Por Isadora Rupp

Mobilização de entidades é essencial para demonstrar reprovação aos ataques do presidente ao sistema eleitoral, mas é preciso agir também em outros campos, segundo cientistas políticas.

Com roteiro inspirado no ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, Jair Bolsonaro redobra a aposta no tumulto ao processo eleitoral brasileiro. Dentro de casa, a operação começou há anos: na campanha de 2018, o então candidato já colocava as urnas eletrônicas sob suspeita, sem apresentar provas. Depois de eleito, tentou condicionar a realização da eleição de 2022 à aprovação do voto impresso, participou de atos antidemocráticos em 7 de setembro, e questionou a votação brasileira diversas vezes. Fora de casa, o presidente fez uma apresentação contra as urnas eletrônicas diante de dezenas de embaixadores estrangeiros.

A reunião na segunda-feira (18) no Palácio da Alvorada, em Brasília, gerou iniciativas e repúdio de instituições, organizações sociais, partidos de oposição e do Departamento de Estado dos EUA. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) não se pronunciou sobre os ataques do presidente ao sistema eleitoral que foram feitos aos diplomatas e geraram forte repercussão externa negativa. Pressionado por colegas a abrir investigação contra o presidente, o procurador-geral da República, Augusto Aras, divulgou um vídeo em que defende sistema eleitoral num canal pessoal do YouTube na quinta-feira (21), três dias depois do evento.

Neste texto, o Nexo resume as ações tomadas até agora e traz análise de duas cientistas políticas sobre o que mais pode ser feito para que a eleição aconteça em outubro de forma democrática.

 

O posicionamento – e o silêncio – institucional

Os presidentes do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Edson Fachin, e do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, foram convidados para a reunião com os embaixadores estrangeiros, mas recusaram o convite, alegando dever de imparcialidade, pelo fato de Bolsonaro concorrer à reeleição. As duas instituições são alvos constantes de ataques do presidente e se pronunciaram logo após o fim do encontro.

Fachin chamou os ataques de “teia de rumores descabido e populismo autoritário”. Em nome do Supremo, Fux disse em nota que “repudia que, a cerca de 70 dias das eleições, haja tentativa de se colocar em xeque mediante a comunidade internacional o processo eleitoral e as urnas eletrônicas, que têm garantido a democracia brasileira nas últimas décadas”.

O TSE divulgou nota esclarecendo 20 dos principais ataques do presidente ao sistema eleitoral feitos durante o encontro com os embaixadores e listou as entidades que apoiam a Justiça Eleitoral e o sistema de votação, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), associações de magistrados, conselhos de direitos humanos e diversas universidades federais.

Em manifesto na quarta-feira (20), a Intelis (União de Inteligência de Estado da Abin) ressaltou a confiança na lisura do processo eleitoral, e contou que tem fornecido apoio técnico à Corte eleitoral para garantir a segurança do sistema de votação. A ABD (Associação de Diplomatas do Brasil) se posicionou, e disse que o sistema eleitoral brasileiro é referência internacional.

Procuradores federais e regionais pediram investigação contra Bolsonaro por abuso de poder. Na avaliação do grupo, o encontro com embaixadores foi uma campanha de desinformação. Deputados da oposição apresentaram notícia-crime ao Supremo para que o presidente seja investigado por crime contra o Estado Democrático de Direito por conta da reunião com embaixadores.

Partidos acionaram o TSE para que o vídeo do encontro seja excluído de plataformas digitais. Na segunda (18), o YouTube derrubou uma transmissão de julho de 2021 em que o presidente disseminava as mesmas informações falsas sobre as urnas. Dirigentes de 11 siglas se uniram para discutir o cenário de ameaça.

