Por Rafael Moro Martins
Presidente enfrenta Congresso hostil, que age para bloquear demarcações de terras. Apenas seis foram homologadas, dos 251 processos em andamento. Após desmonte, Funai precisará ser reconstruída, mas faltam servidores para esta tarefa.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez uma promessa no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, que dificilmente poderá cumprir. Ele prometeu não deixar nenhuma terra indígena sem demarcação. Para cumprir o que afirmou, Lula terá de superar o que fez em seus dois primeiros mandatos (2003 a 2010) – e sob condições muito mais adversas do que naquela época. Na 19ª edição do ATL, Lula homologou a demarcação de seis terras indígenas, menos da metade do que era esperado pelas lideranças. Para compensar a escassez de demarcações reais, lançou de improviso uma promessa mais condizente com a de um político em campanha – e não de um presidente que enfrenta enormes dificuldades com um Congresso marcadamente anti-indígena. Lula não lançou sua promessa ao vento: ela foi escutada pelos milhares de indígenas presentes no ATL, replicada nas redes sociais de lideranças e influencers e não será facilmente esquecida.
A promessa de Lula revela o impasse de seu governo. A demarcação da totalidade das terras indígenas está com 30 anos de atraso – um atraso responsável por conflitos, massacres e assassinatos de indígenas. Além disso, está comprovado que a floresta amazônica e outros biomas estão em pé principalmente onde há povos indígenas vivendo em terras demarcadas. Em tempos de crise climática, portanto, a demarcação não é apenas uma questão de justiça, mas de sobrevivência. Interessa a todo o planeta. A proteção da Amazônia é o que garante hoje relevância ao Brasil, investimento internacional no país e prestígio a Lula.
O problema é que ele governa um país dominado por uma elite econômica predatória, negacionista e atrasada, representada pela bancada ruralista no Congresso. Assim, de um lado Lula tem a pressão dos povos originários e dos governos internacionais preocupados com a escalada do aquecimento global. De outro, enfrenta um Congresso hostil, dominado por uma força ruralista altamente organizada e bem financiada. Esse pode ser o maior desafio da vida política de Lula – e o futuro das novas gerações nunca dependeu tanto de como ele se moverá.
Qual é a realidade das demarcações?
Durante seus oito primeiros anos como presidente (2003 a 2010), em condições muito mais favoráveis, Lula concluiu os processos de criação de apenas 87 terras indígenas (TIs). Atualmente, há 251 processos de demarcação em andamento na burocracia de Brasília, segundo dados oficiais da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O Instituto Socioambiental (ISA) contabiliza 237 processos em estudo, delimitados ou já declarados como terras indígenas a demarcar. O levantamento do ISA usa dados da própria Funai, mas há pequenas diferenças no número de terras cujos processos estão na fase inicial, quando é criado um grupo de estudo para delimitá-la. São 124 processos nessa situação para o ISA e 140 para a Funai. A diferença está nos 16 grupos de trabalho anunciados, desde o início do ano, por Joenia Wapichana, presidenta da Funai. O ISA avalia que muitos deles já existiam, mas foram suspensos ou tiveram seu prazo expirado – e por isso não os contabilizou como novos.
“Desde que o ISA começou a fazer o trabalho de contabilizar as terras indígenas, nos anos 1980, acumulamos cerca de 7 mil documentos. É um desafio enorme organizar essa documentação porque o processo de demarcação de terra indígena não é linear, tem idas e vindas, decisões judiciais que os suspendem, portarias que os reabrem”, explicou o antropólogo Tiago Moreira, do ISA.
Segundo o levantamento do ISA, reunidas no portal Terras Indígenas no Brasil, há 496 TIs já homologadas e regularizadas, mas outras 237 têm processos em andamento. Todo o trâmite costuma levar anos, às vezes décadas: o da Terra Indígena Avá–Canoeiro, em Goiás, uma das seis homologadas por Lula no ATL, se arrastava desde os anos 1990. A assinatura do presidente da República é o último ato burocrático para a demarcação de terras indígenas.
