Por Manoela Miklos

 

Histórias inverossímeis saídas da boca de homens poderosos que se comportam de maneira inaceitável e cometem crimes muitas vezes colam. Manter a ordem é sempre mais simples do que fazer revoluções. Felizmente, existe o movimento feminista. Rodeados de yes people, os perpetradores da violência de gênero vivem imersos numa dissonância cognitiva sem fim e a única coisa que pode azedar suas vidas é o feminismo.

 

O primeiro episódio da série americana ficcional The Morning Show, lançado em novembro de 2019, apresenta à audiência a seguinte trama: um dos apresentadores de um programa de TV matinal de muito prestígio e grande audiência é demitido devido a acusações de má conduta sexual. O âncora Mitch Kessler, interpretado magistralmente por Steve Carell, é acusado de assédio moral e sexual. Funcionárias relatam inúmeras ocasiões nas quais Kessler cruzou limites inegociáveis, violou direitos e atentou contra a dignidade sexual de mulheres que trabalhavam para ele. Kessler é demitido pela emissora e se revolta ao ver-se obrigado a deixar a empresa onde trabalhou por décadas, onde construiu uma carreira exitosa. Kessler acha que sua demissão é injustificada e que sua desgraça é um destino injusto.

Na metade do episódio, vemos um Mitch Kessler inconformado, tomado pela raiva, que brada para o que restou da sua equipe em sua mansão: “Eles não podem fazer isso comigo, não podem destruir minha vida por causa de rumores!” Um assessor repreende Kessler: “Não são rumores, a emissora recebeu queixas documentadas, você precisa encarar a realiidade”. Kessler rebate: “Queixas documentadas de quê? Dos casos que tive? Isso não é crime. Eu não inventei o sexo extracurricular”. O jornalista, um turrão indignado, segue dizendo que tudo que fez foi ter relações sexuais consensuais com algumas funcionárias maiores de idade, que desde que o mundo é mundo os homens usam seu poder para conquistar mulheres e que a atitude de seu empregador ao descartá-lo depois de 20 anos seria uma arbitrariedade e uma tremenda hipocrisia. Mitch Kessler é um narcisista irremediável que abusa do poder e das mulheres que o rodeiam. Quando confrontado com as consequências dos seus atos, se desespera. Destemperado, reclama do feminismo, do #metoo, da cultura do cancelamento e do que considera uma decisão exagerada e covarde de seu empregador. As vítimas de Kessler querem um acerto de contas, mas ele não acredita que precise acertar com ninguém.

Caras como Mitch Kessler acreditam de verdade que são inocentes? Não sabemos. Sabemos é que caras assim odeiam ter que lidar com as consequências de seus atos e odeiam a força que os obriga: o feminismo.

Em outubro de 2020, o jogador de futebol Robinho temia que o plano de voltar ao time que o revelou, o Santos, não fosse se concretizar. À época, Robinho era réu em um processo por estupro que tramitava na itália. Uma jovem albanesa o havia acusado de estupro em 2013 e o movimento de mulheres, ao tomar pé da seriedade processo e da lucrativíssima negociação e curso com o Santos, fez o que sabe fazer. Cobrou o time e seus patrocinadores e tornou o retorno de Robinho ao Santos inviável. Quando a Justiça demora ou decepciona, resta às feministas brigar nos demais fronts e pressionar pelo acerto de contas possível. A geração #metoo, do #meuprimeiroassedio e do #chegadefiufiu se especializou em fulminar reputações enquanto espera pelo sistema de Justiça.

Hoje, sabemos o que sobrou para Robinho. O jogador foi condenado pela Justiça italiana a nove anos de prisão em 2022. Como o Brasil não extradita nativos, o governo italiano pediu ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) que ele cumpra a sentença no país de origem. O órgão já deu andamento ao processo. Em 2020, contudo, o jogador ainda acreditava ser possível um desfecho menos desagradável e se declarava inocente, vítima de um golpe. Imbuído da missão de driblar as consequências de sua conduta, Robinho concedeu uma entrevista para o portal UOL e queixou-se: “infelizmente, existe esse movimento feminista”.

