplos setores das elites dominantes (comércio, agricultura, tráfico) que se erigiu o que hoje conhecemos como Brasil. A acumulação agressiva de capital, a constituição de uma classe capitalista e burguesa branca altamente forte, a formação da sociedade que combina o atraso e o novo para reproduzir a si mesma e suas patologias raciais, o Estado violento – sicários mesmos a solda da elite branca dominante – e racista: todas essas circunstâncias são implicações do fato de aqui ter sido implantando o que Florestan Fernandes chamou de sociedade escravagista. Assim, não há nenhuma possibilidade de “libertação” efetiva e real de negros e negras do racismo de classe que extirpa suas vidas, em especial da juventude negra, meninos e meninas, que ou perde a existência atingida por balas de fuzil racional e planejadamente dirigidas contra elas ou lhes escapa qualquer horizonte melhor por projetos econômicos, sociais e de governo que os lançam desde há muito na miséria absoluta e quando muito aos lugares mais baixos da estrutura de empregos do país tornando factível a articulação do rebaixamento dos arranjos salarias e composição intensa de capital (como bem demonstrou Francisco de Oliveira em Crítica da Razão Dualista) senão fizermos desabar, de uma maneira ou de outra tal sociedade.

 

2.

Se a tese 1 possuir alguma lógica teórica e política – segue-se de modo coerente a característica da organização estatal que vigora no Brasil desde os tempos das primeiras organizações de resistência negra nos quilombos. O Estado de classe por aqui, Estado esse que organiza os negócios comuns da elite brancaracista dominante, é uma mão de ferro (Conceição Evaristo) talhada para esmagar, preventivamente, a rebelião negra. As modalidades em que ocorrem o esmagamento do negro cotidianamente adquire as mais variadas formas – sem deixar de dizer qual é seu significado substantivo, a repressão, extermínio e morte sem nenhuma compaixão do povo de pele preta. Seja na construção histórica das forças armadas com características preventivas (mesmo a Constituição cidadã de 1988 preconiza no artigo 142 que “as Forças Armadas constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob autoridade suprema do Presidente da República [o katechon da vez], e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifo meu)); na organização das polícias (militarizadas) que implantam guerra assimétrica contra o “inimigo” da nação de modo intransigente e vil; nos poderes paramilitares, “agentes” do Estado, (que caçaram por meses e assassinaram covardemente Marielle Franco vereadora negra, lésbica e de esquerda – em 2022 completam-se meia década sem sabermos que foram os mandantes da sua morte), que constituem a guarda auxiliar a praticar o genocídio; e na estruturação do sistema judiciário, decisivamente, racista (ver as excelentes e detalhadas pesquisas de Marta Machado FGV-Cebrap sobre o assunto): o que presenciamos é a posição de um Estado de raça-classe atarefado labutando para a elite branca. Não se trata de recusar tola e ingenuamente as frestas institucionais que o jogo político conjunturalmente nos apresenta de tempos em tempos; é isto sim, sobretudo no momento de um governo de direita abertamente racista e que “planeja” nosso extermínio, se posicionar diante de fato histórico e social irrefutável. A luta por (mais) direitos, uma justiça justa, órgãos públicos empáticos etc. – não exclui a compreensão de necessitarmos resistir insurrecional e radicalmente contra o Estado brasileiro, e com urgência.

 

3.

A organização, resistência, luta e “movimentos sociais” negros remontam aos séculos XVI, XVII e XVIII com a irrupção dos primeiros quilombos. Palmares em Alagoas, o mais representativo e simbólico deles, mas não só ele – houve quilombos em Minas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Rio de Janeiro e na região sul (Pelotas), se conformou como o mais importante levante negro em busca da liberdade efetiva. Além da significativa proteção natural, fundamental na resistência e nas estratégias político-militares de contraofensiva diante das forças da ordem, os quilombos como diz João José Reis forjaram “[uma] estrutura socioeconômica […]fortemente marcada pela organização político-militar”. Nos termos de Beatriz Nascimento é mais do que decisivo recuperarmos o heroísmo quilombola (enquanto experiência política adequada para os modelos modernos de luta contra a elite branca dominante).

 

4.

