Por Mariana Vick

Indígenas afetados por invasão garimpeira vive em território entre o Brasil e a Venezuela há cerca de 1.000 anos. Comunidades conservam modo de vida tradicional e se opõem à visão da natureza proposta por não indígenas.

Presentes há cerca de 1.000 anos no território que ocupam até hoje, numa área de floresta tropical densa entre o Brasil e a Venezuela, os Yanomami são um dos maiores povos indígenas da Amazônia que conservam seu modo de vida tradicional.

Espalhados em um território de cerca de de 230 mil km² nos dois países, no qual vivem 640 comunidades, eles têm uma longa história anterior à crise recente causada pela invasão do garimpo, marcada por costumes e mitos próprios e pelo desenvolvimento de uma relação íntima e sagrada com a floresta.

O Nexo explica a origem, a trajetória e as visões de mundo dos Yanomami, com base em informações de livros publicados por antropólogos e lideranças indígenas e também em documentos de organizações da sociedade civil. Mostra ainda como os Yanomami respondem à invasão garimpeira.

 

A origem e a geografia dos Yanomami

Formada por caçadores, coletores e agricultores de coivara (itinerantes), a sociedade Yanomami vive nas duas vertentes da serra Parima, cadeia de montanhas de 1.700 m de altitude que define a fronteira entre o Brasil e a Venezuela e é o divisor de águas entre o alto Orinoco, no sul venezuelano, e a margem esquerda do rio Negro, no norte do Brasil.

Segundo uma das hipóteses mais aceitas por pesquisadores, os Yanomami são descendentes de um antigo grupo indígena (chamado de “proto-Yanomami”) instalado há um milênio no entorno da serra, onde as comunidades se isolaram por um longo período até os séculos 19 e 20.

Parte do grupo se dispersou para as planícies nesse período por causa de um processo de crescimento demográfico dos Yanomami, atribuído à adoção de novos cultivos (como a banana), à obtenção de ferramentas de metal por meio de trocas ou guerras com grupos vizinhos e à dizimação dessas outras comunidades pela fronteira colonial, que esvaziou territórios no entorno e abriu espaço para a migração.

Cerca de cinco séculos antes, os Yanomami já haviam iniciado um processo de diferenciação interna que gerou as atuais línguas do grupo. A família linguística Yanomami é composta de pelo menos quatro línguas (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam) que se subdividem em diversos dialetos.

Pesquisadores consideram que os Yanomami são muito diferentes, dos pontos de vista linguístico, genético e antropométrico (ramo da antropologia que estuda o corpo humano), de seus vizinhos imediatos, como os Ye’kuana, que também vivem entre o Brasil e a Venezuela.

26.780 é a quantidade de indígenas Yanomami no Brasil, segundo dados de 2019 da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena); na Venezuela, eles são pouco mais de 11.300, segundo dados de 2011

Demarcada em 1992, a terra indígena Yanomami brasileira ocupa 96.650 km² no extremo norte do país, ao longo da fronteira venezuelana. Com uma grande diversidade de ecossistemas, a área — a maior demarcada no Brasil — é considerada pela comunidade científica prioritária em termos de proteção da biodiversidade da Amazônia.

A palavra Yanomami é uma simplificação do etnônimo Yañomami, que, seguido do plural thëpë, significa “seres humanos” em yanomami ocidental. O termo foi inicialmente adotado na Venezuela para nomear o conjunto da etnia e usado no Brasil a partir dos anos 1970.

 

Como as comunidades se organizam

Cada comunidade yanomami é constituída em geral por um conjunto de parentes cognáticos (que advêm do mesmo tronco, seja masculino, seja feminino) cujas famílias são unidas por laços de intercasamento repetidos por duas ou mais gerações, idealmente entre primos cruzados (filhos da tia paterna ou do tio materno).

Essas famílias vivem juntas em casas comunais em forma de cone ou de cone truncado (caso dos Yanomami orientais e ocidentais) ou em aldeias compostas de casas retangulares (caso dos indígenas que vivem nas regiões norte e nordeste do território).

