Por Vijay Prashad e Kambale Musavuli | Tradução: Hugo Albuquerque

A derrubada do governo do Níger repete o que aconteceu recentemente no Mali, Burkina Faso e Guiné. Todas essas destituições foram lideradas por militares furiosos com a presença de tropas da França e EUA, além de empresas francesas que drenam os recursos do países e sucessivas crises econômicas.

 

Às três da madrugada de 26 de julho de 2023, o presidente Mohamed Bazoum foi detido pela sua própria guarda em Niamey, a capital do Níger. As tropas eram lideradas pelo general de brigada Abdourahmane Tchiani que fecharam as fronteiras e declararam toque de recolher. O golpe de Estado foi, imediatamente, condenado pela Comunidade Econômica da África Ocidental, pela União Africana e pela União Europeia. Ambos, França e Estados Unidos — que possuem bases militares no Níger — disseram que estavam observando a situação de perto. Uma disputa estourou entre o Exército — que reivindica Bazoum — e a guarda presidencial que controla a capital, mas isso logo acabou.

No dia seguinte, o general de Exército Abdou Sidikou Issa fez um pronunciamento dizendo que aceitava a situação para “evitar confrontos mortíferos entre as diferentes forças… o que poderia causar um banho de sangue”. O general de brigada Tchiani foi à televisão no dia 28 para anunciar que era o novo presidente do Conselho Nacional de Salvaguarda da Pátria.

O golpe no Níger segue os passos de eventos similares no Mali (agosto de 2020 e maio de 2021), Burkina Faso (janeiro de 2022 e setembro de 2022) e Guiné (setembro de 2021). Cada um desses golpes foram liderados por oficiais do Exército furiosos com a presença de tropas francesas e norte-americanas nos seus países, bem como com as crises econômicas que lhes afligem.

“No coração da ‘corrupção’ está a assim chamada joint venture entre Níger e França na chamada Société des mines de l’Aïr (Somaïr), que é dona e opera a indústria de urânio no país.”

A região africana do Sahel encara crises em cascata: a desertificação do solo que se deve à catástrofe climática, a ascensão da militância islâmica em razão da intervenção da OTAN na Líbia em 2011, o crescimento de perturbadoras redes de tráfico de armas, seres humanos e drogas deserto adentro, a apropriação de recursos naturais — incluindo urânio e ouro — por companhias ocidentais que, simplesmente, não pagam o devido por essas riquezas e o entrincheiramento de forças militares ocidentais, seja por meio da construção de bases ou operações mortais tocadas impunemente.

Dois dias depois do golpe, o Conselho de Salvaguarda anunciou o nome de 10 oficiais que seriam seus integrantes. Eles vieram de todos os ramos das Forças Armadas do Níger, destacando-se o general Mohamed Toumba (Exército), o coronel Amadou Abouramane (Força Aérea) e o delegado-geral Assahaba Ebankawel (polícia nacional). Está claro que um dos mais influentes membros do Conselho de Salvaguarda é o general Salifou Mody, antigo chefe do Estado-Maior e líder do Conselho Supremo de Restauração da Democracia.

Por sua vez, o general Mody liderou em fevereiro de 2010 um golpe contra o então presidente Mamadou Tandja, tendo governado o Níger em seguida até o antecessor de Bazoum, Mahamadou Issoufou, vencer a eleição de 2011. Foi durante o período Issoufou que os Estados Unidos construíram a maior base de drones do mundo em Agadez e as Forças Armadas francesas, tomaram a cidade de Irlit para a mineradora de urânio Orano (que, no passado, foi parte da Areva).

“Surpreendentemente, 85% da Somaïr é de propriedade da Comissão de Energia Atômica da França e mais duas empresas francesas, enquanto apenas 15% é propriedade do governo do Níger.”

É importante notar que o general Salifou Mody é percebido como um influente membro do Conselho de Salvaguarda dada sua influência no Exército e seus contatos internacionais. Em 28 de fevereiro de 2023, Mody encontrou com Mark Milley, presidente do Estado-Maior conjunto dos Estados Unidos, durante a Conferência de Ministros da Defesa Africanos, em Roma na Itália, para discutir “a estabilidade regional, incluindo cooperação para o contraterrorismo e a continuada luta contra o violento extremismo na região.”.

Em 9 de março, Mody visitou Mali para encontrar o coronel Assimi Goïta e o chefe do Estado-Maior do Exército local, general Oumar Diarra para fortalecer a cooperação militar entre Níger e Mali. Uns poucos dias depois, em 16 de março, o secretário de Estado americano Antony Blinken visitou o Níger e encontrou Bazoum. Isso foi percebido por muita gente no Níger como uma marginalização de Mody, que foi apontado em 1 de junho como embaixador nos Emirados Árabes. Mody, como é dito em Niamey, é a voz ao pé do ouvido do general de brigada Tchiani, o atual chefe de Estado.

