Por Fernanda Oliveira
Por mais que o estudo da história venha se afastando de uma ideia de ciência restrita a datas e fatos isolados, os marcadores auxiliam a nos localizar no tempo. Aqui não me refiro apenas ao relógio e calendário, o dito tempo cronológico, mas aos processos e, consequentemente, aos contextos. Antes que março acabe, é preciso lembrar que no dia 25 deste mesmo mês, mas em 1824, a primeira constituição do Império do Brasil foi outorgada.
Ela marca o início da cidadania no Brasil, uma complexa história que alia inclusão e exclusão. Se hoje temos como carta constitucional a denominada Constituição Cidadã, promulgada em 5 de outubro de 1988, foram importantes as demandas de movimentos sociais. O mesmo podemos dizer do movimentos contemporâneos, como as Mães de Maio, que simultaneamente denunciam os crimes cometidos pelo Estado Nacional brasileiro e tomam para si a tarefa de narrar esse capítulo da história do Brasil.
Em meio a tantas perguntas possíveis, compartilho com vocês algumas inquietações que guiam nosso ofício enquanto historiadoras e historiadores ou deveriam estar sempre em nosso horizonte: como encaramos os sujeitos da história? Com quem ou onde está a legitimidade para narrar a história?
Cidadania nas Constituições
Prestes a completar dois anos, o Brasil ganhava sua primeira carta constitucional, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro 1º.
O documento estabelecia os princípios políticos, incluindo as definições de “cidadãos brazileiros”. Em seu 1º parágrafo, por exemplo, estabelecia que libertos e ingênuos (nascidos livres) poderiam ser incluídos na categoria, mas nem sempre conseguiam garantir esse direito.
Em síntese, tinham de garantir acesso a educação e trabalho para exercer a cidadania plena. Isso, porém, não dependia apenas de suas próprias ações, mas, sim, de ter possibilidades viabilizadas pelo estado — ou, ao menos, não, impossibilitadas. Além disso, a liberdade negra era frágil e estava frequentemente sob ameaça. É bom lembrar que ser cidadão era exigência para ocupar cargos públicos, civis, políticos e militares (Art. 179 § 14)
Não raras as vezes, surgiam formas de descumprir a lei. Tanto que, em reação às denúncias, o jornal “O Mulato ou o Homem de Cor” estampou na capa de uma edição de 1833 o Artigo 179 da referida Carta Magna para lembrar seus leitores do conteúdo da legislação.
Além disso, leis provinciais foram criadas para estabelecer restrições aos libertos. Elas são resultado de um processo de tensionamento das relações sociais com o aumento da população negra livre. Exemplo disso é a legislação educacional da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Em 1837, a Lei Provincial n. 14 dizia que: “Serão proibidos de frequentar as Escolas Públicas (…) Os escravos, e pretos ainda que sejão livres ou libertos”. O trecho foi reproduzido da forma como se escrevia na época.
A Constituição de 1824 permaneceu em vigor durante todo o Império e perpetuou aquilo que os historiadores Sidney Chalhoub e Henrique Espada Lima identificaram como a precariedade estrutural da liberdade.
A cidadania negra foi processo de uma luta constante, em que o estado criava e/ou viabilizava mecanismos que fragilizavam a liberdade enquanto os grupos negros precisaram criar e manter seus próprios espaços de acesso à cidadania, sobretudo civil.
De lá para cá, houve um alargamento em torno dos significados de cidadania que só pode ser compreendido se observamos os processos históricos que envolvem diferentes sujeitos.
A Constituição de 1891, a primeira do país no regime republicano e após a extinção da escravidão, versa apenas sobre nacionalidade, mas não incluiu diferenças em relação a sexo. Isso acabou por tirar das mulheres o direito de votar. A inclusão que só foi formalizada no texto constitucional de 1934.
No pós-abolição, temos a permanência e o adensamento de demandas dos grupos negros organizados. Não são raros os exemplos advindos da experiência, em que homens e mulheres negras constroem redes complexas com objetivos diversos que extrapolam em muito o aspecto do lazer, ainda que muitas se apresentem sob essa roupagem, principalmente os clubes negros.
Havia nesses espaços aulas noturnas, organização das demandas de trabalhadores, estímulo à formação de professoras e a criação de redes de assistência em caso de falecimento. Também denunciavam por meio da imprensa negra os casos de preconceito de cor, como aqueles bastante comuns nos anos 1930, 1940 e início dos anos 1950, surgidos na iminência da promulgação da Lei Afonso Arinos, que, em 1951, incluiou entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor.
História Viva, a História Real
Para que se chegasse à Constituição Cidadã, promulgada em 1988 no contexto de redemocratização, mais reivindicação e negociações se fizeram necessárias. Um exemplo é a Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, que reuniu em 1986 organizações do movimento negro de diferentes estados em prol da redação de demandas a serem encampadas pelos deputados constituintes, entre os quais estava a única mulher negra, Benedita da Silva, a representar demandas tanto relacionadas a raça quanto a gênero.
A cidadania ampliou-se no Brasil pela força das reivindicações sociais e das próprias ações de quem se entendia como cidadão e cidadã mesmo quando o texto constitucional ou o seu cumprimento não lhe garantiu esse direito.
Mas isso não está no passado apenas, é a história do tempo presente. É a história viva do negro, como tão bem nos ensinou a historiadora Beatriz Nascimento.
Essa luta convoca a ciência histórica a se questionar como encara os sujeitos, que reivindicam de forma assertiva a narrativa sobre si e suas dores. É o caso das Mães de Maio, movimento social que reúne mulheres cujos filhos foram assassinados em 2006 nas periferias da Baixada Santista. As mortes, aliás, são decorrência de uma política de extermínio que demonstra como a cidadania ainda é restrita e racializada.
Dona Débora Maria da Silva, uma das Mães de Maio, sintetiza isso de forma magistral. “Trata-se de história real!”, diz ela.
Não é à toa que esta mãe teve seu título de doutora honoris causa aprovado na última semana pela Universidade Federal de São Paulo. Junto de três outras mães, ativistas e pesquisadoras, todas estão devidamente registradas junto ao CNPq. Ao narrar suas existências e aquelas ceifadas, elas nos convocam a refletir sobre os avanços, retrocessos e horizontes a partir de redes e diálogos que sempre estiveram presentes, mas foram ignorados pela academia, mais propensa em tratá-los como objetos de pesquisa.
*Fernanda Oliveira é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros.
Fonte: UOL | Imagem: Alma Preta.