Hoje dados estratégicos do Brasil são enviados e tratados em servidores e plataformas nos EUA. Não há garantias que tais informações não estejam sendo usurpadas. O valor econômico dessa nova indústria do século XXI gera valores na casa dos bilhões. No entanto, estão sendo entregues de bom grado e ainda se paga a outros países para ficarem com elas, ao em vez de fomentar a economia nacional.
Por Sergio Amadeu da Silveira
Sem converter a questão da soberania digital e da soberania de dados em luta política, o Brasil em breve será tecnologicamente ultrapassado.
A vinda de Evgeny Morozov ao Brasil reforçou as posições daqueles que defendem a importância do Estado para o desenvolvimento tecnológico do país. Evgeny Morozov conseguiu abrir as páginas de jornais da imprensa tradicional para atacar o neoliberalismo, o poder das Big Techs e defender a soberania digital.
As páginas da imprensa se abriram para o pensador europeu, mas continuam fechadas para projetos que mostram o avanço do colonialismo de dados, bem como, para as iniciativas pela soberania tecnológica. Um exemplo é o projeto Educação Vigiada que há um bom tempo denuncia que mais de 72% das instituições brasileiras de educação superior entregaram o armazenamento de seus e-mails para o Google e 8% para a Microsoft.
Outro silêncio dos veículos da chamada grande mídia se consuma diante da entrega de dados dos servidores públicos federais, civis e militares, que utilizam o chat do aplicativo do governo federal chamado SouGov para a IBM WATSON. Após oito meses da saída de Bolsonaro, ao entrarmos nos Termos de Uso do aplicativo utilizado por mais de 1 milhão de servidores e pensionistas está escrito: “Tal armazenamento tem o objetivo de prover o aprendizado de máquina da ferramenta de chat denominada ‘Watson’, onde as interações dos usuários no chat são utilizadas para ‘aprendizado’ pelo computador que envia as respostas automáticas quando o usuário está sendo atendido por meio do chat do serviço SouGov.”
A imprensa neoliberal não considera que o treinamento dos sistemas algorítmicos da IBM com as interações dos servidores federais seja um exemplo de dependência inaceitável e de alto risco para o Brasil. A Agência Nacional de Proteção de Dados nem se digna a analisar a hospedagem de dados de membros do governo em um país com legislação incompatível com a LGPD. Além disso, ninguém se lembra mais das denúncias de Edward Snowden. Afinal, quem é esse mesmo?
Curiosamente, o alerta de Evgeny Morozov sobre o poder das Big Techs e seu controle das infraestruturas cruciais do cenário digital não preocupa a mesma imprensa quando recebe um release de que o Tribunal de Justiça de São Paulo iria implementar um sistema de Inteligência artificial com a Microsoft. Repare que todos os processos e atividades do Tribunal do Estado com a maior atividade econômica do país ficaria sobre o controle de uma empresa norte-americana com interesses diversos no país. Essa mesma empresa é submetida ao Cloud Act e a outras leis que exigem sua fidelidade aos interesses do Estado norte-americano. “Mas isso não importa”. “Nós acreditamos no contrato”. Pena que a pesquisadora Jose Van Dijck não veio ao Brasil para dizer que essa crença no contrato e nas Big Techs é dataísmo, não se sustenta empiricamente. Uma pena.
“Precisamos de escala”. “Esse negócio de desenvolvimento é coisa do software livre” (SIC!). “Software livre foi derrotado”. “O Linux só deu certo com o Android porque é do Google”. “Estamos com os melhores”. Com frases assim, muitos desses gestores públicos, dirigentes da mídia, youtubers e formadores de opinião. Ao mesmo tempo, dizem que os dados e as tecnologias digitais são fundamentais.
Simultaneamente, no mundo em que os dados são ativos de elevado valor, não percebem que nosso país mal consegue mantê-los em seu território. “É mais barato utilizar a nuvem”. Sim, é verdade. Seria interessante tentar reverter esse processo e estruturar uma política de soberania de dados de médio e longo prazo? “Ah. Não temos tempo para isso”. “Precisamos agir”. “Tecnologia é como caneta, usamos a melhor e pronto”.