Mesmo pressionado por procuradores, o procurador-geral da República, Augusto Aras, não comentou diretamente a reunião. Na quinta-feira (21), divulgou um vídeo de 11 de julho em que dá uma entrevista a jornalistas estrangeiros. Nele, aparece dizendo que não acredita que o Brasil possa ter uma versão da invasão do Capitólio, sede do Congresso americano, por apoiadores de Trump que tentaram impedir a confirmação da eleição do presidente Joe Biden em 6 de janeiro. Uma mensagem por escrito no início do vídeo diz que Aras “recorda a necessidade de distanciamento, independência e harmonia entre os Poderes” e que “quem for eleito, será empossado” no Brasil.

Aras tem atuação alinhada ao governo – levantamento da CNN mostra que, desde que foi nomeado pelo presidente para chefiar o Ministério Público Federal, em 2019, ele foi contra 74 pedidos de investigação e a favor de 1, que foi arquivado posteriormente.

Aliado de Bolsonaro, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, também não se manifestou até quarta-feira (20). O líder do centrão é responsável por manter mais de 100 pedidos de impeachment na gaveta.

 

Ativistas, sociedade civil e EUA

O porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Ned Price, reiterou a posição do seu país em um pronunciamento à imprensa na quarta-feira (20), em Washington: espera que o Brasil e suas instituições ajam de acordo com o que está previsto na Constituição. Price frisou a confiança no sistema brasileiro.

“Eleições vêm sendo conduzidas pelo sistema eleitoral brasileiro, capacitado e já testado, e pelas instituições democráticas com sucesso por muitos anos. É um modelo para nações desse hemisfério e além”

Desde a reunião na segunda, centenas de entidades da sociedade civil, movimentos sociais, pesquisadores e institutos de direitos humanos se manifestaram publicamente. A maioria delas está reunida no movimento Pacto pela Democracia. As ações até agora incluem elaboração de estratégias para combate às fake news, conversas com o TSE e mobilização de igrejas, sindicatos e empresas, para levar o tema da segurança da votação a diversos setores da sociedade.

 

URNAS ELETRÔNICAS: SISTEMA É USADO NO BRASIL DESDE 1996, COM SUCESSIVAS ATUALIZAÇÕES.

 

Entidades do empresariado têm se mantido em silêncio. Nos bastidores, empresários afirmam que ficam constrangidos com as falas de Bolsonaro e do general da reserva Walter Braga Netto, pré-candidato a vice na chapa do presidente e coordenador da campanha, que também questiona as urnas. A última vez que os empresários se manifestaram de forma mais contundente foi em agosto de 2021, em meio à escalada autoritária pré 7 de setembro. Mas desde então se distanciam do debate.

Na quarta (20), segundo a CNN Brasil, a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) encaminhou um documento a todos os pré-candidatos à Presidência com propostas a serem implementadas caso vençam o pleito. O texto cita que a entidade deseja “compromisso com a democracia”, mas em nenhum momento se posiciona sobre os ataques de Bolsonaro às urnas.

 

As iniciativas sob análise

Para avaliar a eficácia das mobilizações e apontar o que mais pode ser feito para garantir a eleição, o Nexo conversou na quarta-feira (20) com as cientistas políticas:

Viviane Gonçalves Freitas, professora do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e Rosemary Segurado, coordenadora do curso de pós-graduação de Redes Digitais, Política e Cultura da PUC-SP.

As iniciativas da sociedade civil, como notas de repúdio, pedidos de investigação e conversas com TSE e STF são suficientes para lidar com essa ameaça de tumulto nas eleições?

VIVIANE GONÇALVES FREITAS Notas de repúdio não adiantam, ou adiantam muito pouco. Não podemos imaginar que a sociedade civil são só entidades emitindo essas notas. A sociedade civil somos nós, cidadãs e cidadãos, no dia a dia. É importante que a gente pense: como estamos conversando sobre isso? Como estamos tentando desmistificar os discursos do presidente da República? Há pessoas que acreditam nele pelo fato de ocupar o cargo. Bolsonaro usa essa legitimidade para manipulação. Cabe a cada um de nós, na política do cotidiano, conversar. Tentar desmistificar, quebrar com a cristalização da não-democracia. Por mais que ele fale que não quer um golpe, e sim transparência nas eleições, não é bem assim.

