Por Almir Felitte
Análise histórica demonstra: políticas de militarização e “guerra às drogas”, que justificam barbáries como a de ontem no Rio, fracassaram. Resultado foi a explosão de homicídios, prisões – e do próprio crime. É urgente reformular as polícias.
Esta semana, o Brasil assistiu a mais uma chacina pelas mãos de sua polícia. O roteiro já é conhecido: a polícia entra numa comunidade periférica sob a justificativa de combater o crime organizado e deixa um rastro de sangue e morte. A escolhida da vez foi a comunidade da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, onde, na última terça, uma ação policial resultou em ao menos 24 mortos.
Os discursos oficiais que se seguem ao massacre também já viraram praxe. As fichas criminais de algumas das vítimas servem de álibi para a chacina. Já aquelas sem passagem na polícia ganham a alcunha de suspeitas ou, “com sorte” são tratadas como um infeliz efeito colateral do “confronto”, provavelmente ocasionado por uma bala “disparada por bandidos”. Um político babaca aplaude a ação e parabeniza a polícia. E os noticiários ficam na expectativa pela cobertura da próxima chacina.
Convivemos há tantos anos com esses massacres que, de certa forma, eles já nos parecem naturais. Aliás, a violência como um todo nos parece natural, quase como se este fosse o destino triste e irremediável do país. Dentro de toda esta naturalidade, uma boa parcela da população aceita a cotidiana violência de Estado como um mal necessário diante de uma “criminalidade sem limites”.
Porém, muito embora a polícia mate cada vez mais, como os relatórios do Fórum de Segurança Pública têm nos mostrado, com dados oficiais, a cada ano, os números da própria criminalidade e da violência comum continuam apenas aumentando. Do mesmo modo, vemos, ano após ano, a população carcerária brasileira explodindo, sem que isso se materialize na redução das estatísticas criminais no país.
Em resumo, a polícia mata e prende cada vez mais, o Judiciário prende cada vez mais, as prisões recebem cada dia mais pessoas e, mesmo assim, a criminalidade e a violência no país só crescem. Ora, se a violência policial é realmente uma solução, então esta conta simplesmente não fecha. E quando uma conta não fecha, precisamos nos aprofundar ainda mais na raiz do problema.
Não quero, aqui, fazer um retorno ao passado infinito. Já escrevi diversas vezes, nesta mesma coluna, sobre as origens da polícia no Brasil e suas relações com a escravidão, o colonialismo, o controle sobre o proletariado e os movimentos grevistas e as doutrinas de segurança nacional.
Sabe-se, aliás, que este nascimento das polícias modernas, no Brasil e no mundo, esteve muito mais ligado à necessidade do Estado e das elites de encontrar maneiras de controlar as multidões do que em um suposto interesse em reduzir a criminalidade e aumentar o sentimento de segurança da população em geral.
Em Londres, por exemplo, no início do século 19, pouco antes das reformas que formariam as polícias modernas na Inglaterra, a taxa de homicídios havia caído para menos de 1 a cada 100 mil habitantes. No Brasil, várias estatísticas históricas apontam que o grosso das prisões efetuadas no país até a década de 1950 se davam por motivos de vadiagem, embriaguez, desordens, crimes políticos e sociais ou até mesmo para simples averiguação, e não por crimes comuns como roubos, furtos, lesões e homicídios.
Não se quer dizer aqui que o Brasil estivesse livre dos problemas da criminalidade e da violência. Mas alguns estudos demonstram que, do início do século 20 até a instauração da ditadura, a violência cotidiana não estava nem perto dos níveis assombrosos de hoje. Um importante levantamento realizado por Bruno Paes Manso sobre a região metropolitana de São Paulo, por exemplo, mostra que, entre 1920 e 1960, a capital paulista apresentava um índice de violência letal que não ultrapassava 5 a cada 100 mil habitantes, mesmo com a população paulistana tendo sextuplicado de tamanho neste período.
Com o golpe de 1964 alçando uma ditadura ao país, porém, os impactos da ideologia militar e da Doutrina de Segurança Nacional na segurança pública seriam fortes. Nesse sentido, duas reformas impostas pelo governo ditatorial no setor merecem destaque: o monopólio do policiamento ostensivo pelas Polícias Militares e a “guerra às drogas”.
Até a metade dos anos 1960, as Polícias Militares estaduais pouco se envolviam no policiamento cotidiano, sendo, na maior parte das vezes, empregada em situações de controle de multidões e repressão a revoltas. O policiamento de rua, no geral, principalmente nas grandes cidades, ficava mais a cargo das Guardas Civis, subordinadas às Polícias Civis estaduais na maior parte dos casos.
Já no período ditatorial, após as grandes manifestações de 1968 e na vigência do AI-5, o Decreto 667/1969 estabeleceu que, a partir dali, o policiamento ostensivo passaria a ser competência exclusiva das Polícias Militares. Por isso mesmo, nos anos seguintes, o que se viu nos estados brasileiros foi a supressão das Guardas Civis, extintas ou incorporadas às novas Polícias Militares.
