Por Jayashi Gosh | Tradução: Antonio Martins
Em 1974, 77 países lançaram na ONU o Apelo por uma Nova Ordem Econômica Mundial. O documento tinha forte caráter anticolonialista e propunha rever as relações econômicas que perpetuavam a desigualdade e uma divisão internacional do trabalho injusta.
Nos últimos meses, a Internacional Progressista, uma rede de organizações e movimentos políticos lançada por Bernie Sanders e Yanis Varoufakis, decidiu retomar e atualizar as bases da proposta. O texto a seguir, parte deste esforço, é a síntese da apresentação de Jayati Ghosh feita no The People’s Forum, em Nova York. Ela pode ser vista neste vídeo, no intervalo entre 2h01m e 2h14m.
Ressurge, 50 anos depois, o movimento por Nova Ordem Econômica Internacional. Pensadora indiana sugere três eixos para construí-la: o Comum; uma relação desalienada com a natureza e um arranjo geopolítico que dispense um hegemon.
Há cinquenta anos, muitos países do mundo — nos quais vivia a maior parte da população do planeta — uniram-se para exigir uma Nova Ordem Econômica Internacional. Esse esforço foi por certo importante e apresentou uma visão nova sobre muitos dos problemas enfrentados pelos países em desenvolvimento. Mas acabou não tendo sucesso.
Ao invés disso, tivemos um ressurgimento do poder daqueles que já controlavam a economia global: grandes corporações sediadas nos países avançados. Entramos então em uma fase do capitalismo neoliberal liderado pelas finanças globais que alterou dramaticamente o cenário. Desde então, é claro, muita coisa aconteceu. Tivemos não apenas o surgimento de um poder muito maior do capital sobre o trabalho, mas também o surgimento de países – como a China — que alcançaram avanços significativos no desenvolvimento, sem seguir as regras oficiais do jogo.
Isso é importante, porque mudou o mundo ao gerar mais multipolaridade potencial e abrir espaço para o desenvolvimento e para maior igualdade. Mas penso que agora, para concretizar o novo desejo de uma Nova Ordem Econômica Internacional adequada ao século 21, precisamos reconsiderar alguns dos direitos que perdemos nos últimos 50 anos. anos, e reinventar o que é necessário para uma economia internacional justa, equitativa, sustentada e viável.
Isso significa, de início, repensar e reverter, nos planos nacional e internacional, as três grandes privatizações dos últimos 50 anos : 1. a privatização dos bens comuns, da natureza, da terra, da água, das florestas, de tantos outros recursos; 2. a privatização dos serviços públicos, que obrigou muito mais pessoas a depender da renda monetária para garantir as necessidades e serviços mais básicos, e fomentou a financeirização de muitos serviços que costumavam ser prestados gratuitamente; 3. a privatização do conhecimento e das tecnologias, que tem significado uma concentração cada vez maior do conhecimento mais essencial, necessário não apenas para cumprir nossos objetivos sociais, mas para salvar o planeta.
Essencialmente, temos que começar agora a pensar em como fazer nossas economias funcionarem para o bem comum, para o interesse público, para a sociedade, para a natureza e o planeta. Em vez de pensar constantemente em como cada um desses elementos – as pessoas, trabalhadores, a natureza, a terra etc. – podem servir à economia, temos que fazer a economia servir a todos esses objetivos. É por isso que temos economias. Estamos organizando nossas sociedades de acordo com as formas pelas quais queremos alcançar nossos objetivos sociais. E, cada vez mais, estar em harmonia com a natureza e o planeta.
Isso implica muitas coisas. Significa que temos que restaurar a riqueza pública, que diminuiu drasticamente nos últimos trinta anos. Ela foi reduzida, em todo o mundo, com a privatização de ativos estatais, o declínio de vários tipos de bens comuns e a incapacidade de tributar os ricos e as grandes corporações. Significa que não há espaço fiscal disponível para atender aos direitos — econômicos e sociais — dos cidadãos comuns. Precisamos trazer regulamentos que coloquem os direitos humanos, o meio ambiente, o planeta e a natureza acima dos interesses das corporações, acima dos direitos dos extremamente ricos.
Isso significa afastar a noção de que os mercados podem oferecer todos os resultados que queremos e reconhecer que eles devem ser limitados, regulados pelo bem público, pelo interesse comum, a fim de atingir nossos outros objetivos.
É óbvio: temos que reformar drasticamente nosso sistema alimentar global. Nossos sistemas alimentares hoje não são apenas insustentáveis e inviáveis, mas profundamente prejudiciais à nossa saúde, ao planeta e ao meio ambiente. Eles geram enormes quantidades de emissões de carbono. Geram formas de consumo não saudáveis. Geram a incapacidade de alimentar um grande número de pessoas em todo o mundo quando outras sofrem de desnutrição por excesso. E por isso precisamos pensar em sistemas alimentares sustentáveis, que sejam equitativos e disponíveis para todos.
Precisamos controlar e direcionar as finanças. Isso está fora de questão agora, porque atualmente temos um sistema financeiro que simplesmente não serve para o que se propõe, que está gerando fragilidades e vulnerabilidades em todo o mundo, criando ciclos financeiros que não trazem vantagem para ninguém a não ser lucros para financeiras e bancos.
Precisamos alinhar o financiamento com os tipos de investimentos que precisamos para a sociedade e para a natureza. Já mencionei que temos que tributar os ricos. Se isso não ocorrer, é em parte por termos uma arquitetura global de impostos criada há um século e completamente inadequada para as condições do século XXI.
