Gravado há 40 anos, álbum inédito do Trio Os Tincoãns chega as plataformas com canções que ganham coral e o mesmo status dispensado ao gospel americano. Grupo fundamental da música brasileira, combina a complexidade rítmica e melódica de temas do candomblé à sofisticação barroca da cultura católica.

 

Os Tincoãs (nome de uma ave), se uniu em meados dos anos 1950. O som feito por eles tinha como base os cantos de candomblé, sambas de roda e cantos sacros católicos.

 

Com dez faixas, o disco, que chega pela Sanzala Cultural, marca o encontro das vozes e instrumentos de Dadinho (violão), Mateus Aleluia (atabaques) e Badu (agogô e ganzá) com o Coral dos Correios e Telégrafos do Rio de Janeiro. Idealizado por Adelzon Alves, a nova versão do projeto foi gravado nos Estúdios Transamérica (RJ), com participação do lendário percussionista brasileiro Pedro Sorongo; e remasterizado por Tadeu Mascarenhas, no Estúdio Casa das Máquinas

 

No ano em que a obra completa 40 anos de sua gravação, Mateus Aleluia, o remanescente vivo que integrou o lendário trio baiano por mais tempo, desejou disponibilizar as dez faixas, quatro delas nunca gravadas antes. Com o violão de Dadinho, os atabaques de Mateus e o agogô e ganzá de Badu, todas as músicas do álbum foram compostas e adaptadas pela dupla Mateus e Dadinho e também serão lançadas em vinil. A idealização do projeto é do produtor do trio na época, Adelzon Alves. Com Os Tincoãs desde 1973, ano de lançamento do disco de estreia homônimo, que trazia a cultuada “Deixa a Gira Girar”, o produtor identificava no grupo, segundo Mateus Aleluia, “uma projeção para um coral de cantos indefinidos, o verdadeiro canto coral canto coral afrobrasileiro”.

 

Graças aos conhecimentos musicais fruto de sua atuação como radialista, ouvido em todo Brasil na década de 1970, Alves aproximou o gênero musical spirituals – cânticos religiosos entoados por corais de pessoas pretas do Sul dos Estados Unidos – do trio. “Eu queria fazer algo assim com Os Tincoãs: um gospel afrobrasileiro, mas com as músicas que eles cantam em iorubá e banto, cuja origem tem mais de 2500 anos, segundo especialistas, um repertório de grande importância antropológica e histórica para o Brasil e o mundo”, explica o carioca de 83 anos, que produziu e lançou nomes como Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Martinho da Vila, Alcione e João Nogueira.

 

— Em sambas-enredo, o refrão às vezes é afro, mas o resto da letra, não. Os Tincoãs cantavam letras inteiras em línguas africanas — destaca Adelzon. — Eu perguntava a eles: o que é isso? Eles diziam que era da tradição dos ancestrais, de um lugar chamado Roça do Ventura. Boa parte das músicas tinha versos em português, inclusive com mensagens contra injustiças raciais e sociais.

 

Nas emissoras de TV da época, Os Tincoãns fizeram apresentações memoráveis nos seguintes programas: Flávio Cavalcante (TV Tupy), Mário Montalvão (TV Tupy), Aérton Perlingeiro (TV Tupy), Chacrinha (na tevês Bandeirantes e Tupy) Globo de Ouro e Levanta a Poeira (ambos da TV Globo). Participaram, ainda, da trilha sonora de “Escrava Isaura”, da mesma emissora.

 

África

 

Os africantos ecoavam mais longe do que nunca. Desembarcaram em Luanda para uma temporada de sucesso e revelações na ancestral capital angolana. Andando em meio ao desgastado casario colonial lusitano, sentiram, imediatamente, uma familiaridade com a baiana Cachoeira. Luanda e o Caquende eram quase uma coisa só.

 

Quando o grupo brasileiro cantou afinadíssimo, em quimbundo arcaico, para o novo público foi recebido com uma poderosa energia e muitos aplausos. Milhares de pessoas juntaram-se ao trio para entoar “Sou de Nanã Ewá /Ewá Ewa ê/ Sou de Nanã Ewá/Ewá Ewá”. O almejado lugar à mesa estava, definitivamente, sendo conquistado do outro lado do Atlântico. Parecia que as coisas, finalmente, se ajeitavam.

 

Ao ouvir as músicas, o príncipe nigeriano Francis Ifá Kaiodê disse que era iorubá arcaico, que não se falava mais nem na Nigéria. Os especialistas no assunto se surpreendiam com isso, e o público em geral era envolvido pela sonoridade.

 

O projeto tem patrocínio da Natura Musical e do Governo do Estado, pelo Fazcultura, da Secretaria de Cultura e Secretaria da Fazenda.

 

 

Faixa a Faixa
Por Zezão Castro

1- ”Ajagunã”
O Lado A abre com a faixa ”Ajagunã”. Lançada em compacto no ano de 1982 (RCA), é um canto de louvação a Oxaguian, (avatar de Oxalá quando jovem). É, também, a única faixa não-orquestrada nesta face do disco. Trata-se de um orikí , palavra iorubana originada da junção de orí (cabeça) e ki (saudação), ou seja, um canto de saudação “à cabeça” ou ao guia que rege a cabeça de alguém. “Tudo começa na cabeça”, relembra Mateus Aleluia. Esta música era o sucesso da época do grupo, que a defendeu no Festival MPB Shell no ano em que foi lançada.

2- “Oiá Pepê Oiá Bá”
A 2ª faixa, abre o grupo das inéditas em disco. Cantada em idioma iorubano, é outro oriki, dessa vez em louvação a orixá Iansã (Oyá), identificada na mitologia afrobrasileira como a rainha dos raios, senhora das tempestades, rainha guerreira. Foi esposa de outros orixás, destacando-se Ogum e Xangô. Numerosos terreiros do Recôncavo e da capital baiana tem essa divindade como figura maior de suas casas de culto ancestral.

3- “Misericórdia”
Na sequência, vem ”Misericórdia”, pinçada de um compacto lançado em 1974 (Odeon). A música reflete a osmótica formação artístico-musical dos habitantes do Vale do Paraguassu. Naquelas paragens, dorme-se ninado pelos toques da ritualidade africana e acorda-se com o dobrar dos sinos da Matriz. Mateus participava do Coral da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Cachoeira, na adolescência, e seu tio Clarício era instrutor musical na Filarmônica Lira Ceciliana. Nas décadas de 40 e 50, os cultos católicos eram celebrados em latim e sempre havia a parte do Miserere Nobis (Tende Piedade de Nós). Com o brilhantismo de sempre, Os Tincoãs, harmonizam a litúrgica mea culpa, revezando suas vozes com os contracantos do Coral dos Correios e Telégrafos, africanizando a missa ibérica, como só eles sabiam fazer.

4- “Key Iemanjá”
“Key Iemanjá” é outro oriki inédito em disco que, só agora, ganhou seu registro definitivo. Cantado em Iorubá em louvação à rainha das águas, à mãe de todas as cabeças, inclui também preces a Oxumaré. Em Cachoeira, na beira do Rio Paraguassu, os filhos de Iemanjá esperam até a maré cheia tornar a água do rio mais salobra, a fim de que se torne propícia para as oferendas à rainha do mar. Na maré baixa, as águas, menos salgadas, tornam o rio mais propício às oferendas para a orixá Oxum, rainha das águas doces.

5- “Obaluaê”

“Obaluaê” é o número que fecha o lado. Nesta releitura, mais lenta que a original, lançada no disco homônimo de estreia da fase afro (Odeon, 1973), o ouvinte é induzido a pensar que o canto gregoriano surgiu n´algum quilombo do massapê canavieiro do Recôncavo. A divindade da saúde e da cura é reverenciada, aqui, em canto bilingue (português e Iorubá). Protetor dos pobres contra as doenças, ele rege as questões de vida e morte. Carrega sempre sua lança de madeira para espantar energias ruins e espíritos errantes.

6- “Cequecê”
O Lado B, abre com ”Cequecê”, uma reverência aos candomblés da linha Banto/Congo/Angola. Saúda os inquices (orixás), e, ao mesmo tempo, relembra a acolhida que Os Tincoãs tiveram em sua estada angolana, de 1983 até os anos 2000. Com versos adaptados por Dadinho e Mateus, o cântico chama a atenção pelo entrosamento entre as vozes e o tripé violão, atabaques e ganzá.

7- “Ogundê”
“Ogundê” é uma faixa que revela uma mescla de mistério e solenidade espiritual, consagrados ao orixá Ogum. Ogun-dê, em iorubá, significa Ogun “chegou’. Gravada pela 1º vez em 1973,  é a sétima faixa deste novo LP. Sete é, também, o número desta divindade. Já no início, com o violão dedilhado de Dadinho e o arranjo das três vozes, a música passa a sensação de que a senzala, a aldeia e o monastério se confundem na gênese dessas harmonias vocais. Os atabaques, tocados por Mateus, e o agogô, tocado por Badu completam, com maestria, a vestimenta da música.

8- “Pelebé Nitobé”
“Pelebé Nitobé” é outra faixa também inédita na discografia do grupo. É dedicada ao orixá Ossanha (ou Ossãe), aquele que sabe o segredo medicinal das folhas. O título, por sinal, também vindo do iorubá, significa que as folhas, (Ewe) “tem duas faces”. A primeira frase da faixa, “axé, babá”, significa “força, pai”. É uma interpretação, como as demais, repleta de espiritualidade, onde se pede à divindade reverenciada que as doenças não encostem, se afastem, salientando que as folhas, por ele manipuladas, tem o poder da cura.

9- “Salmo”   
“Salmo” é uma oração lançada, originalmente, no LP O Africanto dos Tincoãs (RCA, 1975). Realça a influência da religião católica na formação do grupo.  As vozes do coro, regidas pelos maestros Leonardo Bruno e Armando Prazeres, em conjunto com a lírica empregada, tornam a canção perfeitamente adequada para qualquer culto cristão. O eu lírico suplica intervenção de Jesus para que acabe com a seca que queima as pastagens e pede compaixão para com os contritos romeiros. O instrumental tincoã, como sempre, fornece a atmosfera de terreiro, dotando de ritmo afro-caboclo a espiritual melodia.

10- “Lamento às Águas”
“Lamento às Águas” fecha o trabalho. Assim como a anterior, tem a presença do coral. Gravada originalmente no outro LP homônimo (RCA, 1977), a faixa rende homenagens aos orixás e caboclos. O coral, mais uma vez, empresta um caráter divinal, com sua divisão de vozes. É destinada também aos caboclos Onymboiá e Eru, também citados antes do encerramento do cântico. Axé.

Discografia e formações Os Tincoãs:

Dadinho, Heraldo e Erivaldo
LP Meu Último Bolero, (Musicolor, 1961)

Dadinho, Heraldo e Mateus
LP:  Os Tincoãs (Odeon, 1973)
Compacto Simples:  Misericórdia / Saudações aos Orixás  (Odeon, 1974)

Dadinho, Morais e Mateus
LP O Africanto dos Tincoãs (RCA, 1975)
Compacto simples: Promessa ao Gantois / Anita (RCA, 1976)
Compacto simples: Banzo / Jó (RCA, 1976)  * Banzo entrou na trilha sonora da novela global Escrava Isaura
Compacto duplo: Oxóssi te chama e Salmo / Ogum Pai e Promessa ao Gantois (RCA,1976)

Dadinho, Badu e Mateus
Compacto duplo: Cordeiro de Nanã e Canto do Boiadeiro / Promessa ao Gantois e Chapeuzinho Vermelho (RCA, 1976)
Compacto Simples: Cordeiro de Nanã / Atabaque chora (RCA, 1977)
LP: Os Tincoãs (RCA, 1977)
Compacto simples: Embola, Embola / Mãe D´água é Rica (Warner, 1980)
Compacto simples:  Ajagunã / Chororô  (RCA, 1982)
LP: Canto Coral Afrobrasileiro (*gravado em 1983 mas lançado pelo selo Sanzala Cultural em 2023)

Dadinho e Mateus
LP: Os Tincoãs Dadinho e Mateus (Cid, 1986)
Dadinho e Mateus

PARTICIPAÇÕES:
Coletânea: Carnaval 76 – Convocação Geral, com a faixa Quebra Quebra Guabiraba  (Som Livre, 1976)
Trilha Sonora de Escrava Isaura, com a faixa Banzo (RCA, 1976)
Faixa Vieram me Contar, do LP Novas Palavras , de Martinho da Vila (RCA, 1983)

 

Fonte: Secult Bahia.

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