Por Amarílis Costa

Esta é a história da democracia no Brasil: uma história de massacres, chacinas e execuções em massa

O roteiro é conhecido e previsivelmente trágico. Com o pretexto do cerco ao crime organizado ou como demonstração de força para supostamente fazer com que a população se sinta mais segura, operações policiais são montadas de forma espetacularizada. Com mobilização de grande efetivo policial, invariavelmente se espalham pelos territórios de praxe: favelas, periferias, comunidades vulnerabilizadas. O resultado não é mais segurança, e sim medo, produção de massacres, mortes de inocentes e “acidentes de percurso”. Erros que fazem parte do modelo e da prática. Operações que têm alvo e cor definidos.  

As polícias brasileiras são letais, seletivas e racistas, constatação que tem inspirado diversos trabalhos produzidos para radiografar, denunciar, alertar e, sobretudo, mudar essa realidade perversa que atinge corpos e vidas negras. A Rede Liberdade, organização que dirijo, acaba de dar mais uma contribuição para o tema, através do livro Letalidade policial e seletividade penal: reflexões produzidas por corpos matáveis. Fruto de um esforço coletivo, com subsídios de organizações parceiras, a obra descortina e analisa o padrão de comportamento da polícia frente a pessoas negras. O livro nasceu de uma pesquisa iniciada no ano passado pela pesquisadora Carmen Felippe – minha colega na Rede Liberdade e negra como eu –, para compreender as nuances do racismo nas abordagens policiais até a condenação pelo Judiciário.  

Trazemos no livro evidências, casos, relatos e episódios que reforçam a ideia de que nem todas as pessoas são iguais perante a lei. Como no sistema de Justiça, a estrutura policial se organiza a partir de um mesmo princípio, que é a ideia de que a uns o Estado se prontifica a servir e proteger, enquanto a outros ele está pronto para perseguir e matar. São das pessoas negras, há muitos séculos, os corpos “matáveis” a que o título se refere.  

Essa divisão forjada pelas instituições brasileiras me levou a criar, alguns anos atrás, o conceito do Estado Antinegro. Ao estruturar e aperfeiçoar mecanismos de manutenção do racismo em âmbito político, ideológico e social, a máquina estatal e suas engrenagens se ajustam cuidadosamente para que as múltiplas faces da violência alcancem os indivíduos racializados nas mais variadas esferas, como moradia, local de trabalho, ambiente escolar, hospitais, igrejas e até nos cemitérios (como ensina a necropolítica analisada pelo filósofo Achille Mbembe). 

A constatação tem amparo nos relatos e também nos números. Jovens negros são as principais vítimas de violência letal no Brasil em geral, e no recorte de mortos pela polícia o perfil é ainda mais jovem e negro. Eu poderia citar muitos números, mas para não me estender em números (e sim em vidas) recorro a duas evidências apenas. Primeiro, o Relatório da Rede de Observatórios da Segurança: a Bahia, cuja população negra é de 76%, tem 98% deles entre as vítimas; no Rio de Janeiro, o percentual de pessoas negras na população é de 51%, mas entre os assassinados elas são 86%. Segundo: em São Paulo, segundo o Instituto Sou da Paz, os homicídios caíram ao longo do primeiro semestre deste ano, mas as mortes praticadas pelas polícias Militar e Civil do Estado subiram em relação ao mesmo período de 2022. A recente polêmica operação policial no Guarujá já produziu uma nova onda de mortes, produzidas em territórios desiguais. 

O genocídio da juventude negra não atinge somente crianças e adolescentes. Outras vidas também são interrompidas com essas mortes, especialmente as vidas das mães negras. Elas também morrem nesse momento, ao perder a esperança e a vontade de viver diante da brutalidade com os filhos, ao adoecerem e ao enlouquecerem diante da justiça inexplicável. E quando a vida segue, com coragem e vigor, a luta é para “provar que você está viva e que seus filhos foram seres humanos”, como disse uma mãe que perdeu um filho há 16 anos no Rio de Janeiro, durante protesto realizado em Brasília, de mães de mortos em operações policiais. Adoecimentos e resistências são duas faces uma mesma consequência.

Esta é a história da democracia no Brasil: uma história de massacres, chacinas e execuções em massa. Dos banhos de sangue vistos na favela do Jacarezinho ou no Guarujá a sucessos de “erros” de avaliações de situações e suspeitos – de cor negra, insista-se – vemos mortes inconcebíveis, como a de um cabo que atirou contra um homem que estava no terraço de casa usando uma furadeira elétrica, ou de um policial que confundiu um guarda-chuva preto com um fuzil. É uma das faces mais perversas do Estado Antinegro institucionalizado, e o nosso estudo ajuda a escancará-la, ao trafegar por diferentes campos da atuação das polícias: a configuração da abordagem policial, os processos de investigação e tomada de depoimento, o reconhecimento de pessoas (e sua natureza seletiva), o instituto da prisão preventiva, o avanço arbitrário sobre garantias individuais e os ataques graves aos direitos fundamentais.  

Essas nem sempre são práticas que resultam em morte, mas nem por isso são menos perversas. Unimos a análise dos casos obtidos sob sigilo de nomes e de processos ao material testemunhal de vizinhos e familiares produzido a partir de suas experiências no âmbito do sistema penal. O resultado é um conjunto de evidências que mostram uma polícia que pode tanto negar a prestação de serviço a pessoas negras e/ou vulnerabilizadas, quanto prestá-lo de forma ineficiente quando não investiga, não cuida da prova ou da cena do crime, não ouve, e em muitos níveis pode matar ou deixar morrer – material ou processualmente.

O livro "Letalidade policial e seletividade penal: reflexões produzidas por corpos matáveis".
O livro “Letalidade policial e seletividade penal: reflexões produzidas por corpos matáveis”.

A seletividade e a letalidade policial não se restringem ao genocídio de pessoas negras. A estas somam-se também outros grupos vulnerabilizados, como populações periféricas, pessoas em situação de rua, mulheres e a comunidade LGBTQIAPNB+. É cada vez maior o encarceramento de mulheres, como também o Brasil preserva uma realidade trágica para pessoas trans e travestis. A transfobia é uma chaga a ser vencida. E se não há liberdade de gênero para um grupo, não haverá para nenhum outro. 

Que o livro seja mais um grito de alerta contra a violência da ação policial no Brasil. Letalidade, seletividade e racismo precisam ser removidos o quanto antes do nosso desigual e perverso dia a dia.  

 

Amarílis Costa é diretora-executiva da Rede Liberdade. Doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, tem mestrado em Ciências Humanas também pela USP, é membra do Conselho do Advocacy HUB, coordenadora de Diversidade e Inclusão do Cultural OAB-SP, professora universitária, co-fundadora do Movimento Elo – Incluir e transformar, e pesquisadora do GEPPIS – EACHUSP.

 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.

 

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