Por Ana Veloso, Patrícia Paixão de O. Leite e Paulo Victor Melo
A era Bolsonaro minou o país com devastações de toda ordem, inclusive nas comunicações; com novo governo eleito, precisamos construir as críticas necessárias e apontar urgências de políticas públicas verdadeiramente inclusivas e democráticas.
Neste texto final do especial Comunicação Pós-Bolsonaro, que faz um balanço sobre o fim da era Bolsonaro no poder central do país e a retomada dos rumos democráticos de um Brasil que tenta colar os cacos de tantos retrocessos vividos, pretendemos pontuar momentos críticos no campo das comunicações nos primeiros meses do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com o objetivo de defender necessidades de ajustes e sugerir políticas públicas para a nova gestão. Afinal, a constituição de uma nação pautada pelo Direito Humano à Comunicação não se dá com omissões ou recuos, mas na construção coletiva.
A era Bolsonaro foi caracterizada por reiteradas tentativas de destruição – muitas, infelizmente, com êxito – de direitos da população brasileira, por opressões simbólicas e materiais contra os povos tradicionais, intensas ameaças e práticas de censura às(aos) jornalistas e desmonte da comunicação pública. Sem contar a institucionalização da desinformação, permeada de discursos de ódio, quando agentes governamentais e da base de apoio político do então presidente criaram e disseminaram mentiras para tumultuar as eleições presidenciais de 2022 e, inclusive, sabotar os resultados das urnas. A desordem informativa também buscou minar organizações científicas, universitárias e de comunicação, em um momento crítico de pandemia em que a informação de qualidade poderia ter salvado milhares de vidas. Isso tudo tendo como pano de fundo o fascismo que emergiu com mais força no país graças ao período Bolsonaro.
Essa visão panorâmica do que foram os últimos quatro anos do Brasil, esmiuçada nos dez textos que compõem o especial, já dão indicativos do tamanho do esfacelamento político, econômico e social do país – que, diga-se, é proporcional às responsabilidades e tarefas gigantescas que estão no colo do novo governo Lula. E um dos pontos nevrálgicos, lugar em que o novo governo ainda está patinando, é a comunicação. Sempre ela. Depois do exercício de poder afrontoso de Bolsonaro e sua turma à autonomia da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), com o sequestro da programação das emissoras e ocupação dos cargos de gestão por militares e apadrinhados do poder, havia a expectativa da sociedade civil organizada em vivenciar uma guinada no novo governo eleito.
Mas os erros vieram da raiz, ou seja, começando na cúpula do Ministério das Comunicações (Minicom). O Minicom foi “rifado” para o União Brasil, partido conservador que, até “ontem” (nas eleições de 20022), deu sustentação a Bolsonaro e fez campanha para a permanência dele na presidência. A legenda possui políticos que trabalham para a manutenção da primazia do empresariado, dos “coronéis eletrônicos” – que fazem uso político de emissoras de rádio e TV para benefício das elites locais e regionais – e dos políticos donos de mídia, o que contraria o artigo 54 da Constituição Federal.
Do ninho do União Brasil foi indicado para o ministério um político que não tem nem currículo, nem envergadura para atuar à frente, por exemplo, das discussões democráticas sobre a regulação da radiodifusão ou para implementar projetos voltados ao enfrentamento à exclusão digital brasileira. Infelizmente, não foi a primeira gestão do petista que privilegiou interesses políticos e comerciais na liderança do Minicom. Fazem parte deste rol as gestões do político de carreira Miro Teixeira (PDT), entre 2003 e 2004, do empresário agropecuarista Eunício Oliveira (MDB), entre 2004 e 2005, e do ex-repórter da Rede Globo, Hélio Costa, que ficou mais tempo como ministro das Comunicações, entre 2005 e 2010.
