Por Marcelle Felix

A pesquisadora Marcelle Felix recomenda cinco obras que discutem e empregam o conceito de ‘racialização’ para entender diferentes contextos e momentos históricos.

 

Embora a ideia de que existam diferentes raças humanas tenha sido cientificamente refutada pela biologia, ela ainda serve como base para a diferenciação e discriminação cotidianas de diversos grupos. Como diversas pesquisas mostram, a raça produz consequências sociais concretas no sentido de aumentar ou reduzir as oportunidades das pessoas em diversas áreas. Daí a importância do conceito de “racialização”, empregado para lançar luz sob a construção sociológica de fronteiras raciais e os significados que a raça assume em determinados contextos.

Grosso modo, “racialização” é a separação de indivíduos em categorias de acordo com algum critério racial. A forma como esses processos acontecem e se atualizam varia a depender do contexto histórico, cultural e social. Desse modo, o conceito de “racialização” chama a atenção para o caráter social, processual e dinâmico das diferenciações raciais, além de apontar a permanência das diferenciações sociais entre grupos e das hierarquias que delas advêm.

A seguir, apresentamos cinco obras que discutem e empregam o conceito de racialização para entender diferentes contextos e momentos históricos.

Pele negra, máscaras brancas

Frantz Fanon (Ubu, 2020[1952])

A Frantz Fanon é atribuído o primeiro uso do termo “racialização”, ao menos em sentido acadêmico. Seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas foi lançado em 1952 em Paris e era a primeira versão de sua tese de doutoramento em psiquiatria, reprovada pela banca. Apesar disso, o livro teve uma ampla recepção pela intelectualidade francesa, não apenas pelo círculo de intelectuais negros que estavam na cidade, mas também por figuras como Jean Paul Sartre, que depois escreveria o prefácio de Os Condenados da Terra, último livro de Fanon.

Em Pele Negra, Máscaras Brancas, o psiquiatra martinicano disserta sobre os problemas de ser percebido e perceber-se como um outro racial, processo que nomeia como “racialização”. O autor descreve como a raça é fator decisivo para a posição das pessoas na estrutura social e acaba por cercar o colonizado de tal forma que sua existência é determinada por aquele signo. Trata-se de um livro incontornável para se aprofundar sobre os impasses subjetivos, materiais e sociais de ser negro.

Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970)

Antonio Sérgio Guimarães (Editora 34, 2021)

Em seu livro mais recente, lançado em 2021 pela Editora 34, Antônio Sérgio Guimarães contribui para o debate sobre como pessoas negras passaram a se autodefinir e rearticular os significados de ser negro no Brasil. O livro reúne artigos que abordam diferentes momentos dos movimentos negros no país, mostrando como os significados raciais mudaram ao longo do tempo. De modo geral, o autor enfatiza a formação racial no Brasil durante o período de 1930-1970 – embora alguns capítulos tratem de períodos mais antigos. A formação racial abarca tanto a racialização, entendida como a imputação reducionista de características a um grupo, quanto a rearticulação desses significados atribuídos à raça de modo positivo no âmbito político. Em outras palavras, a formação racial
traz a possibilidade da elaboração de uma identidade positiva a partir de uma identidade anteriormente estigmatizada.

Com uma escrita fluida, o autor revisita o discurso político sobre raça no Brasil a partir de figuras como Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento, acompanhando algumas mudanças no debate que dizem respeito a transformações na estratégia política de construção de cidadania plena para pessoas negras, indo desde a bandeira de democracia racial – que já foi um objetivo no sentido de utopia a ser alcançada – até a sua denúncia como apenas um mito. O livro é uma leitura fundamental de um autor que é referência na área de relações raciais no Brasil.