Desde então o Brasil testemunha vivências organizativas – sociais, políticas e culturais– as mais diversas dos povos de cor: em aguerrida disposição de enfrentar as múltiplas manifestações do racismo de classe como sistema social. No Brasil pós-1930 as organizações e modelos de combate aos elementos de reprodução de sociedade escravista tiveram momentos áureas e de esplendor; sem nunca terem tergiversado acerca dos objetivos que desejavam atingir. Petrônio Domingues no artigo “Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos” (Revista Tempo, v. 12, nº 23, 2007) reconstrói a trajetória multifacetada das forças organizadas da luta negra no Brasil.

 

5.

Se a sociologia paulista, os trabalhos e pesquisas de Carlos Halsenbag, as reflexões de mulheres negras de nossas humanidades como Virgínia Leone Bicudo (socióloga e psicanalista), Beatriz Nascimento (historiadora) e Neusa Santos Souza (psicanalista e psiquiatra) para citar apenas algumas, foram instrumentos teóricos que forneceram um sofisticado equipamento conceitual para interpretar criticamente, bem como oferecer bases intelectuais para a prática de luta contra o racismo no Brasil – negras e negros enfrentariam junto ao sistema social (que repõem o racismo de classe) e ao Estado (mão de ferro) o pensamento social de um dos maiores sociólogos brasileiros.

Casa-Grande e Senzala de Gilberto Freyre, mais do que um ensaio de interpretação sobre a formação nacional, foi convertido na narrativa “oficial imposta” à nossa sensibilidade social e política como autocompreensão e autopercepção do sentido constitutivo da sociedade nos trópicos. Ele, Gilberto Freyre, sustentou ao longo das mais de 500 páginas de sua obra maior que na cultura brasileira residia na verdade um equilíbrio de contrários. Não se tratava de não observar os conflitos e a violência física da escravidão contra negros e negras da diáspora. Por um lado, tratava-se de que a observação de Freyre era eminentemente a visão da oligarquia branca do nordeste vivendo o cotidiano da casa-grande – e foi aí que o sociólogo pernambucano quis averiguar a interpenetração forçada e eventualmente “espontânea” de duas dinâmicas culturais distintas (a africana e a branca portuguesa) que se amalgamaram, dando vida a formas de convivência singulares que pouco se viu na história das nações modernas –, por outro lado, a construção narrativa de Freyre era e ainda é mobilizada até nossos dias como a natureza mesma da cultura e da sociedade brasileira (acerca de Casa-Grande e Senzala como narrativa ver Luiz Costa Lima – A Versão Solar do Patriarcalismo e Neil Larsen – O “Híbrido” como Fetiche: “raça”, ideologia e Narrativa em Casa-Grandee Senzala).

Se Gilberto assim pensava e de fato pouco nos importa, e a trajetória que escolheu e alguns dos seus textos posteriores não são dos mais gloriosos e deixa espaço para sim afirmarmos que malgrado o gigantismo de sua obra foi um homem conservador e, portanto de direita, a questão é que as reflexões que empreendeu acerca do equilíbrio de antagonismo adquiriu aspectos de um densa neblina a dizer que no Brasil não havia, não há e nunca haverá racismo. O convívio entre negros e brancos em muitos espaços, a cordialidade (cínica), o sorriso afetuoso do dia-a-dia, os relacionamentos afetivos entre raças, o carnaval e o samba e a não segregação social eram demonstrações cabais de que racismo não existia por aqui. E que movimentos e lideranças negras (de esquerda na sua maioria) estavam a dividir sociedade pacífica e de rica diversidade cultural.

Sicofantas da elite branca dominante atualmente como Leandro Narloch, Demétrio Magnoli e Antonio Risério podem ser lidos, de certa maneira e bem entendidas as coisas, como ecos tardios das páginas de Casa-Grande e Senzala. Com efeito; ainda hoje nos esforçamos para demonstrar justamente o contrário. E invariavelmente não obtemos sucesso. (Aqui não tenho espaço para explorar essa questão, mas importa percebermos o modo como o sistema de comunicação e cultura de massa do maior veículo midiático do Brasil e um dos maiores do mundo, as organizações Globo/família Marinho, difundiu com maestria essa compreensão do si social aos brasileiros, basta olhar os enredos padrões das telenovelas – hoje mais “atenuados” dadas as constantes e reiteradas reivindicações de ativistas e movimentos negros – e notemos a sutileza da atual linha da emissora ao inserir profissionais negros em sua grade de programação (programas de reality show, de palco, entrevistas, ancoras no jornalismo etc) e as disposições comportamentais que atravessam essas inserções como se fossem consenso alcançado na rica diversidade nacional.) Nesse caso se faz necessário não baixarmos a guarda: em recente entrevista Sueli Carneiro advertiu que o movimento negro por um período descuidou das disputas de ideias. (Convém retomá-las.)