“Os processos [de demarcação] não andam sozinhos, precisam de pessoas que façam o trabalho”, desabafou Joenia Wapichana em entrevista a Sumaúma. Joenia estima que faltem 1.200 servidores ao órgão. Documento da própria Funai, datado de junho de 2022, mostra um quadro ainda pior – apenas 1.420 dos 3.732 postos de trabalho estão ocupados, ou 38% do total.
Entre as mais de duas centenas de terras com processos em curso, 68 já foram declaradas como de ocupação tradicional indígena, mas ainda aguardam a demarcação física de seus limites. Esse é o último passo para que possam ser homologadas pelo presidente da República. Outras 45 TIs estão identificadas, à espera de que portarias declaratórias sejam assinadas pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para que a demarcação física possa ser realizada. A portaria declaratória é a fase do processo de demarcação em que o governo reconhece a área como destinada a um ou mais grupos indígenas. Nesse documento, uma das últimas etapas do processo, o MPI declara os limites geográficos da terra indígena e determina que seja feita a demarcação física da área.
A maioria dos 237 processos de demarcação – 124 deles, segundo dados do ISA – está apenas na fase inicial, em que grupos de trabalho realizam estudos para identificar e delimitar a área indígena. Joenia afirma que a conclusão da fase inicial dos processos de demarcação “é um trabalho que, em condições normais, leva uns 180 dias”. A presidenta da Funai já autorizou a criação de 14 desses grupos de trabalho. Coordenados por antropólogos que são servidores de carreira do órgão, eles preparam um relatório com a conclusão de estudos de natureza étnica, histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, além do levantamento fundiário, que vai estabelecer o tamanho e os limites da TI.
“Tem solicitações [de criação de grupos de estudo] feitas há 10, 20 anos. Tem mais de centenas de processos ainda a serem movimentados”, conta Joenia. Tamanho represamento se deve, em grande parte, à falta de pessoal na Funai. Para sanar ao menos parte do problema, a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, autorizou, no início de maio, um concurso público para preencher 502 vagas no órgão federal. A maioria das vagas – 304 – é para os cargos de indigenista especializado e agente em indigenismo. Será o primeiro processo seletivo do governo federal para a Funai desde abril de 2016.
“A Funai estava havia sete anos sem qualquer atenção, sem investimentos”, diz Joenia. “Minha primeira atitude foi reunir os servidores e tomar pé da situação. Percebi que estão muito desestimulados depois de vários anos de perseguição, até de assassinatos, como aconteceu com Bruno [Pereira, indigenista morto em junho de 2022 no Vale do Javari junto com o jornalista britânico Dom Phillips], há muitos servidores em depressão.”
Os salários para as novas vagas, porém, são pouco atraentes: 6.420,87 reais mensais (indigenista especializado) e 5.349,07 reais (agente em indigenismo). “Estão totalmente defasados”, admite Joenia. Por causa disso, servidores cobram a criação de um plano de cargos e salários na Funai, com o qual Lula também se comprometeu no ATL. “Não queremos que os servidores da Funai sejam tratados como se fossem trabalhadores de segunda categoria. Por isso a gente vai cuidar do plano de carreira de vocês com muito carinho”, prometeu ele. Não há, porém, prazo determinado para uma solução.
Em 2015, um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) já advertia que “a carência quantitativa e qualitativa de pessoal é um problema crônico na Funai” e o “envelhecimento do quadro sem reposição tempestiva resulta, além de perda da capacidade operacional, [em] uma perda de conhecimento técnico que se agrava pela já mencionada ausência de política interna de qualificação e atualização dos servidores”.
A devastação pós-Bolsonaro
Em 2003, Lula sucedeu Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que assinou a demarcação de 145 terras indígenas em seus dois mandatos e implementou condições efetivas para que a Funai executasse seu trabalho. Em 2023, o petista encontrou os órgãos responsáveis pela política indigenista devastados pelo extremista de direita Jair Bolsonaro.
