[Ilustração: Cartaz da Exposição “O Continente Negro” no Parque de Exposição de Geneva em 1896]

Neste artigo para o The Conversation, a internacionalista Letizia Gaja Pinoja conta a história do Village noir, um zoológico humano em Genebra. Tradução: Valentina Cândido.

 

Vila artificial no século 19 simulava estereótipos africanos para perpetuar ideias racistas. História é pouco contada na Suíça, que nega sua participação no colonialismo.

Depois de uma estadia em Leukerbad, na Suíça, o escritor americano James Baldwin (1924-1987) escreveu:

“Segundo todas as provas disponíveis, nenhum negro nunca pisou neste minúsculo povoado suíço antes da minha chegada. Antes de eu chegar, me disseram que provavelmente seria um ‘espetáculo’; Achei que isso significava que pessoas da minha cor de pele raramente eram vistas na Suíça e também que as pessoas da cidade são sempre um ‘show’ fora delas. Não me ocorreu – provavelmente porque sou dos Estados Unidos – que poderiam haver em qualquer parte pessoas que nunca tinham visto uma pessoa negra”

A estranha constatação de Baldwin não se sustenta, contudo, em evidências históricas. Cinquenta anos antes do escritor americano pisar nos Alpes, cerca de dois terços da população suíça tinha visitado o Village noir (o “povoado negro”) de Genebra.

 

Um povoado negro no coração dos Alpes

Hoje em dia, Genebra é considerada uma das capitais dos direitos humanos. Mas em 1896, durante a segunda Exposição Nacional Suíça, ela acolheu um zoológico de pessoas.

Existem pouquíssimas referências visíveis a respeito, salvo uma rua que leva o nome do correspondente “branco” da exposição, o Village suisse. Ainda assim, o trabalho de vários pesquisadores ajudou a desenterrar a história do primeiro Village noir suíço.

Habitado por mais de 200 senegaleses, a aldeia estava situada a poucas ruas da praça central da cidade, a Plaine de Plainpalais. Durante seis meses, os visitantes paravam para observar a vida desses “atores”. Suas cerimônias religiosas eram anunciadas como atos públicos e os turistas podiam tirar fotos com a troupe africana e passear por suas casas.

Esses encontros, longe de serem um espetáculo secundário, suscitaram várias opiniões. Por um lado, surgiram vozes críticas na imprensa. Este ponto de vista “missionário” exigia respeito aos “nativos” e à sua dignidade, ao mesmo tempo que atacava o comportamento dos visitantes supostamente civilizados. Ao mesmo tempo, o sistema geral do zoológico não foi questionado e a hierarquia racial foi aceita como uma verdade.

Por outro lado, os grupos racistas se fizeram ouvir. Segundo eles, os indivíduos senegaleses tinham “tempo livre” para se mover pela cidade, o que desencadeou no temor por uma “invasão negra”.

 

De shows de horrores a zoológicos humanos

Longe de ser uma peculiaridade suíça, os zoológicos de pessoas se estenderam por todo o Ocidente. As exibições humanas foram uma forma de entretenimento inventada nos princípios do século 19 na Grã-Bretanha.

Um dos espetáculos mais famosos foi o de Sarah Baartman, a “Vênus de Hotentote”. Devido à forma pouco convencional do seu corpo, ela foi trazida da África do Sul à Europa para fazer parte de uma exposição. Este tipo de freak shows se disseminou pela Europa e pela América no Norte, e incluía pessoas consideradas diferentes por aspectos físicos não usuais, como o nanismo e o albinismo.

As coisas mudaram no final do século 19, quando os espetáculos passaram a fazer parte das exposições nacionais e coloniais. A primeira exposição étnica de núbios teve lugar em 1877 em Paris, quando parece ter sido utilizado pela primeira vez o termo zoológico humano. O conceito parece um oximoro, ainda que revele a violência dessas exposições.

Os zoológicos humanos provavelmente eram um entretenimento comum na segunda metade do século 19. Para o público que comprava ingressos, a experiência era comparável a uma visita a um zoológico normal; tratava-se de observar “animais exóticos”. Como geralmente ocorre com os animais, os organizadores recriam o “habitat natural” dos sujeitos com cabanas de barro, roupas típicas e rituais.