 

6.

No século XXI, precisamente nas últimas duas décadas decorridas até o momento, articulam-se linhas complexas no que concerne ao racismo de classe e o enfrentamento a ele. Conquistas inegáveis foram logradas: uma nova subjetividade negra vem sendo forjada a partir dos anos 2000 (2010-2021), mais “consciente de si”, altiva, altaneira, “rebelde”, acompanhando as formas atuais de organização política (aqui as mídias sociais jogam um papel inconteste e categórico); formou-se com o acesso às universidades públicas e as particulares de excelência (PUC’s e FGV’s) eruditas e eruditos de pele preta, pesquisadores com formação sólida em ciências sociais e humanas com experiência em centros universitários e de pesquisa internacionais avançados, intelectuais públicos que influenciam no debate público para o bem e para o mal (Djamila Ribeiro, Jones Manoel, Letícia Parks, Sílvio de Almeida para citar de cabeça alguns); políticas (mulheres) negras, em sua maioria vinculadas à esquerda radical, como PSOL (Taliria Petrone, Erika Hilton, Luana Alves, Marielle Franco [presente!], Erica Malunguinho, Áurea Carolina, Andréia de Jesus, Vivi Reis) combatem com denodo, arrojo e coragem os representantes da elite-classe branca dominante nas casa legislativas (são a voz loquaz dos subalternos em geral e dos negros e negras em particular – mas necessitam estar atentas às formulações de Lênin em debate com Kautsky sobre as restrições técnicas das instituições e regimentos dos parlamentos no Estado moderno e que favorecem quase que invariavelmente o status-quo, neste caso branco dominante); uma camada de negros e negras com as políticas públicas de distribuição de renda nos 15 anos de governo petista conseguiram relativa mobilidade social; e a Lei de Cotas, talvez a base fundamental e constitutiva de todo essa arquitetura de luta, reconhecimento, dores e realizações.

Nada nos foi oferecido pela elite e classe dominante branca. A não ser sorrisos e posturas de sortilégio, como um manto cintilante que brilha fazendo ocultar (e cegar) a rudeza fria dos instrumentos de aço preparados de há muito para conter – violentamente – o ímpeto da rebelião negra. Mas essas conquistas não são suficientes. Não se trata de escolher entre conquistas de direito e reconhecimento ou buscar experiências radicais de subversão da ordem branca dominante – o jogo de soma zero. Trata-se de sedimentarmos em nós o realismo intransigente (Perry Anderson). Dia-a-dia presenciamos uma luta da raça-classe negra para sobreviver; nos empregos mais braçais, nos cruzamentos das principais avenidas de nossas metrópoles, na busca por vezes ingênua por justiça contra o extermínio de seus jovens e suas crianças pelos sicários estatais e paraestatais, no sonho de um emprego que dê a possibilidade do sustento da família, enfrentando as forças de segurança que o tem como inimigo interno da nação, em filas de postos de saúde e hospitais a cena é de meninas negras e pardas com seus filhos no colo a espera de atendimento (e de mulheres pretas, às vezes idosas, algumas com cabelos brancos a faxinar por horas tais estabelecimentos públicos). Desigualdade social e de raça é um eufemismo das agendas de pesquisa em ciências sociais – insisto é uma luta de raça-classe cotidianamente cruel e assimétrica contra a elite branca dominante, seus múltiplos arsenais de repressão (que mobiliza a bel-prazer) e um conjunto de ideias racializadas difundidas pelo corpo social brasileiro.

 

7.