Infelizmente, existe o movimento feminista. É o que pensa todo assediador quando confrontado com a possibilidade de ter que responder pelo que fez. É o que pensa todo predador que se assusta e descobre que há consequências. É o que acha aquele que tinha certeza da impunidade e agora precisa rever sua estratégia. É esse o pesadelo dos poderosos ressentidos. Do ponto de vista de quem abusa não existe abuso algum. Quem agride meninas e mulheres não acha que o fez, acha que violência é flerte, é consentimento, é parceria, é amizade, é troca, é exagero, é do jogo, faz parte. Abusadores quando confrontados com as violações que cometem frequentemente se surpreendem porque tudo dentro deles e à sua volta leva a crer que não há nada problemático nas suas atitudes. Rodeados de yes people, os perpetradores da violência de gênero vivem imersos numa dissonância cognitiva sem fim e a única coisa que pode azedar suas vidas é o feminismo.

HISTÓRIAS INVEROSSÍMEIS SAÍDAS DA BOCA DE HOMENS PODEROSOS QUE SE COMPORTAM DE MANEIRA INACEITÁVEL E COMETEM CRIMES MUITAS VEZES COLAM. MANTER A ORDEM É SEMPRE MAIS SIMPLES DO QUE FAZER REVOLUÇÕES. FELIZMENTE, EXISTE O MOVIMENTO FEMINISTA

Na semana passada, o colunista do jornal Metrópolis Guilherme Amado entrevistou mulheres que acusam o humorista e agora ex-diretor do Núcleo de Humor da Globo Marcius Melhem de assédio moral e sexual. Amado conversou também com testemunhas que descreveram em detalhes a toxicidade do ambiente de trabalho que experimentaram sob a chefia de Melhem e corroboram o relato das vítimas. Deram entrevistas a Amado e à jornalista Olívia Meireles as atrizes Dani Calabresa, Renata Ricci, Georgiana Góes, Veronica Debom, Maria Clara Gueiros, as roteiristas Luciana Fregolente e Carolina Warchavsky, os diretores Cininha de Paula e Mauro Farias, e os atores Marcelo Adnet e Eduardo Sterblicht. Guilherme Amado entrevistou também o acusado. Melhem, alá Mitch Kessler, vociferou bastante e apresentou teses de defesa débeis. Não parece haver, aos olhos dele, nenhuma conta para acertar com ninguém. Vítimas e testemunhas precisam mergulhar num profundo exame de consciência e se desculpar, ele não. Marcius Melhem tem, ao longo dos anos, repetido versões inverossímeis das histórias relatadas por suas vítimas e investido alto no lawfare, o uso das leis como instrumento de combate.

Em 1991, a premiadíssima escritora americana Susan Faludi publicou o icônico “Backlash”. A obra tinha como subtítulo, numa tradução livre, “A guerra não-declarada às mulheres americanas”. O tema era a reação que se deu na década de 1980 às conquistas feministas das duas décadas anteriores. Nas suas 550 páginas, a autora examinou cuidadosamente as falsas premissas do imaginário antifeminista da direita conservadora que chegou ao poder nos EUA presidido por Ronald Reagan. Ao fim, a autora conclui que o backlash é uma tendência histórica que se verifica sempre que há avanços nas agendas de direitos e consiste, é um efeito rebote. Aqueles cujos privilégios estavam garantidos sob a velha norma sempre irão, agonizantes, tentar se reorganizar e partir violentamente para o contra-ataque com o objetivo de restaurar a ordem que lhes convinha. É de Faludi a frase: “For some high-profile men in trouble, women, especially feminist women, became the all-purpose scapegoats-charged with crimes that often descended into the absurd”. Homens poderosos inventam absurdos para aniquilar aquelas que não conseguem controlar. Melhem é desses. Robinho também. Personagens como Mitch Kessler são inspirados em caras assim.

