Por Artur Sinimbu Silva e Maria Aparecida Chagas Ferreira
Com a reconstrução da democracia no Brasil a partir de 2023, vimos abrir um horizonte para o aprofundamento das ações afirmativas no âmbito federal
“Nada sobre nós sem nós!” Esse lema tem sido repetido incansavelmente pelo movimento negro como fundamento das políticas de promoção da igualdade racial no Brasil. A postura histórica implacável do movimento garantiu o protagonismo das negras e dos negros na construção de ações governamentais em prol da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo. No atual contexto, está posto o desafio de garantir a presença significativa de pessoas negras em todas as esferas de políticas públicas, dada sua importância demográfica, o caráter transversal das políticas raciais e o incremento de efetividade nas ações governamentais que um serviço público mais diverso aportará.
A presença de negras e negros nos espaços de poder institucional está longe de ser algo óbvio em qualquer âmbito de política pública. Ainda que muito insuficiente, não são desprezíveis os espaços conquistados devido à obstinação do movimento negro. A título de comparação, os indígenas levaram mais de um século para assumir a frente da política indigenista de Estado, tendo seu mais importante órgão público sido comandado por pessoas não-indígenas desde a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910. A inflexão só ocorreu neste ano de 2023, com a presidência de Joênia Wapichana na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e a criação do MPI (Ministério dos Povos Indígenas), chefiado por Sônia Guajajara.
Voltando à pauta negra, todo o nosso contexto pós-escravocrata está marcado por diferentes formas de reivindicação de pessoas negras pela melhoria das suas condições de vida. No início do século 20, destaca-se a Frente Negra Brasileira como marco organizativo do ativismo negro no país. Criada em 1930, resistiu pouco tempo, pois foi extinta em 1937, durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas que dissolveu organizações sociais e partidos políticos. A educação para a população negra era uma das principais bandeiras da Frente. O movimento social negro sempre soube que o caminho para a liberdade e a elevação política do negro brasileiro passava pela educação.
No atual contexto, está posto o desafio de garantir a presença significativa de pessoas negras em todas as esferas de políticas públicas, dada sua importância demográfica, o caráter transversal das políticas raciais e o incremento de efetividade nas ações governamentais que um serviço público mais diverso aportará
A etapa democrática pós-85 inaugura um percurso institucional de criação de órgãos precipuamente voltados para a questão negra, como a criação da FCP (Fundação Cultural Palmares), em 1988, e da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), em 2003, que viria a se tornar o MIR (Ministério da Igualdade Racial) vinte anos depois. Complementarmente, ocorre também a criação, ao longo do tempo, de instâncias voltadas à pauta em outros órgãos como, por exemplo, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação – fundamental no esforço de implementação da Lei n. 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Por fim, é importante citar que ocorre a criação progressiva de órgãos e conselhos de promoção da igualdade racial no âmbito de estados e municípios. São sinalizações de que as pautas de luta do movimento negro extrapolaram o campo de reivindicações sociais para entrar na agenda política do Estado.
Entre as principais políticas públicas de promoção da igualdade racial estão as ações afirmativas para o ingresso nas universidades públicas federais e as cotas em concursos públicos para pessoas negras. A relevância dessas duas políticas está no fato de terem sido motores da discussão racial no Brasil, culminando recentemente no julgamento da constitucionalidade pelo STF (Supremo Tribunal Federal) da aplicação, por organizações públicas, da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 186/2012, sobre o ensino superior; e o Acórdão da Ação Direta de Constitucionalidade n. 41/2017, das cotas em concursos públicos. A legislação contra o racismo foi parâmetro para a equiparação da homofobia como forma de racismo. Um elemento que demonstra o caráter educativo das pautas do movimento negro a outros movimentos de direitos humanos no Brasil.
Com a reconstrução da democracia no Brasil a partir de 2023, vimos abrir um horizonte para o aprofundamento das ações afirmativas no âmbito federal. Dados de fevereiro de 2023 demonstravam que somente 9% dos cargos equivalentes a diretora, secretária nacional e secretária-executiva (os três primeiros níveis mais altos da hierarquia ministerial) eram ocupados por mulheres negras, enquanto os homens negros representavam 20%. Foram esses dados que fundamentaram a aprovação do Decreto n. 11.443/2023, ensejando a ampliação da diversidade com foco nas pessoas negras por meio da ocupação de um percentual mínimo de 30% nos cargos de direção. Além disso, há um forte compromisso político e administrativo do Poder Executivo para a renovação da Lei de Cotas nos Concursos Públicos cuja vigência se encerra em 2024 e para o aperfeiçoamento das Cotas no Ensino Superior em vigor desde 2012.
Enquanto no ensino superior 48,5% dos estudantes são negros, conforme dados do IBGE de 2019, as cotas em concurso público conseguiram reservar 15% das vagas dos concursos realizados durante seis anos de sua implementação. Distante ainda da meta inicialmente prevista de 20% – reserva prevista na Lei n. 12.990/2014. Com isso, temos hoje 35% de pessoas autodeclaradas negras como servidoras públicas do Governo Federal. O aperfeiçoamento da implementação da lei de cotas em concurso público via mecanismos administrativos é um avanço que se vislumbra após o seu tortuoso período de dez anos de vigência. São políticas sistêmicas com um impacto nas estruturas da administração pública e da sociedade em geral.
Ao mesmo tempo, para além das instâncias precipuamente relacionadas à pauta racial, a política e a gestão pública carecem de maior presença de pessoas negras e, por isso, padecem da miopia da excludência. O impulso significativo de forma a naturalizar a presença de corpos não-brancos nos espaços de poder e decisão da administração pública no Brasil ainda encontra grandes desafios. Entre esses desafios gerenciais, cabe destacar a imprescindibilidade do monitoramento do Decreto n. 11.443/2023, de reserva de vagas nos cargos comissionados, e do engajamento de lideranças e das áreas de gestão de pessoas no esforço de assimilar a diversidade como insumo fundamental para ampliar a eficiência e a efetividade das organizações públicas. No campo dos desafios políticos, é fundamental a imediata renovação da Lei de Cotas nos Concursos Públicos e o cumprimento e aprimoramento dos mecanismos legais de financiamento de candidaturas negras nos processos eleitorais.
As negras e os negros representam 56% da população brasileira, de acordo com o IBGE, e tal fato lhe atribui importância fundamental no processo histórico, social e econômico brasileiro. Dito isso, a presença significativa de pessoas negras em espaços de poder institucional, público e privado, e no aparelho do Estado é premissa fundamental para qualquer projeto político de desenvolvimento econômico e social sustentável e de aprofundamento da democracia que pense o povo brasileiro como solução de seus desafios históricos.
Artur Sinimbu Silva é bacharel e mestre em ciência política pela Universidade de Brasília. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental desde 2011. Atualmente, exerce o cargo de Assessor Especial de Participação Social e Diversidade do Ministério da Igualdade Racial.
Maria Aparecida Chagas Ferreira é doutora em sociologia e mestre em educação pela Universidade de Brasília. É Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental desde 1998. Atualmente, é Diretora de Provimento e Movimentação de Pessoal no Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.
Fonte: Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Anesp) / Nexo.