O governo Bolsonaro-Guedes-Mourão é a explicitação mais aguda do racismo de classe que estrutura os modos de ser da sociedade nacional no Brasil. É um governo de “contrarrevolução preventiva” (Arno Mayer) que foi consolidado, após o golpe institucional de 2016, em março de 2018 quando dois milicianos – agentes estatais que dão continuidade aos esquadrões da morte criados nos anos 1970 para combater as favelas e os bairros pobres cariocas como bem demonstra as pesquisas do sociólogo José Cláudio Souza Alves da UFRRJ– assassinaram Marielle Franco. É um projeto de país construído pelo grupo que alçou Bolsonaro ao poder que tem como objetivo o que alguns teóricos sociais e filósofos qualificam de guerra civil contra um sujeito político particular. São os povos de cor: homens e mulheres, jovens e crianças negras que estão na alça de tiro do atual governo.

Paulo Arantes em debate recente argumenta que as armas que Olavo de Carvalho, o arcanjo que leva a mensagem aos cavaleiros, exibe em sua residência na Virgínia, Estados Unidos, de maneira nenhuma é para caçar ursos como ele diz e imagina a classe culta, a intelligentsia nacional; é uma mensagem esotérica, cifrada, no estilo straussiano (Leo Strauss) – os rifles, carabinas, winchesters e pistolas são destinadas a nós de pele preta. Marielle Franco, mulher negra de esquerda, combativa pelos seus – sua voz nas tribunas da câmara de vereadores do Rio era um trovão que irrompia contra a classe política branca – foi a primeira a estar na linha de tiro do projeto bolsonarista-guedista. Seu extermínio traiçoeiro representa um símbolo que não podemos deixar de interpretar com seriedade.

Ora, a rearticulação da economia capitalista brasileira ao atual regime da acumulação neoliberal (que possui dentro do arco histórico desde os anos 1970 modalidades variadas), em que o Estado serve ao mercado (ver Marco D’Eramo – Ruleby Target, Sidecar/New Left Review) adquire no âmbito da formação social brasileiro aspectos de agressividade política contra negros e negras. Para exemplificar notemos dois eventos recentes: um em que o presidente da câmara de deputados, Arthur Lira, um agente estatal, se aconselha com André Esteves, empresário e operador de fundos de investimento (na mesma circunstância Esteves faz reunião com investidores e fala sobre o obstáculo que é a demarcações de terras), o outro a entrada na bolsa de valores do agronegócio (grupo de sustentação do bolsonarismo) abrindo para o investimento em suas ações.

A implicação desses eventos é clara para a população negra em todas as suas variações – de quilombolas a trabalhadores do campo, dos que dependem e irão consumir alimentos inflacionados do agronegócio à restrição do Estado a uma mera ponta de lança do projeto Bolsonaro-Guedes – estamos citando apenas dois entre os inúmeros exemplos.

 

8.

Com isso é preciso, urgentemente, refletir sobre a relação entre as questões raciais e a esquerda brasileira. Há um desencontro histórico inegável. A reflexão passa por diversos campos, o teórico, o histórico, o político e o estratégico. No plano teórico é sugestiva a fusão da teorização social negra – mesmo aquelas de epistemologia identitária, bem entendidas as coisas as melhores –nacional e internacional com o melhor pensamento social e crítico de esquerda. A disputa (assimétrica, pois é evidente que a teorização social negra não possui o estatuto e prestígio das teorias de esquerda em geral) entre epistemologias não favorece aos que mais necessitam de um horizonte intelectual e político para enfrentar o racismo de classe e as forças da direita branca intransigente.

A esquerda, e é preciso que fique evidenciado é altamente preconceituosa, e, para no vocabulário contemporâneo é por vezes “racista-institucional” precisa reconhecer a capacidade compreensiva de outras matrizes de conhecimento – e é descabido ainda que em “movimentos” e figuras negras presenciemos a asserção de que a classe trabalhadora de Marx era branca, europeia e tutti quanti: isso no melhor dos casos, o outro sabemos do que se trata. Aqui são apenas algumas referências do desentendimento. No plano da história é necessário rever a contribuição de teóricos negros no entendimento histórico dos problemas do Brasil. Desnecessário citar os nomes ocultados e eliminados epistemologicamente. Não basta falar apenas de Machado de Assis – embranquecido.

