[Foto: Leah Millis/Reuters. Criança coloca flor na grade em apoio ao Black Lives Matter]
Por Cintia Ferreira
Especialistas falam sobre caminhos para ajudar os mais novos na construção de uma identidade racial sólida e positiva
É um processo sutil, mas que muda tudo. Um dia, a criança percebe que as características físicas vão além de ser mais alta ou mais baixa que os colegas da turma. Em determinado momento, ela nota que seus traços físicos, a textura de seu cabelo e seu tom de pele também a diferenciam. Ou pior, são atributos não elogiados. Pode ser que essa conversa aconteça em casa ou que alguém na escola faça um comentário sobre isso. O fato é que, de algum modo, toda criança que convive com a diversidade será atravessada pelo conflito da identidade racial. E, inevitavelmente, pelo racismo.
A construção de uma identidade racial segura não é algo pontual, nem se completa na infância. Além disso, pode ter impactos significativos no futuro. Mas, considerando que é parte fundamental do desenvolvimento humano, a neuropsicóloga e especialista em Terapia Cognitivo Comportamental (TCC), Elaine Di Sarno, recomenda “criar um ambiente que apoie a exploração e aceitação da identidade racial da criança, respeitando sempre seu ritmo e experiências individuais”.
Para ela, “ajudar uma criança a se entender racialmente pode gerar uma base sólida para o desenvolvimento de uma identidade positiva, resiliente e consciente em sua vida adulta. Isso não apenas beneficia o indivíduo em termos de autoestima e relações interpessoais, mas também contribui para a promoção da diversidade e da compreensão em patamares mais amplos da sociedade.”
Mais consciência racial
A construção tardia da consciência racial entre brasileiros é uma das consequências de uma sociedade que sempre privilegiou pessoas brancas. A questão racial só passou a ganhar espaço na agenda das políticas públicas no Brasil a partir da segunda metade dos anos 1990. E, embora mais de 30% das famílias brasileiras seja interracial, debater identidade não é tão natural.
No entanto, isso vem mudando. Recentemente, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou que, pela primeira vez desde 1872, o número de pessoas que se autodeclaram pardas no Brasil superou o de brancas. Em 2022, época em que o Censo foi realizado, 92,1 milhões de pessoas se reconheciam como pardas.
O IBGE classifica os brasileiros em quatro raças: branco, negro, amarelo e indígena. Os negros são subdivididos em pretos e pardos. A identificação racial que aparece no Censo é autodeclaratória. Ou seja, é o próprio indivíduo que se define. No caso das crianças, são os pais os responsáveis por dizer a qual raça elas pertencem.
“Acredito que esse aumento de pessoas se identificando com a cor parda se deu por conta de uma intensidade nas discussões a partir de 2003, com leis para educação, ações afirmativas e cotas raciais”, analisa a escritora, pedagoga, educadora e mestre em relações étnico-raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet), Sonia Rosa. De acordo com ela, a pandemia escancarou o abismo desenhado pelas desigualdades sociais e intensificado pelo racismo. “Hoje, existe uma maior consciência das questões raciais em todos os espaços”, opina.
A doutora em História da Universidade Federal Fluminense, Ynaê Lopes dos Santos, concorda que, nos últimos anos, houve um processo de positivação das heranças africanas e da própria ideia de negritude. “Isso faz com que muitas pessoas que talvez se identificassem como morenos, brancos, com a pele mais escura, agora, enfim, se compreendam pessoas negras de pele clara, que é uma das designações possíveis para pardo”, avalia. Assim, adultos mais conscientes de suas identidades raciais podem ajudar as crianças a encontrarem seu lugar de pertencimento.
Como conversar com as crianças sobre identidade racial?
Os adultos devem puxar o assunto ou esperar a criança perguntar? Embora não exista momento certo para iniciar essa conversa, quanto mais cedo, melhor, acredita Sarno. “Os pais ou responsáveis podem introduzir o assunto para que a criança esteja munida de informações quando tiver suas interações sociais. Mas pode acontecer de a criança trazer a questão à tona a partir de algum acontecimento. Não existe uma regra. O importante é perceber o momento mais adequado”, detalha. Ela sugere também adaptar a conversa a cada faixa etária. Quanto mais jovem, mais lúdico o diálogo deve ser.
Deh Bastos, mãe do José, 5 anos, concorda que a conversa inicial sobre identidade racial deve começar desde muito cedo. “Existem estudos que mostram que as crianças com poucos meses de vida já são capazes de diferenciar pessoas que cuidam dela, conforme a cor da pele”, diz.
Seu projeto “Criando crianças pretas”, que visa promover uma educação consciente de combate ao racismo, nasceu quando se tornou mãe. Para ela, o momento também significou maior letramento racial. “Eu queria pegar tudo que estava aprendendo para mim. Principalmente, para educar meu filho usando minhas técnicas como comunicadora, e compartilhar com as pessoas os conteúdos de forma leve”, conta.
“O mito da democracia racial tenta a todo custo ‘branquear’ a nossa sociedade. Isso cria um abismo de não pertencimento para essa geração”, afirma Deh Bastos.
