Por Eduardo Miranda (BdF), Ricardo Senra (BBC) | Edição: Valdisio Fernandes

Pressão de pastores e irmãos de fé por votos em Bolsonaro tem levado evangélicos a expulsão ou abandono de igrejas em diferentes partes do Brasil.

Especialistas da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito explicam até onde vai a liberdade das instituições religiosas e o que pode ser abuso de poder econômico. Se comprovado, o abuso pode resultar em punição de candidato beneficiário e de liderança religiosa envolvida, mas sem punição para a igreja.

Nas últimas semanas, cenas de patrões coagindo e chantageando trabalhadores dentro das empresas e de pastores pressionando fiéis e fazendo a defesa do voto em Jair Bolsonaro (PL) a partir da disseminação de mentiras e de informações falsas (as fake news) contra o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se tornaram ainda mais comuns.

Em alguns casos, frequentadores de igrejas têm sido obrigados a declarar voto em Bolsonaro e quando manifestam o desejo de votar no petista, são humilhados ou mesmo expulsos de algumas congregações. Alguns destes relatos estão chegando ao Observatório de Crimes Eleitorais em Igrejas e Abuso Pastoral sobre a Liberdade de Voto, organizado pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

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Em apenas uma semana, o canal de WhatsApp, criado há alguns dias para denúncias pelos números (11) 98431-5637 / (21)99436-0352, recebeu diversos relatos de abusos de líderanças religiosas que pedem votos em Bolsonaro, xingam e proferem mentiras contra o adversário, fazendo uso da autoridade para impor visões de mundo e de política.

A BBC News Brasil recebeu mais de 100 relatos de cristãos, principalmente evangélicos, que narram episódios de pressão ou intimidação dentro dos templos na reta final da eleição.
“A gente se sentiu descartável.” “É como se nós, cristãos, estivéssemos vivendo a própria ditadura dentro do templo.” “Não reconheço mais a Igreja hoje.” “O pastor abandonou a Bíblia pra falar de comunismo.” “É triste ver um lugar sagrado sendo corrompido.” “A perseguição contra os cristãos já começou no Brasil. Só que dentro da própria igreja.”
Por votos em Bolsonaro, líderes religiosos ameaçam com castigo divino ou punição dentro da própria igreja aqueles que discordam da fusão entre política e religião. Apesar de representarem parte expressiva da comunidade evangélica, aqueles que discordam do presidente raramente têm chance de expressar sua opinião.

Depoimentos

Alisson Santos em entrevista à BBC diz ter sido expulso junto à esposa da igreja evangélica que frequentava desde 2019 em Aracaju (SE). Até o início de outubro, ambos trabalhavam como evangelizadores de jovens no templo.
Para o jovem, o tom violento adotado em alguns cultos contradiz o propósito dos templos religiosos.

“Teve um culto em que o pastor chegou e falou que se o candidato Lula fosse eleito e fossem queimar as igrejas, ele ia mandar queimar primeiro quem votou nele. Isso não foi fora da igreja, não foi nos corredores, foi na frente da igreja toda”, ele diz.

Marta vive numa capital nordestina. Muito religiosa, ela também diz que se viu obrigada a deixar a igreja que frequentava há décadas por discordar da pressão de pastores por apoio ao presidente.

“Sinceramente, eu me senti pressionada. Você passa a ser perseguido dentro do próprio templo pelos irmãos, na fé e pelos próprios pastores. Fiquei muito triste, decepcionada primeiramente. E, sinceramente, não tenho vontade de retornar para o templo mais porque Jesus não é isso. Ele não veio para fazer pressão”, diz.

Muitos evangélicos pediram anonimato, com medo de consequências para si próprios ou suas famílias dentro das igrejas.

A BBC News Brasil pediu esclarecimentos a todas as igrejas citadas nesta reportagem: Igreja Quadrangular, Igreja Batista, Assembleia de Deus e Santuário católico de São Miguel Arcanjo. Nenhuma respondeu às solicitações de comentários.

‘Perdi minha fé. Não tenho mais religião’

Enquanto muitos dos cristãos ouvidos pela reportagem contam que decidiram se afastar de suas igrejas e buscar outras opções, onde sua posição política seja respeitada, Luiz Fernando, que vive no interior da Bahia e era evangélico desde os 12 anos, tomou decisão mais drástica.

“Durante todos os anos que eu estive na Igreja, passamos por eleições presidenciais, por eleições municipais e nunca, até 2018, foi abordada essa questão de ‘vote em tal candidato’. Era uma coisa que deixava todo mundo muito à vontade. Você não sabia se o seu irmão da cadeira da frente era a favor do partido A ou do partido B. Não sabia se a pessoa ao seu lado era a favor de partido A ou partido B. Tinha essa liberdade de voto e ninguém era recriminado por isso”, ele lembra.

“Em 2018, eleição presidencial em que Jair Bolsonaro apareceu como o candidato cristão, que levantava a bandeira da família, da religiosidade, aquela coisa toda, eu percebi que a entonação dos cultos, o direcionamento dos cultos da igreja modificou.”

“Aí eu simplesmente eu percebi que tudo o que eu tinha vivido, aquela coisa de paz, de amor ao próximo, de tentar conquistar através do amor, foi tudo por água abaixo, porque eu vi o ódio e vi o ódio presente nas pessoas, nos meus amigos que eram da igreja. Eu vi essa coisa de guerra. Então eu falei: ‘não, não dá mais, me desiludi com a religião. Eu simplesmente deixei de ir’.”

“Depois desse governo que se diz cristão, eu não consigo mais me relacionar com Deus intimamente. Na última pesquisa do IBGE, eu já me declarei que não tenho fé. (Perguntaram) ‘Você é crente, você é católico, qual é a sua religião?’ Eu falei: ‘Não, não tenho religião’. Então não sei o que eles colocaram. Se agnóstico ou ateu, alguma coisa assim. Mas eu já não me coloquei mais como cristão, não me representa. Isso já não me representa mais.

“Eu percebi que para eu voltar a ter um relacionamento com Deus, a Igreja precisa mudar. E eu vejo que a Igreja não quer mudar.”

Pastores relatam perseguições e até ameaças de morte

A Agência Pública conversou com pastores e lideranças evangélicas, de várias denominações, entre elas batistas, assembleianos, presbiterianos, pentecostais e neopentecostais, que relataram sofrer represálias por declararem voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nestas eleições.

Na Assembleia de Deus, maior denominação evangélica do país, a principal convenção apresentou resolução para punir pastores que “defendam, pratiquem ou apoiem” pautas de esquerda.

Os casos localizados pela reportagem envolvem processos judiciais contra os sacerdotes, afastamento dos pastores de suas funções, constrangimentos, ataques e xingamentos nas redes sociais, e até ameaças de morte. As pressões sofridas causaram adoecimento psicológico para alguns dos entrevistados. Eles também disseram temer pela própria vida e dos seus familiares. Com medo de represálias, alguns pediram para ter suas identidades preservadas.

“A gente tem casos de pastores que usam o púlpito e de pessoas que sofrem com a coação dos próprios irmãos, de não poderem se manifestar porque aquela comunidade vai votar no Bolsonaro por pressão do pastor, pastores que estão em situações muito difíceis porque são pressionados a revelarem o voto, entre outros”, afirma Fernanda Fonseca, integrante da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

Fernanda informou ainda que as pessoas pedem para não terem as identidades reveladas com receio de passarem por mais problemas dentro das igrejas. Ela contou que as denúncias e reclamações de abusos dentro das igrejas, tanto de pastores e padres e outros líderes religiosos quanto de irmãos são todos referentes a Bolsonaro. “Não recebemos nenhum caso de uso do púlpito com pedido de voto em Lula”.

O ibservatório está registrando as denúncias no site do Pardal, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que já chegou a receber até mil multas em um único dia, e envia os relatos para um grupo de advogados que dão suporte jurídico e fazem a triagem do que vai ser encaminhado para o Ministério Público Federal (MPF) e o que vai ficar apenas como denúncia no TSE.

O que diz a lei?

Especialista em direito eleitoral, o advogado Fernando Neisser explicou ao Brasil de Fato que o artigo 37 da Lei Geral das Eleições veda qualquer tipo de propaganda do gênero em igrejas, fábricas, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais em geral, assim como em museus e cinemas, por exemplo.

“Esses locais são considerados para a legislação eleitoral bens de uso comum e, portanto, está absolutamente proibida a realização de qualquer propaganda eleitoral no interior desse tipo de estabelecimento, seja a distribuição de materiais, seja o pedido de voto positivo para que se vote em alguém, seja o pedido de voto negativo para que não se vote em alguém”, afirma Neisser.

Segundo o advogado, a pena prevista para a conduta é uma multa de no mínimo R$ 5 mil, além da cessação imediata do ato. Ele acrescenta que há agravantes, quando há recursos financeiros envolvidos e quando o fato repercute de forma considerável na eleição. “Isso pode levar à configuração de abuso de poder econômico e, em tese, à cassação daqueles candidatos considerados beneficiários”.

Igreja não é punida

Para a professora de Direito Eleitoral da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Vânia Aieta, é preciso deixar claro que não existe na lei o crime de abuso de poder religioso e que não há punição prevista para a igreja, e sim multa imputada às pessoas físicas envolvidas em abuso de poder econômico.

“Não pode haver propaganda eleitoral dentro da igreja porque isso é uma norma violadora da propaganda eleitoral. Mas não se pode criminalizar a igreja, que é pessoa jurídica e nem pode ser criminalizada. A tipologia de abuso de poder religioso não existe e seria um tiro no pé se fosse criada, porque abriria portas para o abuso de poder educacional, o abuso de poder cultural, entre outros”, analisa Vânia.

“Agora, se houver toda uma engenharia comprovada de pressão em cima do eleitor, carta do pastor ou de qualquer outro líder religioso, toda uma mecânica de obtenção de voto usando a igreja, aí pode haver um caso de abuso do poder econômico, com punição do candidato como beneficiário e o líder religioso como partícipe, mas a igreja não pode ser punida”, explica a professora da Uerj.

 

Fonte: Brasil de Fato, BBC News Brasil e Agência Pública.

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