A corrupção e o Ocidente

Uma fonte altamente informada no Níger alega que os militares se viraram contra Bazoum por que “ele é corrupto e um peão da França. Os nigerinos se encheram dele e de sua gangue. Eles estão no processo de prender os membros do sistema deposto, muitos dos quais se refugiaram em embaixadas estrangeiras, uma vez que eles enriqueceram às custas de fundos públicos”.

A “corrupção” paira sobre o Níger, um país com uma das reservas de urânio mais lucrativas do mundo — e ela diz respeito não apenas a belas propinas para oficiais do governo, mas sobre uma estrutura inteira, desenvolvida durante o mando colonial francês, que na prática evita que o Níger estabeleça sua soberania em relação às suas matérias-primas e seu próprio desenvolvimento.

“Uma em cada três lâmpadas na França recebe energia elétrica do urânio do Níger, ao mesmo tempo em que 42% da população daquele país africano vive abaixo da linha da pobreza.”

No coração da “corrupção” está a assim chamada joint venture entre Níger e França na chamada Société des mines de l’Aïr (Somaïr), que é dona e opera a indústria de urânio no país. Surpreendentemente, 85% da Somaïr é de propriedade da Comissão de Energia Atômica da França e mais duas empresas francesas, enquanto apenas 15% é propriedade do governo do Níger. Aliás, o Níger produz cerca de 5% do urânio global — com o adendo de que o urânio local é de alta qualidade. Metade das receitas de exportação do Níger são de vendas de urânio, petróleo e ouro.

Uma em cada três lâmpadas na França recebe energia elétrica do urânio do Níger, ao mesmo tempo em que 42% da população daquele país africano vive abaixo da linha da pobreza. O povo do Níger viu sua riqueza escapar por entre seus dedos por décadas. Um exemplo da fraqueza do governo do Níger, é que durante a década passada, ele perdeu em torno de 906 milhões de dólares em dez casos de arbitragem contra multinacionais perante o International Centre for Settlement of Investment Disputes e a International Chamber of Commerce.

Em 2002, a França parou de usar o franco como moeda, aderindo ao sistema do euro. No entanto, 14 ex-colônias francês continuaram na Comunidade Financeira Africana (CFA), que dá imensas vantagens para a França: em razão dela, 50% das reservas desses países são mantidas no Tesouro francês e as desvalorizações francesas do CFA, como em 1994, têm efeitos catastróficos nos países que a utilizam.

“A União Africana deve parar de condenar os africanos que decidem lutar contra seus próprios regimes fantoches do Ocidente.”

Em 2015, o presidente do Chade, Idriss Déby Itno, disse que o CFA “puxa as economias africanas para baixo” e que “chegou a hora de cortar as amarras que impedem a África de se desenvolver”. Fala-se agora em todo o Sahel não apenas sobre a remoção das tropas francesas – como ocorreu em Burkina Faso e no Mali –, mas também sobre uma ruptura com o domínio econômico francês na região.

O novo não-alinhamento

Em fevereiro, Burkina Faso já havia sediado uma reunião que incluiu os governos de Mali e Guiné. Em pauta está a criação de uma nova federação entre esses Estados. É provável que o Níger seja convidado para essas conversas.

Na cúpula Rússia-África ocorrida há pouco, o líder de Burkina Fasso, o presidente Ibrahim Traoré, usava uma boina vermelha que lembrava o uniforme do líder socialista assassinado de seu país, Thomas Sankara. Traoré reagiu fortemente à condenação dos golpes militares no Sahel, incluindo uma recente visita ao seu país por uma delegação da União Africana. “Um escravo que não se rebela não merece pena”, disse ele. “A União Africana deve parar de condenar os africanos que decidem lutar contra seus próprios regimes fantoches do Ocidente.”


Artigo originalmente publicado no Globetrotter.

Sobre os autores

é um historiador e comentarista marxista indiano. Ele é diretor-executivo do Tricontinental: Institute for Social Research, editor-chefe da LeftWord Books e membro sênior não-residente do Chongyang Institute for Financial Studies, Renmin University of China.

nasceu na República Democrática do Congo (RDC) e é uma importante voz política e cultural congolesa. Baseado atualmente em Accra, Gana, ele é analista de políticas no Centro de Pesquisa sobre o Congo-Kinshasa.

 

Fonte: Jacobin Brasil.

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