Em termos práticos, a ditadura inaugurava uma estrutura policial bipartida que se mantém até hoje: com uma polícia civil que se limita ao trabalho de investigação e persecução criminal nas delegacias e uma polícia militarizada responsável pelo policiamento cotidiano a fim de manter a ordem nas ruas. Em outras palavras, a ditadura militarizou a relação diária entre população e polícias ao estabelecer o policiamento mais próximo dos cidadãos, o de rua, como uma competência exclusiva de militares.
Também neste período, pode-se dizer que a ditadura inaugurou a “guerra às drogas” no Brasil. Com grandes influências da política de entorpecentes norte-americana no contexto da Guerra Fria, os militares equipararam usuários e traficantes em 1968, previram a expulsão de estrangeiros envolvidos com drogas em 1971 e, em 1976, com a Lei nº 6.368, consolidaram o modelo bélico de combate às drogas no país.
Estas duas principais medidas da ditadura no campo da segurança pública, a militarização do policiamento ostensivo e a “guerra às drogas”, traduziram-se em números tenebrosos para o país nos anos que se seguiram.
Segundo o estudo de Paes Manso, se, na década de 60, São Paulo apresentava um índice de 10 homicídios a cada 100 mil habitantes, em 1980, esta taxa já teria escalado para 20,3. Os homicídios, que ocupavam apenas a quarta posição entre as mortes por causas externas em 1960, já teriam alcançado o topo deste infame pódio em 1985. Para se ter uma ideia do âmbito nacional deste problema, mesmo com o alto índice, São Paulo era apenas a nona capital mais violenta do país.
Ao mesmo tempo, o perfil destes crimes violentos também começou a mudar. Em 1965, 64% dos assassinatos ocorriam dentro das residências das vítimas, taxa que caiu para 45% já em 1975. Dados que indicam que a predominância de crimes violentos relacionados a conflitos familiares ou de vizinhança, geralmente de caráter passional, passava a dar lugar à violência letal caracterizada por corpos que amanheciam mortos sem explicação nas vias públicas.
É também nesta época que surgiriam os chamados “Esquadrões da Morte”, formados por agentes de segurança pública. Segundo documentos históricos da embaixada dos EUA no Rio de Janeiro, estes grupos podem ter sido responsáveis por 800 assassinatos só entre 1968 e 1971. De 143 destas vítimas em São Paulo, 120 eram acusadas de supostamente estarem envolvidas em tráfico de drogas.
Hoje, saudosistas da ditadura costumam repetir que naqueles tempos as pessoas não sentiam medo, que aqueles eram tempos mais seguros. A realidade dos fatos, porém, não nos mostra isso. Ao contrário, quando analisada de forma séria, percebe-se que a política de militarização do policiamento ostensivo e de “guerra às drogas” imposta pela ditadura ao sistema de segurança pública coincide com a explosão da criminalidade e da violência no país.
Ocorre que este sistema de segurança pública consolidado na ditadura não sofreu as mudanças necessárias nem mesmo com o processo de redemocratização. Ao contrário, a “Constituição Cidadã” consagrou esta estrutura ao constitucionalizar o policiamento ostensivo como função exclusiva dos militares. Tampouco a “guerra às drogas” teve trégua, sendo, inclusive, impulsionada por nova legislação em 2006.
A Nova República, infelizmente, optou por manter as reformas que a ditadura havia imposto ao sistema de segurança pública, as mesmas responsáveis por um aumento explosivo inédito nos índices de violência e criminalidade jamais visto no período republicano do país antes dos anos 1960.
Este aumento seguiria até atingir seu ápice nos anos 1990, quando o superencarceramento dá origem a facções criminosas como o PCC. O Brasil só voltaria a sofrer nova queda destes índices ao longo dos anos 2000, quando os primeiros planos nacionais de segurança pública passam a surgir com FHC e Lula. Mesmo assim, a violência letal no país conseguiu reduzir e se estabilizar apenas até os mesmos altos níveis atingidos desde os últimos anos da ditadura.
Com a continuidade da arquitetura de segurança pública consolidada pela ditadura, o país optou por seguir com uma lógica diária de guerra que justifica um policiamento cotidiano essencialmente militarizado. Uma arquitetura que não aceita debates, com instituições que simplesmente não aceitam mudanças. Uma lógica que transforma qualquer cidadão, a depender de sua cor, sua classe ou seu bairro, em um eterno potencial inimigo.
Uma lógica que não parece um erro, mas um verdadeiro projeto. Mbembe diz que o ódio ao inimigo e a necessidade de neutralizá-lo são as últimas palavras da política no espírito cotidiano:
“Por um lado, e à força do convencimento de que vivem numa ameaça permanente, as sociedades contemporâneas foram mais ou menos constrangidas a viver o seu cotidiano com pequenos traumas recorrentes – um atentado aqui, captura de reféns ali, um fuzilamento acolá e o alerta permanente. A utilização de novos instrumentos tecnológicos permite aceder à vida privada dos indivíduos. (…) Com a ajuda da reprodução alargada do sentimento de terror, as democracias liberais continuaram a fabricar espantalhos a meter-lhes medo”.
É urgente quebrarmos este ciclo de medo. E, se queremos realmente construir uma sociedade calcada numa cultura de paz para todos, é urgente derrubarmos as estruturas policiais como as conhecemos.
Fonte: Outras Palavras | Foto: Reuters/Lucas Landau.