Enquanto isso, a Europa vive um intenso movimento pela localização dos dados que parece irreversível. Para não perder o mercado europeu, as Big Techs lançaram um produto chamado Sovereign Cloud, nuvem soberana. Já estão chegando com essa solução no Brasil. Mas as Big techs combinam duas estratégias. A primeira visa adiar, se não for possível derrotar, a pressão pela soberania digital. Para tal, contam com alguns dirigentes de mídia, articulistas e gestores públicos neoliberais.
A segunda, passa por lançar o produto da nuvem soberana e continuar mantendo as estruturas digitais fundamentais para o Big Data e para a Inteligência Artificial em suas mãos. A Oracle já lançou aqui sua “Sovereign Cloud”: “uma nuvem localizada, segura e autorizada para cargas de trabalho sensíveis e regulamentadas que atendem aos requisitos regionais…”.
No segundo semestre de 2022, ainda em meio à disputa eleitoral, aproximadamente 600 pesquisadoras, pesquisadores e ativistas lançaram a Carta Soberania Digital entregue para o presidente Lula, ainda candidato. A Carta começava assim: “As tecnologias digitais não podem servir para ampliar as desigualdades e a dependência do país ao grande capital internacional”. Concluía com um conjunto de propostas, nenhuma assumida até o momento pelo governo federal. Aqui destaco quatro delas:
“(i) Criar uma infraestrutura federada para a hospedagem dos dados das universidades e centros de pesquisa brasileiros conforme nossa LGPD. (ii) Formar, nessa infraestrutura federada, frameworks para soluções de Inteligência Artificial, seja para o setor público ou privado. (iii) Incentivar e financiar a criação de datacenters que envolvam governos estaduais, municípios, universidades públicas e organizações não-governamentais, que permitam manter dados em nosso território e aplicar soluções de Inteligência artificial que estimulem e beneficiem a inteligência coletiva local e regional.
(iv) Promover a instalação, no MCTI, de equipes multidisciplinares para a prospecção de tecnologias e experimentos tendo como princípios a tecnodiversidade e em busca de promover avanços em áreas estratégicas ao desenvolvimento nacional. Em articulação com o MEC, promover também a formação de recursos humanos criando mecanismos para que permaneçam no setor público de maneira a nos afastar da dependência das grandes corporações”.
Sim, são de propostas na linha do que Evgeny Morozov chamou de ação do Estado para construir infraestruturas digitais. Não, Evgeny Morozov não inventou a luta em que o Estado precisa encarar o neoliberalismo e apostar na inteligência coletiva nacional. No Brasil nenhuma ação na direção do desenvolvimento e da autonomia tecnológica foi aceita sem luta política contra as classes dominantes que comandam o país.
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O Brasil está na área de influência geopolítica dos Estados Unidos, chamada de quintal. Por exemplo, para construir a Companhia Siderúrgica Nacional – fundamental para a industrialização do Brasil – tivemos uma intensa luta política. Parte das classes dominantes queriam continuar enviando minério para a United States Steel Co. para importar aço pagando dez vezes mais.
A Petrobras só foi criada após a campanha do “Petróleo é nosso!”. Não se esqueçam que o senhor Roberto Campos foi contra a nacionalização do Petróleo e contra a política de informática. Sim, Roberto Campos é o avô do atual presidente do Banco Central. Recentemente, o governo de Michel Temer fez de tudo para entregar a terceira empresa de fabricação de aviões do mundo, a Embraer, para os EUA. Por problemas judiciais no país da Boeing, o negócio não foi feito. Afinal, “para que construir aviões? O que importa é voar”.
Nada indica que deixaremos a condição de território de extração de dados e criadores de apps se o Estado não agir. Sem converter a questão da soberania digital – sobre as infraestruturas sociotécnicas – e da soberania de dados em luta política seremos em breve tecnologicamente ultrapassados pelos países que estão vivendo disputas políticas pelo desenvolvimento e pela tecnodiversidade.
Caso não consigamos criar um poderoso movimento tecnopolítico continuaremos sendo consumidores de produtos e serviços criados por sistemas automatizados a partir do tratamento de dados extraídos de nossa população. As batalhas serão intensas.
*Sergio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC. Autor, entre outros livros, de Software livre – a luta pela liberdade do conhecimento (Conrad).
Fonte: Outras Palavras.