Porém, como não se mostra para a nossa população como funciona o nosso sistema eleitoral de fato, a conversa não é fácil. O funcionamento das nossas instituições faz com que a política seja afastada do dia a dia, de status superior. No Brasil, com os problemas sociais e inflação, realmente não tem como pensar que as pessoas estarão disponíveis mentalmente para pensar em outras coisas que não seja o prático. Mas com isso também estamos tirando delas o direito de participar da política. Que democracia é essa que prega igualdade, mas na verdade ela não existe? Se a pessoa tem que decidir se esse mês compra botijão de gás ou paga a água, você vai discutir urnas? É uma conversa difícil, mas ela precisa ocorrer de forma ampla.

ROSEMARY SEGURADO Essas iniciativas, obviamente, são muito importantes e devem ser intensificadas e articuladas com manifestações públicas. Mesmo que não seja um ato de rua. Por exemplo: a OAB organizar um tribunal para julgar os crimes contra a democracia. Esse tipo de iniciativa é que vai manter a sociedade civil em estado de permanente alerta em relação a todos os desmandos autoritários que Bolsonaro tem feito desde sempre. Já entendemos que o que ele faz é dobrar a aposta. É um golpe continuado, estamos em um modo golpe há tempos.

Outro ponto fundamental é a coalizão entre os partidos políticos. Evidentemente, a ameaça de impedir a eleição ou de não reconhecer o resultado do processo não afeta uma candidatura, ela afeta a democracia. Vai no coração dos partidos políticos, por mais frágeis e desarticulados que eles sejam no Brasil.

A rua é sempre uma estratégia eficaz para manifestar o descontentamento. Os cidadãos podem engrossar uma convocatória e organizar conversas no seu ambiente de trabalho, na sua vizinhança. Só que, ao mesmo tempo, entramos em algo delicado. Porque estamos em uma sociedade bastante dividida e radicalizada. Com essa violência política crescente que temos observado no período recente, haverá medo e receio em manifestar opiniões. Mas a defesa dos procedimentos da democracia, como a eleição e as urnas eletrônicas, é básica. Não tem a ver com opinião ou partido. Mostrar esses argumentos é a única coisa que pode nos tirar desse lugar.

Quem, na sua avaliação, está se omitindo diante da situação? E por quê?

VIVIANE GONÇALVES FREITAS Os empresários e a classe política continuam muito apáticos. Se formos pensar no impeachment de Dilma Rousseff em 2016, por muito menos problemas de crise econômica e aumento de combustíveis, ela foi afastada. E hoje a gente tem uma base de sustentação do governo muito forte no Legislativo com o orçamento secreto, o que mantém o centrão.

Não podemos desconsiderar os governadores. Precisamos ver como se dará essa relação. Ainda não temos os elementos à mão para saber o que está por trás para eles não se posicionarem sobre os ataques de Bolsonaro, ou para o Arthur Lira continuar apoiando. Caberia a ele aceitar os pedidos de impeachment.

ROSEMARY SEGURADO O maior fujão é o PGR [Augusto Aras]. Um cidadão comum pode até fugir desse debate. Mas o procurador-geral da República, que tem sido convocado a dar algum encaminhamento às denúncias, ele efetivamente se faz de morto. É uma coisa lamentável. As instituições do campo democrático precisam se mobilizar em relação a ele, em relação ao Lira [presidente da Câmara], que é uma coisa vexatória. Sabemos dos interesses que ele têm de manter o presidente sob controle. Ele não toma atitudes porque o orçamento secreto é a mina de ouro do centrão.

Por muito menos, ou quase nada, colocaram a Dilma para fora. É importante uma pressão frente a eles [Aras e Lira], que têm obrigação de agir frente a esse momento. A sociedade civil deve se manter vigilante, atenta e mobilizada para impedir que os arroubos autoritários de Bolsonaro consigam melar o processo eleitoral.

 

Fonte: Nexo.

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