De acordo com ela, para ensinar uma criança a ter referências positivas com corpos pretos, o principal é ser uma família que se relaciona afetivamente com pessoas pretas, que consome intelectualidade preta. “É preciso dar referências para que as crianças não associem a imagem de pessoas pretas apenas como subservientes.”
Brinquedos, livros, vídeos, histórias e desenhos que abordam a inclusão racial de maneira acessível podem ajudar as crianças a construírem suas identidades raciais. “Em vez de deformar, com leituras que reforçam o racismo, há muitos novos autores que formam a criançada, de todas as cores, com protagonistas negros e histórias sobre a realidade negra”, diz Rosa.
Sarno recomenda que a família crie um ambiente em que a criança se sinta confortável e aberta a falar e ouvir. “Iniciar uma conversa sobre identidade racial com uma criança requer sensibilidade e uma abordagem cuidadosa. É importante perguntar sobre suas experiências e observações acerca do tema. Como ela se enxerga? Na escola dela ou no grupo de amigos, há outras crianças como ela?”.
Em Minas Gerais, na casa de Mariana Ferreira Magalhães, mãe do José Caetano, 5 anos, e da Amora Maria, 11 meses, essa conversa é comum. “Desde que soube que seria mãe tive a preocupação de que meus filhos se entendessem enquanto crianças pretas. Tento trazer essa consciência, dentro do que a infância permite, buscando referências musicais e artísticas. Mas, principalmente, trazendo histórias sobre minha família e nossa ancestralidade como um todo, de modo natural e lúdico.”
“Somos e seremos sempre atravessados por questões raciais desde a infância”, diz Mariana. “Em casa, fico emocionada quando meu filho mais velho se identifica racialmente colorindo os desenhos de marrom. Ele é muito orgulhoso de sua cor. Sinto que ele vai ter mais força e coragem. Infelizmente, temos que educar nossas crianças também para entender o que é resistência.”
Construindo referências positivas
Embora a família tenha um impacto muito grande na construção da identidade racial da criança, é importante lembrar que existem outros espaços de convivência envolvidos. Muitas vezes, o primeiro contato da criança com a questão racial e com o racismo coincide com o começo da vida escolar.
Por isso, Deh recomenda cobrar da escola ações antirracistas e que assuma a responsabilidade do combate ao racismo institucional. Além disso, para ela, precisa haver “um ambiente de acolhimento em casa para quando essa criança voltar da escola se sentir segura e fortalecida”.
A lei 10.639 tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas. “Se as escolas abraçassem essa lei, a identidade da criança negra, gostando do seu cabelo, do seu fenótipo, seria muito mais viável. Dentro de uma sociedade racista, é difícil assumir características que não são bem vistas quando está se constituindo como indivíduo”, observa Rosa.
No entanto, a mãe de José Caetano acredita que a escola ainda esteja longe de ser esse lugar. “Uma vez, na creche, meu filho ficou chateado, porque a professora disse que ele tinha que cortar o cabelo. Aos 3 aninhos, ele se sentiu ferido por não poder deixar os cachos soltos. Fui até a escola conversar e entendi que a professora, também uma mulher negra, não teve a ‘intenção’ de causar desconforto. Mas foi a primeira vez como mãe que me vi com o dever de não naturalizar certas falas e ressaltar a importância do que dizemos no desenvolvimento das crianças.”
“O olhar do outro desempenha um papel crucial na formação da identidade racial de uma criança”, diz Sarno.
A psicóloga explica ainda que a percepção positiva e inclusiva por parte de colegas e adultos pode fortalecer a autoestima e o autoconceito. Por outro lado, experiências negativas, especialmente vivenciadas na escola, podem levar à dúvida, à baixa autoestima e até a casos de depressão.
Já Santos avalia que “a educação, durante muito tempo, foi um grande projeto de manutenção do racismo no Brasil”. Ela defende que as escolas façam um duplo movimento: identificar e desconstruir o racismo, bem como ajudar a criar uma sociedade mais diversa. Isso envolve olhar para a composição dos alunos, do corpo docente e para a formação dos funcionários na escola.
“É parte importante do processo evolutivo de um povo se conhecer e se reconhecer. E saber que a diferença é positiva e permite a unicidade”, diz o consultor de Regulação Educacional da Fundação FAT, Francisco Carlos D’Emílio Borges. Ele lembra ainda que o ambiente escolar tem o potencial de promover uma boa construção da identidade racial das crianças. “Os educadores devem estimular a construção de pontes entre as diferenças e destacar todas as identidades. Além disso, valorizar o posicionamento individual dos alunos e estimular práticas pedagógicas integradoras, que abram portas e afastem paredes. Afinal, educar é apresentar o diferente e valorizar as diferenças.”
Fonte: Lunetas.
Foto da capa: Jare Ijalana, uma nigeriana de 5 anos de idade, ganhou o apelido de “a mais bonita do mundo” nas redes sociais. A menina teve sua imagem divulgada pelo fotógrafo Mofe Bamuyiwa no Instagram, em 20/07/2028. Desde então, as fotos viralizaram na Web.