Por Luiz Fernando Leal Padulla
Sequenciamento do genoma humano foi concluído este ano. Potencial para prever e tratar doenças é enorme – assim como de colonizar e lucrar com os corpos. Discriminatórias, pesquisas priorizam indivíduos de países ricos e ascendência europeia.
No início do ano foi noticiado o sequenciamento completo do genoma humano – com o sequenciamento dos 8% restantes do projeto original, que em 2003 havia chegado a 92%. Graças ao avanço tecnológico, os 8% restantes foram finalmente decifrados.
O passo seguinte é desvendar quais as proteínas que essa sopa de bilhões de bases nitrogenadas (adenina, timina, citosina e guanina) codifica. Ou, como digo em aula, se pensarmos no DNA como uma receita de bolo (proteína final), quais seriam os ingredientes (aminoácidos) que essas letras indicam para a formação desse alimento.
Sem dúvida, um avanço significativo e revolucionário para a ciência como um todo. Afinal, conhecer as variações genéticas possibilitam a melhor compreensão da etiologia da doença, detecção e diagnóstico precoces, desenho racional e personalização de medicamentos e cuidados clínicos aprimorados.
Já pensou em sequenciar seu próprio genoma e descobrir doenças e anomalias em potencial? Seria interessante para um tratamento precoce. Ou ainda, se usasse seu material genético para calcular de forma fria qual seu melhor parceiro amoroso, que lhe garantiria uma vida feliz e com filhos saudáveis?
É o que já está ocorrendo em vários lugares, com empresas de namoro (sim, sempre o capital visando seu lucro!) que fazem análises de DNA para combinarem “a química perfeita”. É o que afirmam, por exemplo, as empresas DNA Romance e GenePartner, que garantem um método de correspondência biológica entre os pares, com base no perfil genético do cliente, determinando o nível de compatibilidade genética com a pessoa de seu interesse.
Desembolsando a bagatela de U$249,00 (o que hoje seria algo em torno de R$ 1.350,00), a empresa calcula qual a taxa de compatibilidade genética entre o casal a ser combinado, o que seria determinante para relacionamentos “românticos, duradouros e bem sucedidos”.
Tais análises são feitas com base em marcadores genéticos conhecidos como HLA (genes do sistema Antígeno Leucocitário Humano). De acordo com estudos, quanto maior a diversidade desses genes, maior a atração entre as pessoas – focando na visão meramente reprodutiva para a perpetuação da espécie: maior a diversidade de HLAs numa pessoa, melhor sua resposta imune, filhos mais resistentes às doenças.
No entanto, há um perigo muito real nesse tipo de descoberta. Mas e se isso fosse um fator determinante para seu emprego? No livro O polegar do violinista[1], o autor nos alerta sobre isso. Afinal, testes gênicos podem servir de subsídio para que pessoas sejam empregadas ou não, afinal, testes genéticos já podem calcular a probabilidade de desenvolvermos doenças como parkinson, esquizofrenia, depressão, esclerose múltipla e tantas outras. Será mesmo que um empregador aceitaria uma pessoa que carregaria esses genes em seu “lattes”?
Importante dizer também que a maior parte dos testes genéticos se concentra em populações específicas. Até junho de 2021, 86% dos estudos genômicos foram conduzidos em indivíduos de ascendência europeia. Mais uma demonstração de que a pesquisa científica, em atendimento aos interesses do capital, discrimina e ignora populações menos privilegiadas. O levantamento mostra que cerca de 12 milhões de pessoas participaram de estudos genéticos na América do Norte. Na Europa, são 10 milhões de indivíduos. Esses números caem para 342 mil no Sudeste Asiático, 130 mil na África e apenas 24 mil na América do Sul.
O acesso às pesquisas, de forma geral, é igualmente preocupante. De acordo com Lilian Hunt, líder do programa de Igualdade, Diversidade e Inclusão da Wellcome Trust, as sociedades ocidentais, educadas, industrializadas, ricas e democráticas correspondem a menos de 12% da população mundial, mas representam até 80% dos participantes em estudos científicos, ditando, financiando e decidindo o que deve ser pesquisado de acordo com seus interesses.
Assim, tanto o avanço dessas pesquisas como o advento de medicamentos preventivos, não atenderão a todos de forma igualitária. A elaboração de técnicas e produtos personalizados, com alterações genômicas, como as técnicas de CRISPR, por exemplo, podem não surtir o mesmo efeito nas demais populações cujos dados genômicos são insignificantes.