A Assembleia Nacional Constituinte (1987-88) estabeleceu o prazo de cinco anos, após a promulgação da Carta Magna, para a completa demarcação de todas as terras indígenas brasileiras. Em outubro deste ano, contam-se 30 anos desde o fim desse prazo. Isso significa que o Estado está com três décadas de atraso para cumprir uma determinação constitucional.
Não se pode dizer que essas 237 terras listadas pelo ISA sejam as últimas reivindicadas pelos povos indígenas. O relatório Violência contra Povos Indígenas no Brasil, publicado em 2022 pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), contou 1.393 terras indígenas no país em 2021. Em 598 delas não havia nenhuma providência oficial para seu reconhecimento. Ou seja, nem sequer tinham entrado na fase inicial do processo de demarcação. A Funai trabalha com dados semelhantes aos do ISA. Nenhuma das duas instituições contabiliza, como faz o Cimi, as terras reivindicadas, mas ainda fora dos processos burocráticos de demarcação.
Terras indígenas demarcadas e protegidas são fundamentais na tentativa de conter o avanço da catástrofe climática. A revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences publicou, em 2020, pesquisa que comprova a atuação essencial dos povos indígenas e populações tradicionais na estabilização climática. Os indígenas são os mais eficazes na manutenção de estoques de carbono – ajudam, em suas terras demarcadas, a regular o clima e a evitar que o aquecimento do planeta seja ainda maior. Algo que o presidente Lula reconheceu, em 28 de abril, no ATL: “A gente vai ter que trabalhar muito para que possamos fazer a demarcação do maior número possível de terras indígenas. Não só porque é um direito, mas porque, se a gente quer chegar em 2030 com desmatamento zero na Amazônia, a gente vai precisar de vocês”.
A demora na demarcação agrava conflitos como os registrados na TI Morro dos Cavalos, em Palhoça, litoral de Santa Catarina. Ali, 600 indígenas Guarani Mbya e Guarani Ñandeva são vítimas de ataques de especuladores interessados em suas terras, localizadas entre a BR-101 e a orla marítima. O processo de demarcação está parado desde 2008. No sul da Bahia, onde indígenas Pataxó aguardam a demarcação da TI Aldeia Velha desde 1998, um adolescente foi assassinado por pistoleiros em setembro de 2022. O movimento indígena esperava que Lula assinasse a homologação das TIs Morro dos Cavalos e Aldeia Velha em abril – e foi frustrado.
O longo processo de demarcação
Uma vez pronto, o relatório com os estudos e as conclusões do grupo de trabalho que se debruçou sobre a demarcação de uma terra indígena é entregue à presidência da Funai, a quem cabe aprová-lo. Desde o início de 2023, apenas dois desses processos foram chancelados por Joenia, com o reconhecimento da TI Sawre Ba’pim, em Itaituba (Pará), do povo Munduruku, e da TI Krenak de Sete Salões, em Resplendor (Minas Gerais), dos Krenak.
Aprovado o relatório, um resumo precisa ser publicado nos diários oficiais da União e do estado em que se localiza a futura TI. Com isso, abre-se um prazo de 90 dias para contestações. Pessoas físicas, empresas, prefeituras e governos podem questionar o relatório e pleitear indenizações. Uma vez recebidas as contestações, a Funai tem 60 dias para preparar respostas a cada uma delas e em seguida encaminhar tudo adiante – até 2022, para o Ministério da Justiça; desde 2023, para o Ministério dos Povos Indígenas.
A partir desse momento, começa a contar o prazo de 30 dias para que o MPI decida se o processo está apto a prosseguir. Nesse caso, ele deverá fazer uma portaria em que declara os limites da TI e determina a sua demarcação física. Por outro lado, se julgar que há problemas no processo, a pasta poderá devolvê-lo à Funai e pedir providências adicionais. Essa possibilidade abre uma brecha para governos que querem barrar as demarcações: em 2019, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, devolveu à Funai, para “adequações”, vários processos que estavam sobre a sua mesa, de forma a garantir que Bolsonaro cumprisse a promessa de “não demarcar um centímetro de terra indígena”.