O Massacre dos Libertos: sobre raça e república no Brasil (1888–1889)

Matheus Gato (Editora Perspectiva, 2020)

Lançado em 2020 pela Editora Perspectiva, o livro do sociólogo Matheus Gato de Jesus destrincha as repercussões de um episódio silenciado na história: o massacre de pessoas negras libertas que protestavam contra a proclamação da República. O episódio se passa em São Luís do Maranhão no dia 17 de novembro de 1889, logo depois da abolição da escravidão no ano anterior, e vai sofrendo um apagamento ao longo do tempo. No período havia rumores de que o novo regime republicano ameaçaria a liberdade recém adquirida após mais de três séculos de escravidão, o que impulsionou a manifestação.

 

Tratada como um protesto de libertos que idolatravam a monarquia escravocrata, a revolta entrou para a historiografia como uma “não revolta” ou um protesto contraditório que dispensaria estudos mais pormenorizados. Contra essa interpretação, o livro se insere nas investigações sociológicas sobre os processos de racialização como construção de hierarquias, uma vez que a origem de nascimento não garantiria mais o mesmo status social de antes para os homens brancos. O autor destrincha como o episódio foi silenciado historicamente e ao mesmo tempo como seus significados raciais foram sedimentados na transição do regime político. A escolha do Maranhão como lugar de pesquisa é outra qualidade do livro, já que se trata de um lugar pouco explorado na sociologia das relações raciais, historicamente focada em regiões como a Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.

A exaltação das diferenças: racialização, cultura e cidadania negra (Bahia, 1880 – 1900)

Wlamyra R. de Albuquerque (2004, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas)

A tese de doutoramento de Wlamyra de Albuquerque, defendida em 2004 na Universidade Estadual de Campinas, investigou os significados que a raça assumiu entre as décadas de 80 e 90 do século 19, na transição entre escravidão e liberdade. A autora demonstra uma variedade de significados associados à raça, que nem sempre seguiam a mesma direção. Com o escravismo já em crise na década de 80 e com a abolição, a autora argumenta que, de forma velada, há uma forma de pensar as relações sociais no Brasil a partir da raça.

A historiadora pega como base quatro episódios ocorridos nas décadas de 80
e 90 do século 19 e analisa a partir de fontes variadas, como jornais, cartas, processos judiciais e testamentos. O debate é importante para entender a racialização na prática, com exemplos de como os significados raciais são disputados por negros e brancos num período histórico com desdobramentos até os dias de hoje.

Racisms: an introduction

Steve Garner (Sage Publications, 2010)

O livro do sociólogo inglês Steve Garner apresenta de maneira introdutória conceitos muito comuns no debate público, como “racismo”, “raça” e “racialização”. Lançado em 2010 pela Sage Publications, o livro apresenta revisão bibliográfica com as principais referências sobre o tema. O autor ressalta a importância de situar os conceitos em seu período histórico, social e político, entendendo que cada momento traz peculiaridades e novas formas de entender a raça.

O debate apresentado é introdutório e mostra de modo esquematizado os diferentes usos de “racialização”. A revisão traz uma importante contribuição, já que não há consenso sobre o uso do conceito. O autor, porém, enfatiza o avanço do conceito como lente analítica para investigar os efeitos da raça de modo dinâmico, buscando identificar os processos sociais por meios dos quais a raça passa a ter importância. Para tentar entender melhor a “racialização” ele pensa a partir de três temas fundamentais: a concepção de cidadania e pertencimento, imigração e construção de identidades.

Os exemplos práticos e contemporâneos apresentados mostram como o processo de racialização pode se dar a partir de uma nova roupagem que prescinde da retórica evidentemente discriminatória, mas se calca no nacionalismo e instrumentaliza um discurso calcado na igualdade. O autor destrincha alguns movimentos de extrema direita anti-imigração na Europa para empreender sua análise. O caráter introdutório, atual e de fácil leitura tornam o livro uma indicação adequada a quem está se inserindo no debate e quer ter acesso às principais discussões a respeito do conceito.

 

 

Marcelle Felix

Doutora em sociologia pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e jornalista pela ECO-UFRJ (Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro). É subcoordenadora de pesquisa do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa). Tem interesse particular em pesquisas sobre raça, gênero e mídia.

 

Fonte: Nexo | Foto: reprodução Paraíba Já.

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