Por Fillipe Alves

O papel social do museu se expande ainda mais quando ele lança olhar para as manifestações por justiça no tempo presente

Originariamente intitulado como MEL (Museu da Escravidão e Liberdade) , e pensado para funcionar como o centro de referência do Cais do Valongo e receber o acervo arqueológico encontrado na região portuária durante as escavações do Cais em 2011, o MUHCAB (Museu da História e Cultura Afro-Brasileira) é definido pelos seus idealizadores como um museu de tipologia híbrida: museu de território, museu a céu aberto, museu de responsabilidade social e museu histórico. Sua gênese foi permeada por amplas tensões políticas e pouco amparo do Estado, ou, ao menos, de seus órgãos centrais para viabilização e finalização do projeto.

Atualmente, o MUHCAB é descrito como um espaço para ampliação de vozes que foram silenciadas e como um museu da verdade. Cerca de 180 achados arqueológicos descobertos nas obras do Porto Maravilha estão na exposição Achados do Valongo. Os achados arqueológicos, que estavam no antigo Cais do Valongo, fazem parte do acervo do LAAU (Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana) , da Prefeitura do Rio.

É na forma como o museu tem preenchido suas salas, seu pátio e dialogado com seu entorno e com esse acervo que remonta memórias sensíveis e traumáticas que o consolida como um espaço narrativo de reinterpretação da escravidão. O diálogo com o entorno acontece tanto ao receber trabalhos de artistas que vivem na região quanto ao abrir suas portas para debates e encontros como o 1º mulheres da providência realizado em abril de 2023 conduzido por Sinara Rubia, atual diretora do museu durante um café da manhã onde dialogaram sobre parcerias e alianças para “potencializar projetos no território da Pequena África, protagonizados por mulheres da região!”.

O MUHCAB tem proporcionado um reencontro daqueles que o frequentam, sobretudo pessoas negras, com o seu passado e memória através desse trabalho de reelaboração da memória por meio de uma série de eventos

O papel social do museu se expande ainda mais quando ele lança olhar para as manifestações por justiça no tempo presente e abre suas portas para amigos, familiares e entidades da sociedade civil interessados em pedir justiça pelo assassinato de Kathlen Romeu e seu bebê. O evento realizado em 04 de junho de 2023 contou ainda com a produção de grafites e pinturas em referência a Kathlen e outras vítimas da violência policial, mas também com artes que remetiam à força e resistência.

O MUHCAB realiza nesse sentido a mediação entre a violência contra o negro e os silenciamentos do passado com as violências e racismo que persistem no tempo presente. Para além de reconstruir uma narrativa sobre a escravidão e pensar na reinterpretação da figura de vítima, o museu expõe a continuidade dessas privações de direitos ao longo dos séculos sem criar uma figura passiva e apartada de redes de sociabilidade e movimentos de resistência.

O MUHCAB se insere em um campo de disputas narrativas pela humanização da figura do negro, nesse sentido a valorização de sua identidade funciona como uma estratégia de fomentar nesses sujeitos uma nova percepção de si que integre os quadros de memória nacional instrumentalizando tanto os moradores de seu entorno quanto seus visitantes na formação de senso crítico no que diz respeito a sua própria história e consequentemente sobre o processo de escravidão.

Outra estratégia do museu que expande sua função e ações, diz respeito às parcerias com outras associações e grupos que compõem tanto o Comitê gestor do Cais do Valongo quanto indivíduos que atuam na região em busca da valorização da memória negra, como o projeto Rolê dos Favelados.

Essas parcerias fortalecem o Museu enquanto instituição e seus laços com a região e seu entorno. As rodas de samba e jongo também são pontos fortes de atuação do museu que aciona narrativas referentes à sociabilidade e cultura carioca construída por ex-escravizados sobretudo no pós-abolição, reforçando essa constante construção de pontes entre passado e presente.

Pesquisas como as da historiadora americana Ana Lúcia Araujo apontam que composição dos acervos das instituições dedicadas ao tema da escravidão é massiva de instrumentos de tortura, essas exposições reforçam a dimensão da dor e sofrimento sem a devida preocupação com a fetichização da violência e elaboração narrativa adequada para essas memórias traumáticas. As atividades e configuração do MUHCAB realizam nesse sentido um esforço para romper com esse padrão ao elaborar um circuito expositivo e ações que dão suporte para narrativas construídas a partir de devidas reflexões que atuam contra essa fetichização da violência contra corpos negros e a naturalização da situação de subalternidade.

O MUHCAB tem proporcionado um reencontro daqueles que o frequentam, sobretudo pessoas negras, com o seu passado e memória através desse trabalho de reelaboração da memória por meio de uma série de eventos onde, mobiliza a oralidade, os saberes imateriais, a ancestralidade e o legado do Cais do Valongo junto a noção da existência de uma Pequena África carioca dotada de sentidos próprios e ricos construindo assim uma narrativa que não esquece os horrores da escravidão, mas lança olhar para o presente e sobretudo para o futuro.

 

Fillipe Alves é bacharel em ciências sociais pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Foi bolsista PIBIC sobre orientação da professora doutora Renata Sá Gonçalves com pesquisa desenvolvida na área de patrimônio histórico na região portuária do Rio de Janeiro com enfoque no processo de patrimonialização do Cais do Valongo. É integrante do NEGRA (núcleo de estudos Guerreiro Ramos) e do grupo de pesquisa NARUA – Núcleo de Antropologia das artes, ritos e sociabilidades urbanas . Integra o projeto “Gestão municipal da igualdade racial e políticas inclusivas de educação e trabalho no município de Niterói: estudos e ações para sua implementação” (PDPA/FEC, 2020- 2022) e é Pesquisador vinculado ao AFRO/Cebrap com interesse nas áreas de sociologia e antropologia, antropologia urbana, questões étnicos-raciais, memória e patrimônio.

 

Fonte: Nexo.

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