Cada casa coletiva ou aldeia se considera uma entidade econômica e política autônomas. Ao mesmo tempo, todas mantêm relações com comunidades vizinhas, consideradas aliadas frente a grupos mais distantes. O espaço social fora desses limites é visto com desconfiança.

Base da economia local, a floresta está no centro das atividades exercidas pelos Yanomami. Nas regiões mais próximas à casa ou à aldeia, eles costumam se dedicar a pequenas coletas de alimentos, pesca, caça de curta duração e atividades agrícolas. Nas áreas mais distantes, fazem expedições coletivas de caça e coleta, principalmente durante a fase de maturação das novas roças.

4 a 6 meses é quanto os Yanomami podem passar acampados em abrigos provisórios para atividades em locais afastados da casa ou da aldeia, segundo o Instituto Socioambiental.

“Os Yanomami manejam mais de 160 espécies vegetais silvestres comestíveis, conhecem minuciosamente o comportamento de mais de 80 animais de caça, pescam cerca de 50 tipos de peixes, coletam 30 variedades diferentes de mel silvestre, 11 espécies de cogumelos, dezenas de invertebrados e cultivam mais de uma centena de alimentos, com destaque para a banana, a mandioca, a batata-doce, a taioba, o cará, a cana e o milho”, escreveram o líder indígena Davi Kopenawa e o pesquisador do Instituto Socioambiental Estêvão Senra em artigo publicado em 8 de fevereiro no jornal Folha de S.Paulo.

Como é comum entre caçadores-coletores e agricultores, os Yanomami gastam em média menos de quatro horas de trabalho diárias para satisfazer suas necessidades materiais, enquanto o restante do tempo é dedicado a atividades sociais e de lazer.

Entre as cerimônias típicas do grupo, está a de colheita do fruto da pupunheira e o chamado reahu (festa de funeral), que celebra a morte de um indivíduo. Segundo disse a antropóloga Alcida Rita Ramos numa entrevista à Agência Pública em 2022, embora haja pequenas variações regionais, esses rituais são marcados pela cremação do cadáver e por um grande evento:

“Congregando várias comunidades vizinhas e até mesmo distantes, anfitriões e convidados desempenham as diversas fases da cerimônia que dura mais de uma semana, incluindo cantos, danças, sessões xamanísticas e o que chamamos de diálogos cerimoniais. No último dia, o mais solene, os ossos do morto são pulverizados, adicionados a mingau de banana e ingeridos pelos parentes mais próximos”. Alcida Rita Ramos, antropóloga e professora emérita da UnB (Universidade de Brasília), em entrevista à Agência Pública em 2022.

 

O papel dos xamãs para o grupo

Grande parte da vida yanomami está ligada aos xamãs. Líderes espirituais das comunidades, eles fazem a conexão entre o que os indígenas chamam de mundo visível e mundo invisível, protegendo seus parentes de doenças e de outros males com auxílio dos xapiri, as entidades (espíritos) yanomami.

Esse trabalho também envolve rituais. Para ver e chamar os xapiri, os xamãs precisam inalar um pó alucinógeno chamado yãkoana, feito de resina ou fragmentos secos e pulverizados da casca interior de uma árvore. A inalação é feita por meio de um tubo de palmeira: numa das pontas, um xamã sopra o pó; na outra, outro o inala.

Davi Kopenawa, xamã e principal líder político dos Yanomami no Brasil, falou sobre o xamanismo em “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”, livro que escreveu em coautoria com o antropólogo francês Bruce Albert. O primeiro xamã foi o filho de Omama, demiurgo (criador) que, segundo a mitologia yanomami, deu origem ao povo indígena:

“[Omama] disse a ele [seu filho] estas palavras: ‘Com estes espíritos, você protegerá os humanos e seus filhos, por mais numerosos que sejam. Não deixe que os seres maléficos e as onças venham devorá-los. Impeça as cobras e escorpiões de picá-los. Afaste deles as fumaças de epidemia xawara. Proteja também a floresta. Não deixe que se transforme em caos. Impeça as águas dos rios de afundá-la e a chuva de inundá-la sem trégua. Afaste o tempo encoberto e a escuridão. Segure o céu, para que não desabe’”. Davi Kopenawa, xamã e líder yanomami, no livro “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”, escrito em coautoria com Bruce Albert.

