O Brasil assistiu, nas últimas semanas, a uma poderosa demonstração de força e unidade das mulheres em defesa dos seus direitos. Os protestos contra o inconstitucional e misógino PL do Estuprador podem ser o início de uma reação organizada contra o avanço das pautas conservadoras e de extrema-direita no país. A indignação dos movimentos feministas e de todos os democratas e defensores dos direitos humanos contra o PL 1904/2024 é mais do que justificada.

A decisão do colégio de líderes e do presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, de aprovar, no dia 13, a votação em regime de urgência do PL 1904/2024, chamado de PL do Estuprador ou PL da Gravidez Infantil – uma proposta que pune com prisão de seis a 20 anos a vítima de estupro que tentar abortar além da 22a semana de gestação – pode, quem sabe, ser o estopim de uma reação da sociedade contra o retrocesso que vem sendo pautado pelo Congresso e o avanço da extrema-direita no país.

No dia seguinte à chincana do Parlamento, as ruas de várias capitais do país foram tomadas por protestos de mulheres e homens contra o PL do Estuprador e contra o presidente da Câmara, movimento que se repetiu no final de semana em muitas cidades. Após intensa pressão popular e mobilização em massa, conseguimos um recuo significativo no andamento do Projeto de Lei 1904/2023, o PL do Estupro, que culpabiliza mulheres e meninas vítimas de violência sexual.

 

Leia os artigos de Ana Pimentel e José Dirceu

 

Ana Pimentel: Mobilização feminina freou o PL do Estupro

 

O Brasil assistiu, nas últimas semanas, a uma poderosa demonstração de força e unidade das mulheres em defesa dos seus direitos. Após intensa pressão popular e mobilização em massa, conseguimos um recuo significativo no andamento do Projeto de Lei 1904/2023, o PL do Estupro, que culpabiliza mulheres e meninas vítimas de violência sexual. Em coletiva de imprensa, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, anunciou que “nada irá retroagir nos direitos já garantidos” e que o projeto será será debatido apenas no segundo semestre, com a formação de uma comissão representativa.

Esse resultado é uma vitória para todas as mulheres e meninas brasileiras. O PL 1904/2023 representava um ataque frontal aos nossos direitos reprodutivos, ameaçando criminalizar ainda mais as mulheres vítimas de violência. É inadmissível retroagir nos direitos conquistados. O PL 1904 não traz avanço algum para os direitos de mulheres e meninas; pelo contrário, representa um grande retrocesso em conquistas que vieram de muita luta.

A mobilização feminina em todo o país foi fundamental para este desfecho. Mulheres de todas as idades, origens e profissões se uniram em um coro de resistência, utilizando as redes sociais, organizando manifestações e pressionando seus representantes. Foi essa força coletiva que impediu que o projeto avançasse rapidamente pelo Legislativo e nossos direitos fossem ameaçados. O recuo na discussão do o PL 1904 é um testemunho do poder transformador da mobilização popular. Sobretudo das mulheres, que vêm conduzindo e protagonizando a resistência mais forte ao projeto neoliberal e fascista que tentam implantar no Brasil.

Em vez de proteger nossas meninas e mulheres, o projeto tem o potencial de aumentar os casos de abuso e violência contra elas. As estatísticas são assustadoras: 75% das vítimas de estupro no Brasil são meninas menores de 13 anos, e a cada hora são feitas seis denúncias de abuso contra menores. Isso porque, atualmente, apenas 8,5% dos casos de abuso sexual são denunciados.  Quando as consequências legais para as vítimas de violência sexual são severas, as vítimas e suas famílias ficam ainda mais reticentes em denunciar os agressores, perpetuando a impunidade dos culpados, enquanto as vítimas continuariam a sofrer em silêncio.

Como presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara, testemunhei a imensa mobilização das mulheres e também fui às ruas contra o PL 1904. Eu e outras parlamentares estávamos prontas para realizar um ato no dia 19 de junho e uma coletiva de imprensa para manifestar nossa oposição e pressionar pela rejeição do projeto. Com o anúncio de Lira, decidimos cancelar esses eventos, mas isso não significa que nossa vigilância terminou. Pelo contrário, devemos permanecer alertas e continuar a lutar para garantir que os direitos conquistados sejam preservados e que avanços significativos possam ser reivindicados e alcançados. Isso é a democracia em seu curso.

 

José Dirceu: Sociedade reage ao PL do Estuprador

Os protestos contra o inconstitucional e misógino PL do Estuprador podem ser o início de uma reação organizada contra o avanço das pautas conservadoras e de extrema-direita no país.

A decisão do colégio de líderes e do presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, de aprovar, no dia 13, a votação em regime de urgência do PL 1904/2024, chamado de PL do Estuprador ou PL da Gravidez Infantil – uma proposta que pune com prisão de seis a 20 anos a vítima de estupro que tentar abortar além da 22a semana de gestação – pode, quem sabe, ser o estopim de uma reação da sociedade contra o retrocesso que vem sendo pautado pelo Congresso e o avanço da extrema-direita no país. No dia seguinte à chincana do Parlamento, as ruas de várias capitais do país foram tomadas por protestos de mulheres e homens contra o PL do Estuprador e contra o presidente da Câmara, movimento que se repetiu no final de semana em muitas cidades.

A indignação dos movimentos feministas e de todos os democratas e defensores dos direitos humanos contra o PL 1904/2024 é mais do que justificada. Ele limita a 22 semanas o período legal para o aborto em caso de estupro – o Código Penal atual não estabelece limite de tempo –, ignorando que seis em cada dez vítimas de estupros são crianças e que 70% são atacadas em casa por pais, padastros, tios e avôs, o que dificulta o acesso ao serviço de saúde. Para aumentar a ignomínia, o autor do projeto, deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), propôs punição maior para a vítima de estupro que abortar fora do prazo do que para o estuprador, ao equiparar o aborto a homicídio: a mulher pode cumprir até 20 anos de prisão; a pena máxima para o autor do estupro são dez anos.

Diante da reação popular, expressa de imediato nas redes sociais – monitoramento da Quaest, realizado no dia 14, indicava 52% de manifestações contra o PL do Estuprador e só 14% a favor – e, depois, nas ruas, Arthur Lira já ensaiava um recuo, anunciando que indicaria uma mulher para relatora, que pontos do projeto seriam alterados e que haveria debate em torno dele. O autor do projeto, no entanto, não admitia flexibilizar seus termos, apenas aumentar as penas para o estuprador.

Seja como for, Lira sentiu o peso da opinião pública – também a mídia corporativa colocou-se contra o PL. O que mostra a importância da mobilização da sociedade para barrar o avanço da extrema-direita e de sua pauta conservadora e atrasada, contra os direitos das mulheres, das negras e negros, dos povos originários e da população LGBTQIA+.

O PL do Estuprador, por se constituir em verdadeira aberração, uso de mulheres e, pior, crianças, por deputados evangélicos que, além de defender a idade das trevas, querem usar seus votos como moeda de troca para engordar seu cacife eleitoral, é o que mais chama atenção entre os projetos conservadores e antidemocráticos que tramitam no Congresso. Mas há outros na fila: um é o PL 1226/2019, que anistia os guardas do sistema prisional de São Paulo que foram punidos em decorrência das greves de 2014 e 2015. Ele estava parado e, agora, teve relator designado na Comissão de Constituição e Justiça, o deputado federal Antonio Carlos Nicoletti (União Brasil/RR).

De olho nas eleições para fazer seu sucessor na presidência da Câmara, Lira tem acenado para a oposição ao governo, fazendo avançar a pauta conservadora. Segundo reportagem publicada pelo Poder360, em 21 de maio Lira pautou e a Câmara aprovou proposta que impede invasores ilegais de propriedades rurais de receberem benefícios do governo. No final daquele mês, a pedido da bancada evangélica, entrou na pauta da CCJ a PEC das Drogas, que criminaliza a posse e porte de droga em qualquer quantidade.

Preparar 2026

A retomada das ruas pela sociedade civil organizada em defesa dos direitos das meninas e das mulheres tem que ser o início de um movimento que una todas as forças de esquerda e todos os democratas do país para, em 2026, começar a mudar a correlação de forças no Congresso Nacional. Nas próximas eleições presidenciais temos que derrotar a extrema-direita, colocando uma pá de cal no bolsonarismo e em suas pretensões. Logo após o avanço da extrema-direita nas recentes eleições para o Parlamento Europeu, Bolsonaro escreveu  no X: “Estados Unidos com Trump em novembro/2024 e Brasil em 2026 serão os próximos nessa grande corrente do bem”.

Mas temos também que eleger uma bancada mais numerosa na Câmara dos Deputados e no Senado, para dar sustentação ao nosso presidente. Hoje, com a atual composição do Congresso, especialmente da Câmara, está quase impossível para o presidente Lula governar, em função do perfil conservador dos parlamentares. É claro que não vamos reverter totalmente este quadro em apenas uma eleição: mas temos que avançar em 2026 para, em oito ou 12 anos, conquistarmos a maioria.

Como chegar lá? Eu tenho dito, e repetido, que temos que “disputar corações e mentes”, nos voltar, no PT e demais partidos de esquerda e movimentos populares, para a formação de quadros ideológicos e líderes de massas, organizar as bases, tomar as ruas e permanecer nelas.

Paralelamente, temos que construir uma estratégia eficiente de atuação nas redes sociais, o que não conseguimos até hoje. Continuamos apanhando da extrema-direita: para ela é bem mais fácil, porque atua nas redes disseminando fake news e nós não podemos caminhar por aí: nosso instrumento de comunicação e de convencimento tem de partir dos fatos e da verdade.

Contra o nosso projeto de desenvolvimento do país com distribuição de renda (reforma tributária, taxação das grandes fortunas, juros e dividendos), e uma agenda focada na transição energética, na inovação, na proteção do meio ambiente e na produção de alimentos, temos um Congresso conservador, o avanço da ideologia da extrema-direita, sobretudo nas redes sociais, e a crise da segurança pública em razão do poder do crime organizado. A isso se soma um problema secular: o atraso da maioria de nossas elites.

Para fazer frente a isso, tenho defendido a retomada do arco de alianças que elegeu Lula, um pacto que aglutine os empresários da indústria, parte do agronegócio, os trabalhadores do campo e das cidades, os trabalhadores autônomos, os intelectuais, a academia, os profissionais liberais, as classes médias. Essa aliança tem que ser feita em torno de um programa mínimo de desenvolvimento do país, no combate às pautas conservadoras e obscurantistas e na eleição de um Parlamento comprometido com a consolidação da democracia e com o projeto de desenvolvimento do Brasil.

(*) José Dirceu foi ministro-chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula (2003-2005), presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e deputado federal por São Paulo.

 

Fonte: Carta Capital e Opera Mundi.

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