Por Eduardo Vanini

MANAUS — Edina Shanenawa está prestes a dar início a um ritual inédito entre os povos indígenas do Acre: pela primeira vez, segundo ela, uma mulher receberá do próprio pai o título de cacique, até então entregue apenas aos filhos homens. Para ocupar oficialmente o posto, ela, que tem 47 anos, ficará isolada, durante cinco dias, de seus cinco filhos e das 80 pessoas que vivem na Aldeia Shane Kaya, no norte do estado.

Acompanhada pela irmã, que é vice-cacique, ela vai se alimentar apenas de assados, como banana e peixe, e não poderá beber água nesse intervalo. O único líquido permitido é o matxu, uma bebida à base de mandioca tradicional de seu povo. “Há outras cacicas, mas elas foram eleitas pela própria comunidade. Como minha mãe teve apenas filhas mulheres com meu pai, faremos esse ritual pela primeira vez”, comemora.

Embora não existam registros oficiais sobre a sua dimensão, Edina integra uma frente que não para de crescer: a das caciques mulheres — ou cacicas, como prefere parte delas.

A expansão feminina dentro do cargo majoritariamente ocupado por homens é relatada por pessoas como a professora de Letras da Universidade de Brasília Altaci Rubim, testemunha ocular do movimento. Ela própria é líder da Aldeia das Mulheres Indígenas Kokama Lua Verde, em Manaus, e conta como viu parte dessa mudança se desdobrar desde a década de 1990, no Alto Solimões.

Até este período, segundo Altaci, era muito comum que os caciques daquela região viajassem em busca de recursos e recebessem malas de dinheiro com ajuda financeira. Com isso, alguns acabavam gastando a verba com bebidas alcoólicas ou usavam a quantia em benefício apenas da própria família.

Foi então que muitas mulheres decidiram tomar a frente de seus grupos. “Elas começaram a lutar contra o álcool, mas também contra o machismo que as impedia de chegar à liderança”, relembra. “Aos poucos, passaram a ir até as cidades para as negociações, enquanto os homens faziam apenas a segurança. Ganharam respeito conforme a comunidade inteira era beneficiada pela atuação delas.”

Em alguns casos, é possível reconhecer até mesmo um rastro matriarcal na estrutura dos povos, como ocorre com os Tupinambá que vivem em um território no Baixo Tapajós, no Pará. Lá, nove das 23 comunidades são lideradas por cacicas, como Raquel Chaves Tupinambá, de 30 anos, à frente da Aldeia Surucuá.

Ela conta que tanto a sua tataravó quanto a bisavó foram notórias lideranças na região. “Mas, diferentemente delas, que tratavam mais da organização social interna das aldeias, boa parte do meu trabalho se dá fora da comunidade, buscando articulações que tragam melhorias para nós”, compara.

Formada em Biologia com doutorado em Antropologia Social, Raquel está ligada a pautas como as demarcações de terras e a proteção do território. Mais recentemente, tem sido uma importante voz ambiental, ao fazer denúncias sobre a contaminação por mercúrio na região. “A minha escolha pelo cargo é também política, no sentido de que acessei a universidade e conheço o mundo exterior”, afirma, sobre a maneira como usa o conhecimento a favor de seu povo.

Também da nova geração, Majur Traytow, da Terra Indígena Tadarimana, no Mato Grosso, fez história ao ser, segundo ela, a primeira mulher trans a assumir o posto de cacique. “Pelo tamanho da minha responsabilidade, acho que quebrei um tabu”, comemora a moça, de 30 anos.

Ela afirma que, dentro da comunidade, sempre lhe trataram com respeito, fato que reconhece como uma resposta à sua cordialidade pelos pares. Mesmo assim, sabe que a discriminação e a transfobia existem tanto dentro quanto fora da aldeia. “Além de ser indígena, sou uma mulher trans. Então, o preconceito é duplicado. Por isso, é tão importante mostrarmos que nos enquadramos na sociedade.

Os avanços tampouco significam que o caminho está livre para as mulheres que almejam o posto de cacique. Marli Tumê, por exemplo, faz parte do povo Huni Kuin, no Acre, e afirma que nunca houve uma mulher com esse tipo de liderança no seu território. “Faz só três anos que nós, mulheres, podemos falar nas reuniões. Antes, tínhamos que só escutar”, ilustra.

Decidida a se tornar cacica, ela tem corrido por fora para mostrar o quanto está capacitada para assumir o posto. No dia dessa entrevista, estava em meio a uma temporada nos Estados Unidos, onde viajava mostrando a cultura dos Huni Kuin e buscando ajuda. “Quero chegar com um projeto pronto, mostrando como estou preparada. Quando queremos propor nossas ideias, muitas vezes, os homens nem nos deixam falar.”

Além do machismo, essas mulheres precisam lidar, muitas vezes, com as ameaças de garimpeiros e fazendeiros que almejam suas terras. Maria Valdelice Amaral de Jesus, que se apresenta como a primeira mulher cacique da Bahia, responde por uma população de 8 mil pessoas dentro do território dos Tupinambá de Olivença e, segundo ela, é difícil viajar até mesmo entre aldeias, devido à precariedade das estradas aliada à falta de segurança.

“De onde eu moro até a última das 23 comunidades dá mais de 100km”, ilustra. “Os conflitos de terra são muito perigosos e tiram toda a nossa liberdade de andar sozinha. Tenho que estar sempre acompanhada por cinco a seis guerreiros. Também já fui ameaçada por um grupo de fazendeiros em pleno aeroporto, durante uma viagem. Sei que bala não é perdida, tem sempre um alvo.”

 

Fonte: O Globo.

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