Por Edilza Sotero e Gladys Mitchell-Walthour

É fundamental reconhecer que a cor da pele impacta na vida das pessoas: quanto mais escuras, mais subalternizadas. Mas o movimento negro não pode perder seu foco: unidade dos pretos, pardos e seus aliados contra os racismo e a supremacia branca.

 

“A menos que a questão do colorismo – em minha definição, tratamento preconceituoso ou preferencial de pessoas da mesma raça baseado exclusivamente na cor – seja abordada em nossas comunidades e definitivamente em nossas ‘irmandades’ negras, não podemos, como povo, progredir. Pois o colorismo, assim como o colonialismo, o sexismo e o racismo, nos impede.”
Alice WalkerEm busca dos jardins de nossas mães (2021)

A formulação do conceito de colorismo, como usado contemporaneamente, é atribuída à escritora estadunidense Alice Walker, em seu livro Em busca dos jardins de nossas mães: Prosa mulherista, publicado em língua inglesa há pouco mais de 40 anos. Para a autora, colorismo se refere à noção de que a cor da pele de uma pessoa é um indicativo de seu valor social, seja estético, seja intelectual, seja de outra natureza. Seguindo essa noção, aqueles com pele mais clara tendem a ser vistos como superiores aos de pele mais escura, mesmo pertencendo ao mesmo grupo racial.

Analisando a história dos Estados Unidos e do Brasil, percebemos que práticas sociais de discriminação com base na cor da pele existiam muito antes de o termo “colorismo” ser cunhado. O sociólogo W. E. B. Du Bois (1868-1963) elaborou um conceito próximo ao que hoje chamamos de colorismo, denominando-o “linha de cor”. Em seu célebre livro As almas do povo negro, lançado em 1903, Du Bois afirma: “A questão do século 20 é o problema da linha de cor – em relação às raças de homens mais escuros e mais claros na Ásia, na África, na América e nas ilhas dos mares”. Para Du Bois, a linha de cor representava uma manifestação do racismo na sociedade.

A produção contemporânea sobre colorismo se concentra principalmente no preconceito e nas vantagens produzidas dentro de grupos raciais. Ainda assim, a frase de Du Bois parece ter ares de profecia, nos desafiando desde a virada do século passado.

Se a linha de cor foi a questão do século 20, será o colorismo a questão do século 21 (ou pelo menos deste primeiro quartil de século)?

O debate sobre o colorismo no Brasil está em ascensão, com o termo sendo amplamente utilizado nos meios de comunicação e nas mídias sociais, em especial em discussões sobre a identidade dos pardos. Uma busca no YouTube, por exemplo, revela uma intensa produção de conteúdo sobre o assunto nos últimos anos, com vídeos alcançando centenas de milhares de visualizações. Recentemente, também vem se destacando no Brasil uma movimentação que afirma os pardos como um grupo distinto de negros e brancos. Essa discussão não é nova e remonta à ideia de democracia racial, em que o elogio à mestiçagem aparecia como um elemento da originalidade brasileira e, para muitos, como prova da inexistência de racismo no país.

Na produção acadêmica, o discurso sobre a especificidade dos pardos também tem uma longa tradição, exemplificado pela noção de Carl Degler em seu livro Nem preto nem branco (1976), no qual ele introduz a ideia de “válvula de escape do mulato”. Essa teoria sugere que os mestiços atuariam como um grupo intermediário entre negros e brancos, servindo como um tampão e não sendo alvo de discriminação da mesma forma que as pessoas de pele mais escura.

Nos Estados Unidos, a história revela que a regra de “uma gota de sangue” funcionava como princípio social e jurídico, juntamente com uma segregação sistemática que impedia pessoas negras de acessar espaços públicos, independentemente da cor da pele ou da ascendência. Essa história perpetuou a ideia da comunidade negra como uma entidade monolítica, mesmo com a presença contínua do colorismo.

A regra de “uma gota de sangue” significava que qualquer pessoa com ascendência africana, por menor que fosse, era considerada negra. No entanto, essa regra não descreve com precisão as relações raciais históricas, nem reflete a maneira como as dinâmicas sociais relacionadas à cor da pele realmente operaram e continuam a operar nos Estados Unidos.

Para compreender outras narrativas, é importante notar que, em diferentes momentos da História, pessoas de origem afrodescendente nos Estados Unidos conseguiram se passar por brancas. A historiadora Allyson Hobbs, em seu livro A Chosen Exile: A History of Racial Passing in American Life [Um exílio escolhido: Uma história de passagem racial na vida americana], publicado em 2016, discute trajetórias de afrodescendentes que alteraram suas identidades raciais, demonstrando que a raça nunca foi um elemento tão imutável quanto frequentemente se imagina.

Além disso, nem sempre houve uma divisão exclusivamente dicotômica entre negros e brancos nos Estados Unidos. Por exemplo, nos censos demográficos anteriores a 1920, a categoria “mulato” era utilizada para reconhecer pessoas com ascendência mestiça.

A cor da pele tem relevância econômica, política e social tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Pesquisas sobre os Estados Unidos, no contexto de escravidão e pós-escravidão, demonstram que a identidade mestiça estava associada a mais oportunidades de liberdade, emprego e mobilidade ascendente, em especial através do casamento. Em termos históricos, a cor da pele desempenhou um papel relevante na escolha de parceiros matrimoniais, com mulheres negras de pele mais clara tendo mais chances de se casar do que mulheres negras de pele mais escura. Além disso, estudos mostram que a cor da pele influencia significativamente no acesso à escolarização, à renda e a status ocupacional, com aqueles de pele mais clara tendo mais vantagens em relação aos de pele mais escura.

No Brasil, estudos sobre desigualdades raciais demonstram há décadas que a cor da pele é um preditor eficaz de diferenças educacionais, de renda e de status ocupacional. Na dinâmica racial do país, pessoas com pele mais escura são mais propensas a ocupar posições menos prestigiadas. Nesse sentido, a dinâmica social no Brasil se assemelha à dos Estados Unidos, onde a cor da pele desempenha um papel importante nos resultados de vida. Além das diferenças materiais, também existem diferenças na percepção do racismo: pessoas de pele mais escura são mais propensas a admitir que enfrentaram discriminação baseada na cor.

O que torna a comparação entre os dois países mais desafiadora não é apenas o uso de categorias semelhantes em contextos distintos, mas também os diferentes comportamentos em relação a dilemas similares. Historicamente, nos Estados Unidos, pessoas mestiças eram, muitas vezes, vistas por outros negros como parte da comunidade negra. No Brasil, entretanto, pessoas racialmente miscigenadas nem sempre foram reconhecidas como negras pela população em geral. No entanto, vale salientar que uma atuação histórica dos ativistas negros no Brasil tem sido a conscientização para que as pessoas se identifiquem racialmente como negras. Um exemplo disso foi a campanha “Não deixe a sua cor passar em branco – Responda com bom C/Senso”, lançada pelo movimento negro brasileiro em 1991. Esse esforço visava ampliar a percepção social sobre negritude, incluindo também pessoas miscigenadas como parte do grupo racial negro.

Recentemente, o debate sobre colorismo vem ganhando novas roupagens nos Estados Unidos e no Brasil, animando discussões sobre como a cor da pele pode explicar variações nas dinâmicas familiares, diferenças salariais e até práticas de relacionamento e matrimônio. Por exemplo, estudiosos descobriram que, embora nos Estados Unidos os negros muitas vezes sejam vistos de maneira monolítica, a cor da pele influencia a vulnerabilidade em situações de violência, o tratamento recebido em sentenças judiciais e indicadores como a nupcialidade.

Da mesma forma, no Brasil, o debate sobre relacionamentos inter-raciais e seletividade de cor nas escolhas conjugais está em alta, ainda que esse não seja um assunto tão recente no campo das pesquisas. A demógrafa Elza Berquó, expoente em pesquisas sobre nupcialidade, demonstrou desde os anos 1980 que, apesar de uma tendência à endogamia por cor no Brasil, pessoas pardas têm taxas de casamento mais altas do que as pretas. Ademais, o celibato é mais comum entre pessoas que se declaram pretas, sobretudo mulheres.

As diferenças nas chances de vida e nas experiências sociais entre pretos e pardos influenciam de forma significativa suas percepções políticas e comportamentos eleitorais tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Embora esses grupos muitas vezes apresentem opiniões políticas variadas, há uma coesão maior no apoio a políticas de combate ao racismo e de ações afirmativas. Nos Estados Unidos, o voto racial é um fenômeno mais visível, enquanto no Brasil, embora menos relevante em larga escala, pesquisas indicam diferenças no comportamento político com base na identidade racial, como demonstrado no trabalho de Gladys Mitchell-Walthour. No artigo “Politicizing Blackness: Black and Brown Brazilian Color Identification and Candidate Preference”, publicado em 2010, a autora demonstra que pessoas que se identificam como pretas têm maior propensão a votar em políticos negros.

Análises acadêmicas ressaltam como a cor da pele molda profundamente as experiências dos afrodescendentes. Aqueles com pele mais escura enfrentam maior discriminação no mercado de trabalho, resultando em rendas mais baixas e barreiras educacionais que se traduzem em menores taxas de conclusão escolar. Exemplos dos Estados Unidos mostram que meninas negras de pele mais escura são mais propensas a receber suspensão escolar do que as colegas de pele mais clara.

As diferenças entre pretos e pardos revelam a importância de abordar a experiência das pessoas negras em sua totalidade, reconhecendo como a cor da pele afeta suas vidas. Compreender essas nuances é crucial para entender melhor as dinâmicas de desigualdade e discriminação enfrentadas, e para buscar formas de superá-las.

Embora seja fundamental reconhecer as diferentes formas como a cor da pele impacta a vida das pessoas e o papel de cada sociedade na produção e na reprodução de desigualdades com base nas percepções dessas diferenças, o foco deve permanecer no desmantelamento da supremacia branca e na promoção da unidade entre os afrodescendentes, independentemente da cor da pele.

Perspectivas como a pan-africanista podem ajudar a garantir a unificação de todos os povos da diáspora africana, não importando a localização geográfica ou a cor da pele. Esperamos que, ao nos concentrarmos em dois países dessa diáspora e nos desafios semelhantes que enfrentamos como afrodescendentes, possamos continuar a longa tradição de diálogo e unificação para fortalecer ambas as nossas comunidades.

 

*Nota do editor Valdisio Fernandes:

A Expressão colorismo (pigmentocracia) foi utilizada pela primeira vez pela escritora e ativista afro-americana Alice Walker, em 1982, na obra “If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?” (Se o presente parece com o passado, como será o futuro?). Seus efeitos discriminatórios são atuantes em qualquer nação, especialmente em países que passaram por processos de colonização e escravidão.

 

Fonte: Revista Cult | Ilustração: Projeto Colabora.

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