A decoração era construída com a intenção de transmitir autenticidade. Por um lado, o discurso civilizatório que justificava a expansão e a dominação colonial exagerava na representação viva e na exibição do “selvagem” carente de educação. Por outro lado, a suposta brutalidade do “nativo” era exibida por meio da encenação de sua “vida primitiva”.

Sem minimizar a violência inerente do sistema, mas com o objetivo de demonstrar essa performance, se considerava que os “nativos” eram “atores” assalariados. Eles encenavam cerimônias e atividades para entreter os visitantes.

Tudo estava destinado a alimentar o entusiasmo dos ocidentais pelo exótico: o corpo das mulheres negras era erotizado. Os homens negros eram desumanizados e, para “demonstrar” sua força animal, eram organizados, por exemplo, combates de boxe entre campeões ocidentais e anfitriões africanos.

 

Duas caras da mesma moeda racista

A virada do século foi um dos pontos altos do racismo científico. As tentativas pseudocientíficas de criar uma raça superior prosperaram nos departamentos acadêmicos ocidentais de antropologia e biologia.

Para os eugenistas, os zoológicos humanos proporcionaram “mostras” para as teorias racistas. Durante a Exposição Nacional de Genebra de 1896, o biólogo suíço Emile Yung deu uma conferência em que apresentou 15 pessoas do Village noir. Ele comparou a cor de suas peles e o tamanho de suas cabeças com os de um genebrino. Este processo pretendia demonstrar como o tamanho do crânio afetava o nível de civilização e as capacidades mentais.

Essas ideias se difundiram entre os professores de escolas e contribuíram para cristalizar e expandir os estereótipos raciais.

Na verdade, os zoológicos humanos eram um terreno fértil para isso. Os visitantes viam uma representação inventada da África que deliberadamente desagradava e difamava os africanos. Além disso, o evolucionismo e as teorias racistas sobre o desenvolvimento humano que formavam o cerne das exposições tinham claros objetivos educacionais. Assim, o racismo científico desenvolvido no âmbito acadêmico andava de mãos dadas com o popular: os zoológicos humanos eram lugares onde essas duas faces da mesma moeda se encontravam.

 

O legado dos zoológicos humanos

As exibições humanas foram resultado do pensamento colonial ocidental no qual o Village noir de Genebra se encaixa perfeitamente.

Por isso, a Confederação Helvética nunca foi imune ao colonialismo e ao racismo. A criação de um zoológico humano no centro de Genebra serviu para difundir e reforçar a superioridade do Ocidente, seu direito de expandir e dominar, e o racismo que muitos membros das elites culturais, políticas, econômicas e acadêmicas suíças compartilhavam.

De fato, os cientistas suíços participaram ativamente na formação das mentalidades coloniais. Apesar de não possuir colônias, o país estava tão envolvido como o resto do Ocidente.

Ao contrário de outros países, a Suíça não interrompeu suas exposições humanas durante o período entre guerras. Já na década de 1960, o circo nacional Knie apresentou o “Volkerschauen”. O espetáculo incluía a exibição de esquimós, índios católicos, “egípcios misteriosos” ou pessoas com albinismo.

Isso é sintomático da falta de um processo de descolonização na Suíça; Ao se auto representar como um forasteiro da colonização, o país nunca assumiu sua mentalidade colonial nem suas representações e discursos racistas.

Nesse contexto, falar dos zoológicos humanos é um passo crucial para que a sociedade tenha conhecimento do seu passado. Mais importante ainda, inicia uma reflexão mais ampla sobre os legados do colonialismo na atualidade. Se ficarmos quietos sobre zoológicos humanos, não seremos capazes de ver como uma visita a uma “típica” aldeia Masai ecoa os velhos hábitos coloniais de encenar a vida rural e primitiva.

 

Letizia Gaja Pinoja é doutora em História e Política Internacional pelo Geneva Graduate Institute.

 

Fonte: The Conversation | Nexo.

 

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