Por Sueli Carneiro e Juliana Sanches
A questão de raça é central porque nenhuma outra vulnerabilidade criou um sistema de exploração econômica e social como a escravidão.
O ano começou inspirado pela esperança, traduzida pelo reembarque do presidente Lula no poder – além da flagrante mudança de patamar na qualidade do debate público. Tal inspiração, no entanto, só se converterá em mudança concreta se escaparmos da mesma lógica histórica do mito da democracia racial: os donos do poder oferecem alguma atenuação da desigualdade, suavizam o problema com alguns elementos simbólicos e preservam falsa igualdade perante a lei – aquela segundo a qual somos todos iguais, sem distinção de nenhuma ordem.
Contra a farsa da democracia racial, é hora de ir além e buscar um Judiciário efetivamente representativo da população. A diversidade precisa estar encravada nos três Poderes e todos os órgãos do Estado, especialmente no Supremo Tribunal Federal, peça central depois de retrocessos políticos, econômicos e sociais.
O presidente Lula terá a oportunidade de nomear dois ministros do STF, eventualmente três. Nesse contexto, surge debate sobre o que será determinante para a escolha dos ministros. A questão de raça, do gênero ou o perfil garantista?
A Constituição exige para um ministro do STF o notório saber jurídico. Não qualquer saber jurídico. Diretrizes constitucionais direcionam a escolha por um saber jurídico comprometido com a democracia, a dignidade humana, os direitos fundamentais, a separação dos poderes. O perfil garantista, designadamente em relação ao relevo que dá ao processo e à presunção de inocência como pedra de toque do sistema de justiça, é sim um farol a iluminar as escolhas.
A busca desse perfil pode ocorrer de duas formas. Numa perspectiva antirracista e de diversidade ou na perspectiva tradicional estruturada para reproduzir desigualdades. Será que só os juristas brancos possuem notório saber jurídico e perfil garantista? Ou: será que há juristas negros e negras garantistas, com trajetórias de defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito?
A resposta à última indagação é positiva. Tomemos um só nome: André Nicolitt. Juiz de Direito, professor da UFF, doutor em Direito, admitido no pós-doutorado da Universidade de Berkeley, na Califórnia, autor de obras que impactam a comunidade jurídica. Seu saber jurídico é comprometido com o garantismo penal, marco teórico de sua produção acadêmica e prática jurídica. Sua atuação é marcada pela defesa do Estado Democrático de Direito. Basta lembrar que em 2016 discursou contra o impeachment da presidenta Dilma, afirmando ser um golpe, fato que lhe rendeu um processo no CNJ.
As obras de Nicolitt foram citadas em votos históricos do STF, como os embargos infringentes que atenuaram os absurdos do julgamento do mensalão. Ele foi referido também em voto decisivo do ministro Celso de Mello, em favor da presunção de inocência, julgamento que corrigiu grande injustiça e restituiu a liberdade ao presidente Lula. Integrou comissão da Câmara e teve atuação valiosa para a Lei 14532/23, que deu novos contornos aos crimes de racismo.
Nicolitt passou ainda por uma formação existencial marcada por uma infância na miséria, criado por mãe solo e educado na escola pública. Ele tem a cor e se assemelha ao povo do Brasil: brasileiros e brasileiras são marcadamente pobres, marcadamente negros e negras.
Se temos que ter um ministro garantista, com trajetória de resistência democrática, vamos buscá-lo entre brancos ou entre negros? É preciso um olhar comprometido com a diversidade e o antirracismo, como anunciado na posse. A questão de raça, afinal, é central porque nenhuma outra vulnerabilidade criou um sistema de estruturação e exploração econômica e social como a escravidão.
É o momento de conter essa enfermidade. A presença de ministros negros na Corte fará a diferença para a questão racial. Daí considerar, além do juiz Nicolitt, o nome de uma mulher negra com as mesmas qualificações para romper com a tendência de termos um único ponto preto cercado de brancos por todos os lados para simular inclusão racial. Trataremos desse outro nome em outro artigo.
Não é um gesto de boa vontade. É um ato de sobrevivência para o futuro.
Sueli Carneiro
Filósofa, escritora e doutora em Filosofia pela USP. Fundadora e diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra, é considerada uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil e uma das principais ativistas antirracismo do movimento social negro brasileiro.
Juliana Sanches
Advogada criminalista, mestra em Sociologia e Direito pela UFF. É diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e diretora jurídica do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN). Ativista, é defensora de direitos humanos, antipunitivista e antiproibicionista.
Fonte: Carta Capital.