No plano político e em particular às figuras e movimentos negros cabe rever sua posição equivocada de que tanto faz como tanto fez no que concerne a direita e a esquerda. Esse é um equívoco fatal, que recaí predominantemente em quem mais necessita de ações políticas de esquerda em articulação com a luta racial. Os que enunciam tal formulação, mesmo tendo intenções outras, precisam ponderar ao menos o que dizem aos quatro cantos. No plano estratégico, incorporar a juventude negra (trabalhadora em sentido amplo) em organizações políticas e partidos de esquerda e fazer um debate serio e fraternal mesmo, de preferência os radicais, mas não só, com vistas a constituir o sujeito da ação prática na luta contra o racismo de classe é premente.

 

9.

No próximo ano completam-se dez anos da lei de cotas e a luta que está se gestando para acabar com a lei passa a ganhar contornos mais nítidos, haja vista as posturas de alguns escribas da elite branca dominante: com Leandro Narloch à testa, seguido por Demétrio Magnoli, Antonio Risério e outros. Atenção e combate com as ferramentas que cada um possui no limite de suas posições e atuações, locais de convivência (academia, partidos, organizações, coletivos, imprensa alternativa) e repertório (Charles Tilly) será necessário. (As forças da direita brasileira sabem que o acesso ao ensino superior em geral e público em especial de qualidade não é somente o mecanismo de diminuição das escorchantes diferenças raciais, sociaise de renda, mas é também colocar nas mãos e mentes da juventude negra o pensamento crítico, radical e emancipatório:

Francis Fukuyama no início do seu artigo The End History afirmou que de agora em diante, com fim da história, a batalha era por ideias. Também se completam quatro anos da morte de Marielle Franco, sem que os mandantes do assassinato sejam conhecidos. Honrar o nome de Marielle e o combate que travou é lutarmos para que seus assassinos respondam pelo crime, mesmo no âmbito da justiça de classe – por hora é o que temos e ela vigorará por certo tempo até que consigamos a emancipação real e consequentemente novas formas de organização da vida social.

Há um fator decisivo hoje: é que temos duas modalidades em disputa pela hegemonia da luta contra o racismo de classe. A representatividade liberal em sentido amplo, que se alinha com setores da elite branca para sedimentar suas posições (e o mercado epistêmico) transfigurando em “capital” econômico e cultural o ambivalente antirracismo (ver sobre os problemas epistêmicos da noção ambígua de antirracismo os texto do cientista político negro norte-americano Adolph Reed) e setores, com olhar sensível aos que sofrem na carne os consequências de uma sociedade escravista, que já exprimem descontentamento com esse estado de coisas e deslocam-se gradativamente para elaborações mais radicais, de viés marxiscizante, mas não só. (Os círculos concêntricos negros acadêmicos, na universidade pública de excelência, oscila entre as duas modalidades: com ligeira hegemonização dos modos de representatividade liberal e a agenda epistêmico-cultural de seu afazer intelectual e de pesquisa.)

Por vezes a situação exige um teor cáustico no comentário, é irrefutável e não precisamos fazer juízo de valor num primeiro momento aqui: existe um setor negro que hoje faz “parte” de uma “classe média” com outros interesses em disputa (e num segundo momento convém valorarmos essa circunstância, pois é de certo modo positiva; a pobreza e a miséria não são louváveis em hipótese alguma), verdade que eminentemente minoritário ainda que exerça influência via os médios de comunicação convencionais, e um que sobrevive a realidade materialmente cruel do racismo de classe e que tem seus loquazes. É preciso decidir, infelizmente, sem soma zero. Por questões que estão ditas nessas teses singelas prefiro o segundo grupo.

 

10.

Por fim; é lá onde se encontra o sujeito político negro (a universalidade não-idêntica) que a sociedade brasileira resolverá seus problemas mais candentes. A transformação (emancipação e revolução) será negra ou não será. Um teórico negro, um dos maiores intelectuais do século, que completam 60 anos de seu passamento disse: “[a] luta […] empreenderá e conduzirá […] [a] um combate contra a exploração, a miséria e a fome” – e esperamos pela liberdade efetiva.

*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.

 

Fonte: A Terra é Redonda.

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