Por Felipe Tuxá
Ao reconhecer que vivemos em um país multiétnico, multilinguístico e multicultural, o texto constitucional inaugura a necessidade de pensar outros modelos de exercício de cidadania, ou seja, uma cidadania indígena, pautada em sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
No ano de 1994, a antropóloga portuguesa Manuela Carneiro da Cunha, grande aliada da causa indígena, publicou um texto intitulado “O futuro da questão indígena” 1 . Nele, a autora falava sobre os principais temas referentes a chamada questão indígena, como terra, biodiversidade e direitos, se debruçando sobre aquilo que parecia ser o caminho para onde estávamos nos dirigindo. Olhar para esse texto hoje, trinta anos depois de sua publicação, é como se debruçar sobre um documento histórico, que registra a atmosfera do período, as promessas e os gargalos da temática indígena, naquela quadra histórica.
Todavia, o que me chama atenção em uma leitura contemporânea do que seria, para a autora, em 1994, o futuro da questão indígena é a ausência de menção direta a dois termos centrais para os povos indígenas após a Constituição Federal de 1988: protagonismo e Movimento Indígena. É um exemplo de que se hoje pode parecer óbvio que grupos historicamente marginalizados e excluídos, como as mulheres, os povos negros, indígenas, quilombolas, ciganos, precisam ser os protagonistas da construção de políticas públicas que lhes afete, isso nem sempre esteve na pauta do dia.
É preciso ter em mente que muitas das conquistas indígenas referentes a participação na vida política são recentes, resultado de luta histórica do Movimento Indígena em suas organizações, e, ainda, frágeis e alvo de ataques. Quando se trata dos povos indígenas, gostaria de ressaltar no presente texto as especificidades da nossa luta por representatividade, protagonismo e reconhecimento político nas últimas décadas que continuam sendo extremamente atuais.
Nunca mais um Brasil sem nós
Durante a maior parte da política indigenista brasileira no século 20, nós indígenas tivemos o exercício de cidadania limitado devido ao poder tutelar, exercido pelo Estado. A ideia de que indígenas precisavam ser tutelados é antiga e remonta a certas máximas evolucionistas que viam os indígenas como crianças, infantilizando tanto seus aspectos cognitivos individuais, quanto suas culturas, vistas como situadas na infância da evolução humana. Enquanto prática de governo, a tutela indígena ganhou seu caráter legal no Código Civil de 1916, quando os “índios” foram submetidos a um exercício particular de poder Estatal: o poder tutelar, justificável apenas diante da pretensa “relativa incapacidade” indígena para o exercício de uma cidadania plena.
Eu defendo que a tutela foi superada no plano legal, após pressão indígena na constituinte, com a Constituição Federal de 1988, que, em seus arts. 231 e 232, desbanca, do ponto de vista normativo-constitucional, duas ideias bastante consolidadas: a de que indígenas desapareceriam e deixariam de ser indígenas e a de que indígenas seriam inaptos para se representarem juridicamente. Mais que isso, ao reconhecer que vivemos em um país multiétnico, multilinguístico e multicultural, o texto constitucional inaugura a necessidade de pensar outros modelos de exercício de cidadania, ou seja, uma cidadania indígena, pautada em sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Foi apenas em 1988, isto é, menos de quarenta anos atrás, que indígenas passaram a ser vistos como plenamente pensantes no ordenamento jurídico brasileiro ao serem reconhecidos como legítimos para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses. Como que em uma carta de alforria, foram precisos 488 anos de colonialismo para que indígenas fossem reconhecidos como iguais do ponto de vista cognitivo e jurídico.
Como uma permanência incômoda e recalcitrante, a visão de indígenas ocupando lugares de protagonismo contradiz séculos de desinformação e racismo acerca do que fazemos e de quem somos, causando reações imprevisíveis
Mas, como sabemos, tradições não são superadas rapidamente e costuma ser difícil mudar velhos hábitos. Apesar de superados no plano jurídico, resquícios da tutela, enquanto prática cotidiana, permanecem ocupando e pautando ações, comportamentos e costumes no dia a dia indígena ao redor do Brasil. Em parte, poderíamos explicar a permanência do ideal tutelar no imaginário nacional e mesmo em expedientes jurídicos ao fato de que existem instrumentos, como o Estatuto do Índio de 1973, que continuam operando, a despeito de possuírem elementos contrários àqueles da Constituição Federal. Por outro lado, a tutela é difícil de romper porque altera o modo como certas relações hierárquicas foram estabelecidas com certos setores da sociedade nacional, nas quais estivemos localizados sempre no polo passivo: de pesquisados, de subalternos, daqueles que precisam ser representados, daqueles que não possuem voz própria e etc.
Não é por acaso que em 2012 o indígena doutor em antropologia social Gersem Baniwa, atualmente professor da Universidade de Brasília, escreveu um texto chamado “A conquista da cidadania indígena e o fantasma da tutela no Brasil Contemporâneo” 2 . E que eu, hoje, em 2024, preciso novamente endereçar questões referentes a essa problemática. Como um fantasma, a tutela nos assombra. Como uma permanência incômoda e recalcitrante, a visão de indígenas ocupando lugares de protagonismo contradiz séculos de desinformação e racismo acerca do que fazemos e de quem somos, causando reações imprevisíveis.
À guisa de exemplo: em 11 de janeiro de 2023, Sônia Guajajara, Doutora Honoris Causa pela UERJ, proferiu em seu discurso de posse como primeira Ministra Indígena do País: “Hoje, vocês todos estão presenciando um momento de transição histórica, tal qual foi a singular colaboração indígena, na Assembleia Nacional Constituinte. Naquela ocasião, um passo muito importante foi dado com o fim do paradigma integracionista e da tutela. Hoje, vocês presenciam um passo ainda maior com este Ministério dos Povos Indígenas e esperamos, com isso, fazer respeitar a nossa existência e o nosso protagonismo”. Tutela e protagonismo, lados opostos da luta por autonomia. Uma das linhas de ação elaborada pelo MPI é justamente “Nunca mais um Brasil sem nós”.
“Nunca mais um Brasil sem nós” é mais do que uma política de ocupação de espaços, da política eleitoral e de cargos. É aldear a política, é indigenizar o Estado e é retomar o que é nosso. Toma por referência a necessidade de transformação sistemática de cinco séculos de apagamento e obliteração dos povos indígenas. O imaginário nacional construiu o arquétipo sobre povos indígenas através da sua ausência: indígenas precisam estar longe, são habitantes de lugares distantes e remotos, estão no passado, são todos iguais, e, portanto, pouco complexos. A melhor forma de combater esses preconceitos e o racismo é estando presente.
Quase quatro décadas após a Constituição Federal de 1988, vivemos e construímos cotidianamente esse futuro sonhado ancestralmente, no qual somos, cada vez mais, os protagonistas da construção das políticas para nós mesmos e ocupamos espaços historicamente negados. O futuro já é hoje, é o futuro de nunca mais um Brasil sem nós. O futuro é indígena.
Felipe Tuxá é doutor em antropologia social pela Universidade de Brasília, professor adjunto no Departamento de Antropologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia, membro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA, Vice-Diretor da ANAI (Associação Nacional Indigenista), membro da Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges, membro da CAI (Comissão de Assuntos Indígenas) da Associação Brasileira de Antropologia.
Fonte: Nexo Jornal | Foto: José Cruz, Agência Brasil.