Há pelo menos 45 processos de demarcação aguardando a assinatura da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. O relatório do grupo técnico do governo de transição recomendou que em 12 deles fossem emitidas as portarias declaratórias. Trata-se daquele lote de processos que Sergio Moro mandou devolver à Funai, em 2019. Na época, eles estavam prontos para ter a portaria declaratória. Com a medida, Moro impediu que avançassem. Apesar de dependerem agora apenas do Ministério dos Povos Indígenas para andar, isso ainda não ocorreu, por falta de estrutura e de pessoal.
Sem recursos e alvo dos ruralistas
A estrutura precária do MPI, que foi criado em janeiro, é flagrante. O ministério nem sequer tem quadro próprio de servidores e, nos pouco mais de quatro meses de existência, já se tornou alvo preferencial da bancada ruralista, que deseja varrê-lo do mapa. Uma ação movida pelo PP pede ao Supremo Tribunal Federal que retire do MPI a competência de demarcar novas terras indígenas. Já o deputado federal Sergio Souza (MDB-PR), que presidiu a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) entre 2021 e 2022, quer ir além. O político apresentou emenda à medida provisória nº 1.154, propondo a extinção do MPI. A 1.154, assinada por Lula no primeiro dia de mandato, criou a atual estrutura do governo federal, que inclui a pasta dos Povos Indígenas, mas precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional.
Quando a portaria declaratória de uma terra indígena é publicada, o processo volta à Funai, para que se faça a demarcação física da área. É a fase mais cara do processo, pois requer a contratação de empresas especializadas que irão a campo para localizar os limites da TI. É nesta fase que se encontram 68 processos de demarcação, segundo o ISA.
“Em virtude do pequeno corpo técnico existente atualmente, os trabalhos de georreferenciamento são realizados por meio de contratação através de procedimento licitatório para empresas de topografia e geodesia”, explicou a Funai em resposta por escrito aos questionamentos de Sumaúma. “Existem cerca de 50 terras indígenas ainda a serem georreferenciadas, e se iniciou procedimento licitatório para contratação de algumas áreas, ainda não especificadas em função de orçamento.” Em português claro: não há dinheiro.
É nesta fase, também, que se faz a remoção de não indígenas que, por qualquer motivo, estejam ocupando a TI. Segundo a legislação, não é preciso indenizar posseiros ou fazendeiros que vivam ou produzam em território declarado de ocupação tradicional indígena. Por outro lado, cabe indenização por eventuais melhorias feitas por eles na área, desde que de boa-fé. Há casos complicados em que os ocupantes não indígenas foram levados a terras indígenas por programas governamentais do passado, situação radicalmente diferente das habituais invasões de grileiros.
“Para se ter uma ideia, o pagamento das indenizações das benfeitorias feitas de boa-fé nas 14 terras identificadas como aptas para homologar [após a eleição de Lula] gira em torno de mais de 1 bilhão de reais”, disse a Sumaúma Kleber Karipuna, um dos coordenadores-executivos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e também coordenador do grupo técnico dos povos indígenas no governo de transição. O alto custo das indenizações é mais um obstáculo à promessa feita por Lula no ATL.
Kleber Karipuna, assim como parte das lideranças indígenas, escutou a promessa do presidente, mas fincou-se na realidade: “Temos muita consciência de que o governo Lula, nesses pouco mais de três anos e oito meses [tempo restante do mandato], não vai ser suficiente para que o déficit de demarcações seja sanado”. Essa mesma cautela pode não ecoar nos milhares de indígenas que sofrem violências cotidianas de invasores por falta de demarcação de suas terras – e têm grande respeito pela palavra dada por um presidente.
Fonte: Sumaúma.