Kopenawa conta que Omama criou a terra, a floresta, o vento e os rios. Mais tarde, ele criou os xapiri para que a humanidade pudesse se vingar das doenças e se proteger da morte, inventada pouco antes por seu irmão mau, Yoasi. Segundo os xamãs, os xapiri estão em todos os lugares, vistos sob a forma de miniaturas humanoides, vestindo ornamentos brilhantes.

 

A visão sobre a terra e a floresta

Apesar de estar na base da economia yanomami, a floresta não é para eles um espaço de exploração de recursos, mas uma entidade viva, que está intimamente ligada à sua cosmologia. Kopenawa conta em “A queda do céu” que os espíritos xapiri, por exemplo, colhem seus cantos a partir de árvores:

“Omama plantou essas árvores de cantos nos confins da floresta, onde a terra termina, onde estão fincados os pés do céu […]. É a partir de lá que elas distribuem sem trégua suas melodias a todos os xapiri que correm até elas. São árvores muito grandes, cobertas de penugem brilhante de uma brancura ofuscante. Seus troncos são cobertos de lábios que se movem sem parar, uns em cima dos outros”. Davi Kopenawa, xamã e líder yanomami, no livro “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”, escrito em coautoria com Bruce Albert.

Essa floresta é chamada de Hutukara. Segundo a mitologia yanomami, Omama a criou no “primeiro tempo”, quando havia apenas os yarori (ancestrais sobrenaturais que hoje são os animais de caça) e uma floresta frágil. Para criar outra mais sólida, Omama derrubou o céu sobre a antiga área e a partir dele ergueu a nova terra, onde também pôs as árvores, as montanhas, os rios e os animais.

“Os Yanomami não existem à toa. Não caíram do céu. Foi Omama que os criou para viver na floresta”, escreve Kopenawa no livro escrito com Bruce Albert. “O pensamento deles segue caminhos outros que o da mercadoria”, diz em outra passagem do texto.

Segundo a narrativa, quando criou a floresta, Omama escondeu os minérios sob o chão. Para os Yanomami, eles são as lascas do céu que caiu no primeiro tempo. “São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres, que só Omama conhecia”, escreve Kopenawa.

Além de guardar as epidemias (que os Yanomami chamam de xawara), os metais servem para fincar os pés do céu no solo, evitando que ele saia do lugar. Sem as estacas, a terra teria ficado arenosa e quebradiça, e o céu teria desabado, assim como no princípio.

Esse fenômeno esmagaria os Yanomami se acontecesse, segundo Kopenawa. “Quando, às vezes, o peito do céu emite ruídos ameaçadores [como trovões], mulheres e crianças gemem e choram de medo”, conta em “A queda do céu”. Para sustentá-lo, as comunidades recorrem aos xamãs.

 

A visão sobre a chegada do garimpo

Essa visão de mundo explica em grande parte a resistência dos Yanomami ao avanço do garimpo em seu território, que é ilegal. Kopenawa diz que a extração de recursos promovida pelos brancos (que os indígenas chama de napë, termo originalmente usado para “inimigo”) pode destruir a floresta:

“Os brancos não entendem que, ao arrancar minérios da terra, eles espalham um veneno que invade o mundo e que, desse modo, ele acabará morrendo”. Davi Kopenawa, xamã e líder yanomami, em entrevista para a BBC Wildlife em 1990.

Depois de séculos isolados ou convivendo apenas com outros grupos indígenas, os Yanomami tiveram os primeiros contatos com a sociedade nacional (não indígena) a partir de 1910, quando o Serviço de Proteção ao Índio, órgão do governo federal anterior à Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), se instalou na região.

Outros grupos ocuparam a área a partir desse contato. Junto com os funcionários públicos, adentraram o território missionários, viajantes e caçadores. Mais tarde, a ditadura militar (1964-1985) foi à região para construção de obras. O garimpo chegou depois, entre os anos 1970 e 1980.

Essa ocupação, como se cumprisse a previsão narrada pelos Yanomami, provocou um choque epidemiológico na terra indígena, acometida por epidemias como de gripe e malária. O garimpo também contaminou rios e peixes com mercúrio, o que provocou insegurança alimentar e mortes por desnutrição e intoxicação, num cenário parecido com o atual.

20% da população Yanomami morreu entre 1987 e 1993 em decorrência do garimpo ilegal, segundo estimativa da organização Survival.

Com a demarcação da terra indígena em 1992, o governo federal expulsou os cerca de 40 mil garimpeiros que ocupavam a região no fim do século 20. O grupo, no entanto, voltou a ocupar a região com intensidade a partir de 2016, incentivado pela diminuição da proteção de terras indígenas e pelo apoio de governos como o de Jair Bolsonaro à mineração.

Kopenawa e outros líderes yanomami ganharam projeção internacional ao decidir denunciar essas invasões. Para eles, é preciso falar com os brancos sobre os Yanomami, para que entendam a importância da floresta para os indígenas e para eles próprios, próprios, já que a destruição ambiental também os afeta.

Em vídeo publicado em parceria com o Instituto Socioambiental em 2020, no contexto da pandemia de covid-19, xamãs yanomami relacionaram o desmatamento e o garimpo com a emergência de novas doenças e com a mudança climática, que não afeta só as terras indígenas.

Kopenawa retornou na época ao tema da queda do céu. Segundo ele, até hoje os xamãs têm mantido o equilíbrio ecológico, mas, sozinhos, eles não vão conseguir impedir a destruição das florestas. Governos, grandes corporações e o “homem da mercadoria” (como os Yanomami chamam os brancos) precisam fazer o mesmo.

 

O lugar dos sonhos para os Yanomami

Pesquisadores têm se debruçado sobre o lugar dos sonhos para os Yanomami. Segundo o livro “O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami”, escrito pela antropóloga Hanna Limulja, os indígenas concebem os sonhos como experiências reais, diferentemente, por exemplo, da psicanálise, que os vê como representação do desejo individual.

Próxima dos Yanomami desde 2008, Limulja conta no livro que, para eles, os sonhos são um instrumento de conhecimento do mundo. “Os Yanomami sabem que o que vivenciam em sonhos é diferente do que o que experimentam em estado de vigília. No entanto, aquilo que experimentam sonhando é considerado tão importante quanto as experiências da vida desperta”, diz.

“Da mesma forma que o mundo é dotado de elementos que não alcançamos a olho nu como, por exemplo, esqueletos de insetos ou estruturas microscópicas de uma folha, os Yanomami entendem que os sonhos permitem ver mundos invisíveis”. Hanna Limulja, antropóloga e autora de “O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami”, em texto do livro

Davi Kopenawa descreve alguns de seus sonhos em “A queda do céu”. Segundo ele, quando era criança, viu espíritos pela primeira vez enquanto dormia: “Primeiro, eu via a claridade cintilante dos xapiri se aproximando, depois eles me pegavam e me levavam para o peito do céu”, conta.

“Não era à toa que eu sonhava que voava com tanta frequência. Os xapiri não paravam de carregar minha imagem para as alturas do céu com eles. É o que acontece quando eles observam com afeto uma criança adormecida para que se torne um xamã. Dizem a si mesmos: ‘Mais tarde, quando ela crescer, dançaremos ao seu lado!’; e continuam prestando atenção”. Davi Kopenawa, xamã e líder yanomami, no livro “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”, escrito em coautoria com Bruce Albert.

Segundo Limulja, quando um yanomami sonha, embora seu corpo esteja repousado, o pei utupë (sua imagem vital) se desprende e viaja para outros lugares, onde ele pode encontrar parentes próximos, distantes e mortos. Para o grupo, os sonhos estão ligados aos outros, e não ao próprio ego.

 

Fonte: Nexo.

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