O fato é que, para amenizar o estrago, o governo Lula concentrou uma parte das políticas democráticas de comunicação sob a gerência da Secretaria de Comunicação Social (Secom), capitaneada pelo jornalista e ex-deputado federal Paulo Pimenta. A pasta, com status de ministério, tem a responsabilidade de coordenar as ações de comunicação do governo, com o olhar para a promoção de políticas digitais e de divulgação de conteúdo audiovisual, dentre outras atribuições.
Contudo, uma das discussões mais pulsantes no mundo, a regulação das plataformas digitais, no governo Lula, está fatiada entre o Ministério da Justiça e a Secom, o que tem gerado descompassos quanto às estratégias governamentais em torno da votação do Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como o PL das Fake News, que tramita no Congresso Nacional. A despeito de setores mais progressistas do governo, que pretendem estabelecer modelos de funcionamento e proteger os cidadãos das investidas de redes de extrema-direita na internet – que correm soltas por conta da desregulamentação das ações das big techs -, ainda há muitos ruídos internos que atrapalham uma atuação robusta para o enfrentamento da questão, além de problemas de fundo na proposta do governo.
Entendemos como urgente que o Executivo (junto com o Poder Legislativo) envolva a sociedade civil nas discussões sobre o PL 2630, além de formas mais amplas de regulação das plataformas digitais. Compreendemos que é preciso avançar no debate sobre a regulação econômica das plataformas digitais e combater os monopólios digitais, assim como deve ser feito nos demais sistemas de comunicação, fazendo comprir o artigo 220 da Constituição Federal.
A Secom também passou a cuidar da Empresa Brasil de Comunicação. Inicialmente, a medida foi comemorada por entidades que defendem a autonomia e o caráter público da EBC. Enganou-se, porém, quem pensava que seria a vez da implantação do projeto de “enegrecimento” da empresa, que postulava a ascensão de pessoas negras aos cargos de direção do projeto de comunicação pública do país.
Além disso, e na contramão das recomendações do grupo de transição e de inúmeros documentos da sociedade civil acerca da importância do fortalecimento da EBC para a democracia brasileira, o governo seguiu ignorando, pelo menos até maio de 2023, a retomada do Conselho Curador (cassado em 2016). A existência e a atuação da instância são condições para que o atual governo se arvore no direito de afirmar que pretende respeitar um dos pilares para a existência de uma comunicação verdadeiramente pública: a participação social.
E, temos, nos primeiros cem dias de governo, pelo menos dois episódios que saltaram aos olhos: a permanência da interrupção da grade da TV Brasil para pronunciamentos e atos do governo Lula e a participação da primeira-dama da live “papo de respeito”, junto com a Ministra da Mulher, gravada no estúdio (via contrato da Secom) da TV Brasil, veiculada pelas redes sociais da emissora como TV BrasilGov via Youtube.
Em outro episódio, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF) emitiram nota de repúdio ao que classificaram de “assédio moral de diretora de jornalismo da EBC contra o diretor do SJPDF”. Segundo o CNDH e as demais entidades, um sindicalista sofreu assédio por parte da gestora da entidade, em maio deste ano. Segundo informações trazidas pela nota, o sindicalista havia se posicionado publicamente contra o encerramento das atividades de noticiários da empresa, a demissão de trabalhadores(as) que colocavam os jornais no ar e sobre o que caracterizou como assimetria entre as divisões dos segmentos público e estatal, com maior estrutura sendo direcionada ao último. A diretoria da EBC divulgou nota lamentando a situação e classificando o ocorrido como “uma discussão acalorada entre colegas” de trabalho.
Pelo visto, a tão esperada separação entre as perspectivas pública e estatal, dentro da estrutura da EBC, bem como o respeito à liberdade de expressão, ainda segue como desafio da administração petista. E vai demandar vigilância, posicionamento crítico, maior organização e pressão política de entidades da sociedade civil que atuam no campo da democratização das comunicações. Afinal, às vezes é preciso olhar para “o passado como uma roupa que não nos serve mais” e abrir espaço para “uma nova mudança [que] em breve [precisa] acontecer”.
Demandas urgentes: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto”
Para que o governo Lula empreenda uma guinada rumo à efetivação do Direito Humano à Comunicação, vai ser preciso recalcular a rota da gestão. E pode começar com a demissão do atual ministro das Comunicações, como já reivindica o movimento de comunicação, e posterior nomeação de um(a) gestor(a) qualificado(a) e sensível às pautas da democratização da comunicação.
Entre elas, não dá para pensar em um país mais democrático sem a criação de uma política de financiamento e apoio às mídias populares, independentes, comunitárias e alternativas, com editais públicos e fomento à criação e desenvolvimento de novos meios.
Outra demanda urgente é o pleno funcionamento da EBC, que deve ser reestruturada materialmente e no seu papel de empresa pública, com orçamento adequado e respeito a um modelo de gestão que viabilize sua independência e autonomia, incluindo o restabelecimento das funções do Conselho Curador, cassado em 2016. Além disso, é preciso implementar as agendas da campanha “enegrecer a EBC”, para garantir a participação de pessoas negras e pardas nas diversas funções do órgão, inclusive nos cargos de gestão e nas decisões estratégicas.
No campo da inclusão digital, é essencial a garantia do acesso à internet a toda a população, de forma gratuita, como política de Estado. A política de universalização deve ser realizada visando ao interesse público e garantindo a autonomia decisória e respeitando as especificidades de Povos e Comunidades Tradicionais e territórios periféricos. É preciso que o Governo Federal dê uma mensagem nítida nas políticas desse campo de que o acesso à internet é direito e não moeda de troca usada no avanço do colonialismo de dados, como aponta o interesse de Elon Musk de “conectar a Amazônia”. É necessário e urgente a ampliação de programas de conectividade domiciliar às populações de baixa renda, em regime público, enfrentando também a desigualdade de acesso às infraestruturas de internet e às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Na paralela, é urgente ampliar o acesso em espaços públicos, especialmente escolas, bibliotecas e centros comunitários, incorporando a temática da educação em direitos humanos e educação para a mídia nesses programas.
O governo federal também deve assumir, como prioridade, envolver representações da sociedade civil nas discussões sobre a “plataformização” das políticas públicas em áreas diversas como saúde, educação, assistência social e lazer, bem como sobre as ferramentas adequadas para a população ter acesso a esses direitos e à proteção de dados pessoais, tendo como pilar o respeito a todas as diversidades, de raça, gênero, etnia e territorialidade.
As discussões – necessárias – em torno da regulação das plataformas digitais ofuscaram, por enquanto, os debates sobre a Regulamentação dos Serviços de Radiodifusão (Decreto nº 52.795/1963) – reivindicação histórica da sociedade civil. É fundamental que se retome esse debate, inclusive para que se condicione a renovação das outorgas de radiodifusão à realização de audiências públicas e à avaliação do cumprimento da legislação em vigor e dos contratos de concessão, durante o período de exploração do serviço, com a perda da licença, em caso de descumprimento. E que um novo Ministério das Comunicações cumpra o seu papel de fiscalizar as empresas de radiodifusão.
Ainda sobre a radiodifusão e a inibição necessária do “coronelismo eletrônico”, propõe-se que o Estado brasileiro cumpra a vedação constitucional de que políticos em exercício de mandato sejam concessionários de serviços de radiodifusão (Art. 54), estendendo na legislação a vedação também a seus familiares.
Em tempos de disseminação de discursos de ódio e desinformação, vale uma atenção especial à criação de campanhas educativas, a serem elaboradas pelo Minicom, para orientar a sociedade sobre os limites da liberdade de expressão, evitando que violações ocorram, justificadas como liberdade de expressão. Nesse sentido, é importante também que o governo se comprometa a não alocar verbas públicas em programas de rádio e TV que violem direitos humanos, como os programas policialescos.
A educação para a mídia também não deve ficar de fora. Recomendamos que a Educomunicação seja contemplada nas diferentes áreas do Poder Executivo, incluindo a leitura crítica da mídia nas escolas, estimulando a formação de um público apto a questionar os conteúdos midiáticos, em geral, e jornalísticos, em particular, além dos modelos de negócios dos meios de comunicação e das plataformas digitais.
Depois de quatro anos de aumento de violência contra comunicadores(as), é importante que o Estado brasileiro fortaleça as políticas de apuração e recebimento de denúncias de violência praticada contra jornalistas e demais comunicadores(as) durante o exercício da sua atividade profissional, como o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas.
“O novo sempre vem”?
A vitória Lula, e sua “frente ampla”, veio com o prenúncio, desde os primeiros discursos, de que o governo iria trabalhar para toda a população e não apenas para a maioria que o elegeu. Isso já demonstrava que os ares republicanos estavam de volta aos parques e ruas brasileiras. O processo de transição, com a organização de grupos de trabalho com especialistas em vários setores, como os ligados à radiodifusão, às telecomunicações, à regulação da internet, às políticas culturais e às de comunicação pública e comunicação comunitária, por exemplo, foram fundamentais para a geração de documentos que poderiam nortear as necessárias políticas para tais setores.
Além disso, a revogação de ações dos governo Bolsonaro, como o decreto que permitia maior acesso da população às armas, o sigilo em torno das informações públicas, e medidas voltadas à privatização dos Correios, EBC e Conab, por exemplo, além do retorno às atividades de conselhos de participação social foram determinantes para a instauração das condições objetivas para o retorno da população aos fóruns de debate sobre a gestão do Estado.
A formação dos ministérios, mesmo que sem a esperada paridade de gênero e com subrepresentatividade da população negra (ainda que nunca tenhamos tido tantas mulheres e negros/as em posição de primeiro escalão), demonstrou um aceno aos ideários históricos do Partido dos Trabalhadores, com o retorno, dentre outros, de ministérios como os de igualdade racial, das mulheres, da cultura e o recém-criado dos povos originários.
Mas há muito por fazer. Quando a asfixia da democracia denunciava uma “página infeliz da nossa história”, à luz do dia, as redes privadas de radiodifusão contraditoriamente sustentaram e ainda continuam sustentando a sanha destruidora das liberdades de expressão e de imprensa, com a reiterada exibição de programas policialescos e o apoio à projeção de apresentadores transgressores dos direitos humanos. Eles permanecem realizando linchamentos públicos da população pobre e negra, sob o abrigo de palanques eletrônicos, digitais e virtuais, condutores a vagas em câmaras municipais, assembleias legislativas e no Congresso Nacional.
Também notamos que, apesar da eleição de mulheres, parlamentares negros e LGBTQIA+ notadamente do campo progressista, o Congresso Nacional ainda é composto, quase que majoritariamente, por segmentos fundamentalistas, armamentistas e ligados ao agronegócio. E é com tais bancadas que o governo vai ter que negociar em várias instâncias.
Diante de tal cenário, a defesa intransigente da comunicação como um direito humano vai exigir qualificação, construção de novas estratégias, vontade política, escuta e diálogo das forças progressistas que compõem o Executivo Nacional com movimentos sociais que se articulam com a população e que devem contribuir com pressão social para o avanço da pauta da comunicação. Algo que, pelo menos nos primeiros 100 dias de governo, ainda não foi alcançado.
Ana Veloso é jornalista e professora do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Patrícia Paixão de O. Leite é jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco e pesquisadora no campo do Discurso, Mídia e Decolonialidade. Paulo Victor Melo é professor e pesquisador de Políticas de Comunicação em universidades no Brasil e em Portugal. Os três integram o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e são editores do Relatório Direito à Comunicação no Brasil 2022.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.