Ainda estamos tratando as corporações multinacionais como corporações individuais em cada país, o que lhes permite transferir lucros para jurisdições com impostos baixos e evitar o pagamento de tributos que até as empresas locais pagam. Estamos permitindo que indivíduos com alto patrimônio líquido – os extremamente ricos – transfiram seu dinheiro ao redor do mundo para diferentes paraísos fiscais sem declarar os ganhos efetivos, e evitem a tributação da riqueza por meio de vários artifícios.
Todas estas questões podem ser resolvidas com muita rapidez e facilidade se realmente nos engajarmos em uma cooperação tributária genuína, projetada para beneficiar governos e pessoas, e não as grandes corporações e os extremamente ricos. Portanto, temos que garantir que os governos não sejam vítimas do controle dessas mesmas elites que atualmente estão forçando desregulamentações ou abrindo brechas que toda essa evasão fiscal ocorra.
Tudo isso que mencionei requer um tipo diferente de arquitetura multilateral. A que temos hoje não é apenas inadequada. Ela está destruindo ativamente nossas economias e nossa capacidade de sobreviver neste planeta. Está gerando uma mudança climática maciça, que se avança muito mais rapidamente do que os relatórios do IPCC haviam previsto. Cada relatório do IPCC reconhece que os documentos anteriores subestimaram o escopo, a intensidade e os danos criados pelas mudanças climáticas já ocorridas.
E temos que prevenir, mitigar, adaptar e indenizar as vítimas com urgência, por perdas e danos. Isso requer um grande investimento. Significa que não podemos mais pensar o tema como algo que os governos nacionais devem resolver. A saída é uma abordagem e um investimento público, porque a mudança climática não reconhece passaportes, vistos ou fronteiras nacionais.
É algo que precisa ser tratado como um problema planetário, como um problema da humanidade, e temos que construir a cooperação necessária a gerar os tipos de investimento público global necessários e urgentes. Significa, por exemplo, que os bancos multilaterais de desenvolvimento – não apenas o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento, mas todos os diferentes bancos multilaterais e instituições financeiras – devem ser redesenhados para responder a esses desafios. Lidar com os requisitos de saúde pública e emergências. Atender às necessidades de investimento. Mitigar as mudanças climáticas e promover a adaptação a elas. Cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que não estão sendo realizados e nas condições atuais certamente não serão cumpridos, em especial nos países mais pobres e de baixo metade da população mundial.
Temos que reorientar o FMI, que não foi capaz de lidar com os desafios essenciais para os quais foi criado: oferecer empréstimos anticíclicos quando é necessário lidar com episódios de sobreendividamento; prevenir os ciclos terríveis de crises de dívida e danos causados às economias por causa de sua incapacidade de pagar; permitir a reestruturação e o alívio da dívida sempre que necessário; fornecer liquidez a todos os países, e particularmente aos que mais carecem, em vez de simplesmente um sistema global em que as finanças podem tirar dinheiro de um chapéu. O financiamento público pode ser gerado para os países ricos quando eles precisam, como na pandemia de covid-19, mas simplesmente não está disponível para o resto do mundo em países de baixa e média renda.
Tudo isso pode ser feito. Não é impossível. Lembremos: essas instituições que parecem escritas em pedra, foram todas criadas por mentes humanas – engenhosidade humana, se preferirem – e podem ser desfeitas por mentes humanas e pela engenhosidade humana.
Acima de tudo, além de tudo isso, precisamos considerar a concentração de conhecimento que se tornou algo obsceno e mata ativamente as pessoas. Vimos isso durante a pandemia. O controle sobre as patentes de vacinas e medicamentos desenvolvidos com vultosíssimos subsídios públicos permaneceu em mãos privadas. Uma produção produção mais ampla de imunizantes simplesmente não foi permitida. O conhecimento sobre essas tecnologias não foi disseminado de forma a garantir que todos estivessem adequadamente protegidos, ou que as vítimas da doença fossem ser tratadas adequadamente por meio de dispositivos terapêuticos já disponíveis.
Temos que fazer algo sobre as terríveis desigualdades e o regime injusto de direitos de propriedade intelectual. Do contrário nos tornamos não apenas incapazes de lidar com emergências de saúde pública, mas seremos impedidos de enfrentar as mudanças climáticas. Não podemos esperar mitigação das mudanças climáticas globais a menos que disponibilizemos amplamente essas tecnologias.
Isso significa que o TRIPS – Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, da OMC – deve ser reconsiderado. Precisa ser retrabalhado para favorecer a necessidade urgente de uma disseminação mais ampla do conhecimento essencial.
Isso também algo que pode ser feito. O TRIPS é um acordo relativamente novo. Foi firmado devido ao lobby ativo de um grupo relativamente pequeno de corporações poderosas dos países ricos. Pode ser desfeito se tivermos poder de compensação suficiente, se realmente tentarmos construir o poder do povo contra o poder das grandes corporações que atualmente são capazes de influenciar os governos.
Nunca houve um momento mais importante para falar sobre um novo multilateralismo em um mundo em rápida mudança. Sabemos que as estruturas existentes do multilateralismo simplesmente não estão funcionando – não estão gerando paz, nem estabilidade, nem segurança, nem viabilidade econômica, nem sustentabilidade planetária. Agora, temos que repensar essas instituições. Temos que pensar em uma arquitetura internacional que funcione na atual situação global.
Isso é possível porque o mundo está mais fragmentado agora, por razões geopolíticas e razões econômicas. Essa fragmentação oferece, a todos nós que lutamos por uma justiça econômica muito mais ampla, uma oportunidade de pensar e trabalhar pela construção de uma alternativa verdadeiramente progressista.
Jayati Ghosh é uma economista de desenvolvimento indiano. Ela é a presidente do Centro de Estudos Econômicos e Planejamento da Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi.