Por Luiz Augusto Campos, Júlia Hirschle, Marcia Lima, Poema Portela e Fernanda Gonçalves
Ainda que destaquem problemas pontuais, 72% das pesquisas empíricas sobre as ações afirmativas no ensino superior as consideram bem-sucedidas
O Senado acabou de aprovar as modificações na Lei de Cotas no Ensino Superior (Lei 12.711/2012). A nova redação corrige distorções pontuais e mantém o espírito geral da política de ações afirmativas. Vale lembrar que as cotas no ensino superior foram alvos de uma enorme controvérsia pública no início do milênio, o que levou a uma multiplicação de pesquisas sobre o tema. Mas qual a avaliação das ações afirmativas feita pelos estudos empíricos sobre ensino superior público brasileiro?
Para responder a essa questão, o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas (CAA) organizou um mapeamento de toda bibliografia acadêmica dedicada a avaliar empiricamente as cotas no ensino superior. Para tal, utilizamos o software livrePublish or Perish (PoP), uma ferramenta que permite compilar listas dos textos mais citados na plataforma Google Scholar, a maior base de referências acadêmicas do mundo. A busca foi feita inicialmente a partir de um rol de palavras-chave articuladas por operadores booleanos, conforme o esquema abaixo. Grosso modo, essa expressão de busca permitiu recuperar todos os textos que contivessem termos como “ação afirmativa” em todas suas variações linguísticas (“ações afirmativas”, “cota racial”, “racial quotas” etc.) e mencionasse o Brasil.
Esta combinação de palavras funcionou como uma condição para as publicações retornadas pelo programa, resultando em uma filtragem que nos possibilitou acessar somente os estudos que se enquadram em nossos objetivos.
A lista inicial de referências retornadas pelo PoP foi de 978 textos. A partir desta lista, implementamos alguns recortes para refinar ainda mais a base. Como critério de relevância acadêmica, optamos por trabalhar exclusivamente com textos citados em pelo menos um outro texto acadêmico. Como os primeiros estudos empíricos sobre os efeitos concretos das políticas de ação afirmativa começaram a ser publicados apenas em 2006, definimos este ano como data inicial para o recorte e 2021 como data final, ano imediatamente anterior à realização deste estudo. Isso resultou em um conjunto de 733 textos, incluindo artigos em periódicos, capítulos de livros e textos monográficos, como teses e dissertações. Como próximo passo, nos concentramos nas referências que discutiam as ações afirmativas em cursos de graduação, o que nos retornou 402 fontes relevantes. Por fim, direcionamos nossa atenção para textos que se fundamentavam em pesquisas empíricas, tanto quantitativas quanto qualitativas, resultando em um total de 237 textos. Essa seleção de publicações constitui a base para as análises que apresentamos a seguir 1.
Nosso banco conta primordialmente com artigos, englobando publicações em simpósios, revistas, anais de congressos e jornais. Dos 237 textos selecionados, a maior parte está voltada para a análise da entrada dos estudantes nos cursos, pensando em aspectos como desempenho, inserção, permanência, etc. (totalizando 62 textos). Adicionalmente, há um foco considerável na inserção dos estudantes no espaço acadêmico (22 textos) e no acompanhamento do desempenho desses alunos durante o percurso de graduação (22 textos). Nossa equipe identificou, ainda, que a maioria dos estudos aborda a temática das cotas (163 textos), tanto as com recorte racial quanto social. Um número menor de publicações (15) se dedica a analisar o sistema de bônus no ensino superior. Esse panorama ressalta a notável predominância das pesquisas sobre cotas no campo das investigações relacionadas às ações afirmativas.
Nossa equipe também identificou quais os principais grupos de beneficiários das ações afirmativas que foram abordados pelos estudos. Observou-se que 147 textos direcionaram sua atenção para as políticas de recorte racial voltadas para pessoas pretas e pardas; 66 estudos incorporaram a perspectiva de indígenas; 65 abordaram pessoas oriundas de escolas públicas; 49 englobaram todos os grupos especificados na Lei Federal de Cotas 2, 14 analisaram indivíduos de baixa renda, 3 consideraram pessoas com deficiência; e 5 estudos não informaram qual ou quais grupos específicos foram o foco de suas análises. A partir desse resultado, podemos observar que a análise de grupos étnico-raciais é predominante nos estudos do nosso banco de dados.
Por último, buscamos responder a pergunta que norteou a pesquisa: Qual a avaliação das ações afirmativas 20 anos depois de suas primeiras experiências? Para tal, dividimos as publicações em dois grupos: a) aquelas que abordam ações afirmativas com enfoque no recorte étnico-racial (médias para pretos, pardos e indígenas); e b) aquelas que exploram ações afirmativas com foco no recorte sócio-econômico (para estudantes de escola pública, baixa renda etc.). Neste contexto, nossos achados indicam que a grande maioria dos estudos empíricos na área realçam os efeitos positivos dessas políticas, em ambos os grupos.
No que diz respeito às ações afirmativas com recorte social, constatamos que 154 estudos fazem uma avaliação bastante positiva (104) ou levemente positiva (48), ao passo que uma minoria se inclina para uma avaliação levemente negativa (21) ou bastante negativa (10). Por outro lado, no contexto das ações afirmativas com recorte racial, identificamos que 184 estudos fazem uma avaliação bastante positiva, enquanto 64 fazem uma avaliação levemente positiva. Ainda entre estes, 24 estudos fazem uma avaliação levemente negativa e 17 bastante negativa.
Como é possível perceber, 53% dos manuscritos analisados considera as ações afirmativas étnicorraciais bastante positivas, enquanto 19% as considera levemente positivas. No que concerne as ações afirmativas socioeconômicas, 43% as consideram bastante positivas, enquanto 20%, levemente positivas. Temos que levar em conta, também, que esses percentuais crescem ainda mais se desconsiderarmos os textos nos quais não foi possível identificar uma avaliação clara da polituca: 16% das pesquisas sobre ações afirmativas étnicorraciais e 25% daquelas sobre ações afirmativas socioeconômicas.
Ainda que destaquem problemas, 72% das pesquisas empíricas sobre as ações afirmativas no ensino superior brasileiro as consideram bem-sucedidas. Apesar de eventuais pontos negativos, essa inclinação para visões positivas sugere um impacto globalmente favorável dessas políticas, destacando a importância contínua de sua implementação para promover a equidade e a inclusão no ensino superior brasileiro. Nesse sentido, o foco da nova Lei de Cotas na correção de traços específicos da política e manutenção do seu espírito geral reflete o conhecimento acumulado sobre essa política que mudou o Brasil.
Luiz Augusto Campos é professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”. Twitter: @luizaugustocam
Júlia Hirschle é cientista social e mestra em ciência política pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), atualmente doutoranda em ciência política pelo mesmo instituto.
Márcia Lima é professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP, pesquisadora do Afro-Cebrap. Atualmente ocupa o cargo de Secretária de Políticas de Ações Afirmativas, Combate e Superação do Racismo do Ministério da Igualdade Racial.
Poema Portela lidera a frente de pesquisa do LabJaca. Também atua como estrategista na Box1824, desenvolvendo estudos sobre tendências culturais e comportamentos emergentes. É cientista social, formada pela UFRJ, mestra em sociologia pelo Iesp-Uerj, onde trabalhou durante os últimos anos como subcoordenadora do Gemaa. Twitter: @poemaportela
Fernanda Gonçalves é engenheira de produção, formada pela UERJ, e mestranda em sociologia pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É pesquisadora no Grupo de Estudos Multidisciplinar de Ações Afirmativas e também atua como analista de avaliação de impacto no LabJaca.
Fonte: ‘Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas’ do Afro-Cebrap e GEMAA Pesquisa.