Acompanho o caso Marcius Melhem há anos e tenho a mais absoluta certeza de que ele fará história. A luta por dignidade sexual – em especial, a luta contra a discrimicação, o assédio moral e o assédio sexual no ambiente de trabalho – será outra depois desse episódio. A coragem das vítimas e testemunhas é vital e viral, uma inspiração. A retidão e a disposição infinita da advogada Mayra Cotta, que defende as vítimas, é igualmente comovente. Tenho plena certeza de que esse caso deve espantar pelo que tem de comum, não pelo que tem de extraordinário. Dados publicados no início do mês pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública chocam, mas não surpreendem: uma brasileira é assediada por segundo. Aproximadamente 52% da população brasileira presenciou, em 2022, alguma situação envolvendo meninas e mulheres sendo agredidas por parentes ou parceiros íntimos. Ao comparar os dados da pesquisa rodada em 2022 com os informações do ano anterior, vemos que houve crescimento de todas as modalidades de violência de gênero. Todas. O assédio sexual – seja no ambiente de trabalho, no transporte público – atingiu recordes inimagináveis. Nunca se falou tanto de desigualdade de gênero no nosso país. Contudo, os números seguem crescendo. O estudo do Fórum revela mais uma faceta da violência de gênero à brasileira: embora todas as formas de violência tenham mostrado crescimento, houve incremento especialmente acentuado de episódios potencialmente letais como perseguição, ameaça com faca ou arma de fogo e espancamentos. Trocando em miúdos, os predadores estão armados e dispostos a tudo para manter suas presas, presas. Esse é o tamanho do problema.

As narrativas públicas que engendram para se defender têm enorme apelo. O homem poderoso que atenta contra a dignidade sexual de meninas e mulheres pede às pessoas ao seu redor algo muito, muito simples: nada. Vítimas e testemunhas pedem coisa bem pior, pedem que interlocutores escutem histórias traumáticas e tomem partido. Os agressores desejam que tudo permaneça como está, as vítimas precisam com urgência virar o mundo de cabeça para baixo. Por isso histórias inverossímeis saídas da boca de homens poderosos que se comportam de maneira inaceitável e cometem crimes muitas vezes colam. Manter a ordem é sempre mais simples do que fazer revoluções. Felizmente, existe o movimento feminista.

Em “Backlash”, Faludi afirma que “the heart of the backlash argument is: women are better off ‘protected’ than equal”. É uma ideia-força presente nas aspas de Robinho sobre o feminismo, que está no subtexto de tudo que Melhem diz e que recheia a reação de Mitch Kessler na ficção. Noutra palavras, os artífices do backlash acham que o feminismo bagunçou tudo. A geração #metoo costuma ser definida como a geração que expõe e cancela. Eu prefiro pensar a gente diferente. Acho que somos a geração que veio atribuir responsabilidades em todos os fronts possíveis. Somos a geração que veio para apressar o tempo do Estado, pausar o tempo do agressor e fazer o mundo dançar no tempo sincopado do trauma. Somos a geração que para acertar as contas. E a gente tá só começando.

Talvez, o único consenso entre as feministas e os homens poderosos que acham que estão sendo excessivamente castigados seja a seguinte: precisamos de regras suficientemente claras. Os agressores querem a restauração dos consensos que lhes beneficiavam. As feministas brigam por novos consensos. Eu aposto, claro, no potencial dos feminismos de promover um realinhamento genuíno e sem precedentes de forças. As celebradas jornalistas do New York Times Jodi Kantor e Megan Twonhey contam, em seu livro “Ela Disse”, sua trajetória alucinante na busca por verdades sobre o Caso Harvey Weinstein. Ao fim, elas dizem que um problema que não é visto não pode ser enfrentado. Segundo as jornalistas, as vítimas de Weinstein que toparam falar em on sobre o que passaram nas mãos de seu chefe-carrasco carregam cicatrizes mas hoje se orgulham delas. Enxergam a transformação que ajudaram a operaram. Para vítimas, falar da violência de gênero publicamente é muito doloroso. É reabrir feridas. Mas não há atalhos, mudar o mundo dói menos do que viver nesse mundo como ele está.

 

Manoela Miklos é cientista política, mestre e doutora em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP). Diretora de Estratégia do laboratório de ativismo NOSSAS.

 

Fonte: Nossas.

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