Resumindo: as descobertas e os testes genéticos podem representar uma nova eugenia. Aquela mesma eugenia – ou até pior – proposta pelos nazistas, que visava exterminar “humanos inferiores”. A neoeugenia é preocupante, pois camufla-se com argumentações científicas em uma sociedade que tem aflorado a cada dia mais discursos racistas e preconceituosos, chocando ovos da serpente nazifascista.
Paralelamente, não podemos relevar a situação de sua utilização para outros fins que não sejam médicos. Nas mãos de bilionários, como Elon Musk e cia, quem garante que pesquisas e elaborações de “super-humanos” não podem acontecer? Ainda que não seja ético, há uma lacuna em varias nações em relação às legislações, justamente pelo ineditismo de tais descobertas, dando brechas para a capitalização dessas pesquisas científicas.
Não é de agora essa preocupação com os avanços científicos e sua aplicabilidade. Em 1997 a clonagem de um mamífero (ovelha Dolly) fez cintilar os olhos do mundo com a possibilidade de gerarmos seres idênticos, perpetuando sua genética. No entanto, por algum motivo ainda a ser descoberto, Dolly desenvolveu doenças e morreu de forma prematura. No entanto, isso não impediu que empresas se valessem dessa técnica para lucrar e vender clones de animais domésticos, como é o caso da estadunidense ViaGen Pets & Equine, a líder mundial na clonagem dos animais que amamos. Desembolsando U$ 50.000 (cerca de R$270.000,00), trazem seu cachorro de volta geneticamente – sem que seja garantido, obviamente, que terá a mesma personalidade e comportamentos, ditados pela interação com o ambiente. Mas se optar pelo cavalo, U$ 85.000 (R$460.000,00).
Os próprios organismos geneticamente modificados (OGMs, os chamados transgênicos) deveriam servir como outro exemplo. Vendidos como a salvação da agricultura, tinham como objetivo aumentar a produtividade, usar menos agrotóxicos e gerar alimentos de mais qualidade. Anos depois, quando o monopólio das produções já havia sido conquistado de forma significativa pelos latifúndios, nada disso se comprovou. E, para piorar, resultados antagônicos se fazem presentes: produções menores, maior uso de agrotóxicos e surgimento de “pragas” resistentes pela contaminação cruzada com plantas transgênicas[2],[3],[4]. E junto com esse “combo tecnológico”, a contaminação do ambiente com essas substâncias químicas, incluindo a água que bebemos e o ar que respiramos, desencadeando inúmeras doenças como câncer, Parkinson, depressão, Alzheimer[5],[6]. E novamente o capital se faz presente com o “casamento dos infernos” que permitiu a fusão, em 2016, da maior produtora de transgênicos e seus agrotóxicos (Monsanto), com a maior produtora de remédios (Bayer), perpetuando o ciclo doença-cura. Uma sacada e tanto do capitalismo.
Enfim, pesquisas são fundamentais. Análises seguras e responsabilidade devem ditar o curso da ciência. Ainda que os estudos avancem, é óbvio que não cabe mais uma visão meramente reducionista de nosso DNA e nosso fenótipo, ainda mais com os estudos da influência do ambiente em nossos genes – epigenética, e a capacidade de expressão dos genes, ou seja, de ligá-los ou desligá-los. No entanto, a manipulação, a maneira como são moldados e para que se faz determinada alteração, deve ser motivo de ressalvas e muito cuidado. É importante que se diga: ainda que tenhamos uma carga genética, os genes não lidam com certezas, mas com probabilidades.
Mais do que uma visão holística, é preciso a verdadeira democratização da Ciência, e não a transformando em mera fonte de venda e lucros aos interesses de uma minoria. É por isso que devemos defender as instituições públicas e universidades federais, pois através de suas pesquisas imparciais, tornam possível os verdadeiros achados democráticos da ciência. É por isso que devemos lutar pelos investimentos em pesquisadoras e pesquisadores, aqueles que fazem as pesquisas – os mesmo que (sobre)vivem como bolsistas sem reajustes há mais de 9 anos, como é o caso da Capes.
Não é papel da ciência o uso de suas tecnologias para fins discriminatórios. A verdadeira ciência é humanizada, que se preocupa com o bem-estar de todos. É papel da ciência o desenvolvimento de técnicas que promovam a sustentabilidade mundial, a prevenção e erradicação de doenças. Mas enquanto larápios estiverem por trás dos investimentos e ditando o rumo das pesquisas, corremos o risco de sermos reféns de sua ganância e megalomania.
Luiz Fernando Leal Padulla é professor, biólogo, doutor em Etologia, mestre em Ciências e especialista em Bioecologia e Conservação. Autor do blog e da página no Youtube “Biólogo Socialista” e do podcast “PadullaCast”. Recentemente publicou o livro “Um irritante necessário”. Instagram: @BiologoSocialista
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.