Por Tainá Aguiar Junquilho e Germano Johansson
Enquanto EUA e China travam uma guerra tecnológica, há espaço para que o Brasil busque parcerias estratégicas que fortaleçam sua posição sem submeter-se a nenhuma potência.
O avanço da inteligência artificial transformou-se na nova fronteira da disputa geopolítica global. Enquanto potências como Estados Unidos, China e União Europeia direcionam investimentos bilionários para consolidar seu domínio tecnológico, o Brasil ainda é refém de uma dependência estrutural de plataformas estrangeiras. Sem uma resposta à altura, o país corre o risco de tornar-se um mero espectador da revolução da IA, vulnerável a pressões externas e restrições tecnológicas que podem comprometer sua soberania digital.
Os impactos dessa dependência já são evidentes. Isso porque infraestruturas críticas, desde serviços financeiros até a gestão de dados da administração pública, operam sob sistemas desenvolvidos e controlados por empresas estrangeiras. A inteligência artificial, que hoje decide sobre crédito bancário e pode otimizar processos industriais e definir políticas de segurança, está majoritariamente ancorada em tecnologias que não pertencem ao Brasil. Essa vulnerabilidade não é um problema apenas econômico: no mundo da geopolítica digital, dependência significa subordinação. E a história recente já provou que países podem ser cortados do acesso a tecnologias essenciais por razões puramente políticas.
É nesse sentido que o lançamento do DeepSeek R1 levanta reflexões interessantes sobre esse atual cenário da inteligência artificial e soberania digital, sobretudo quando o comparamos ao ChatGPT, da OpenAI. Enquanto o produto da gigante norte-americana vem se tornando cada vez mais restrito e envolto em acordos de licenciamento complexos, o DeepSeek R1 surge como uma alternativa gratuita e open source, algo que desperta o interesse de quem defende a verdadeira democratização da IA.
É irônico notar que o espírito “aberto” de uma inteligência artificial, inicialmente proposto pelo próprio nome da empresa OpenAI, hoje parece florescer em projetos não norte-americanos. Como observou o pesquisador da Nvidia, Jim Fan, “vivemos num momento em que uma organização de fora dos Estados Unidos mantém viva a missão original de abrir caminho para pesquisas de fronteira que empoderem a todos”.
O Brasil precisa definir qual será seu papel na governança da IA: seguirá o modelo europeu, focado em regulação e controle, ou buscará um caminho mais agressivo de incentivo à inovação?
Esse paradoxo se agrava quando lembramos do propósito inicial declarado pela OpenAI, que surge como organização sem fins lucrativos e voltada à democratização do acesso à inteligência artificial. Ver a companhia avançar em grandes acordos comerciais e tecnológicos, em parcerias bilionárias, desperta questionamentos sobre quem realmente se beneficia da tecnologia e se ainda faz sentido chamá-la de “Open” AI. Enquanto isso, o DeepSeek R1 simboliza a possibilidade de acesso público e colaborativo, incentivando programadores, pesquisadores e entusiastas a adaptar e melhorar o modelo conforme suas necessidades.
É nesse contexto que surge a pergunta: quem é a empresa ou a organização por trás desse lançamento? As informações ainda são limitadas, mas sabe-se que há um grupo multidisciplinar empenhado em manter a proposta de código aberto e em incentivar a construção conjunta de novos recursos. Isso remete ao espírito do software livre, que já provou ter capacidade de gerar soluções inovadoras a partir do esforço comunitário. Ao contrário do que muitos defendem, é uma falácia sustentar que apenas corporações bilionárias, com enorme capacidade computacional, podem desenvolver tecnologias de ponta em IA.
O que se nota no curioso caso de rápida ascensão da empresa DeepSeek é que a disputa pela liderança em inteligência artificial não se dá apenas pela inovação, mas pelo controle dos insumos que sustentam essa revolução. Dados, chips e capacidade computacional tornaram-se os novos recursos estratégicos do século 21. Os semicondutores de última geração, essenciais para a IA, estão no centro de um conflito entre China e Estados Unidos que redefine cadeias globais de suprimentos. A União Europeia, consciente dos riscos dessa dependência, lançou um plano ambicioso para recuperar sua autonomia na produção de chips.
Enquanto isso, o Brasil depois de lançar em 2021 uma Estratégia Brasileira em IA principiológica e sem agenda, apresentou em 2024 o PBIA (Plano Brasileiro de IA) com previsão de ações de impacto imediato e estruturais. As ações estruturais buscam posicionar o Brasil como um ator global em IA, apesar dos investimentos baixos, com foco prioritário em algoritmos e, em menor grau, em dados, educação e capacidade computacional. Esse enfoque em algoritmos, possivelmente motivado pela intenção de aproveitar competências existentes e responder rapidamente a demandas de produtividade, levanta dúvidas sobre sua eficácia em reduzir as dependências digitais do país.
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Paralelamente, o PBIA demonstra preocupação em fortalecer infraestrutura de ponta, como a modernização do supercomputador Santos Dumont e o desenvolvimento de um robusto modelo de linguagem em português, iniciativas importantes para a soberania digital e a competitividade global. Contudo, a relativa falta de investimentos em segurança e a falta de regulação baseadas em riscos suscitam questionamentos sobre a proteção de um ecossistema de IA em expansão, especialmente considerando as tendências globais de aumento de ameaças cibernéticas. Embora a matriz energética renovável do Brasil forneça suporte importante para projetos intensivos em computação, a superação de gargalos em cibersegurança e infraestrutura permanece como ponto central para alcançar uma estratégia sustentável de IA, como concluem Germano Johansson, Walter Gaspar e Viviane da Costa em texto ainda no prelo.
Outro ponto que surge da análise do caso DeepSeek está na ideia de que a regulação seria um obstáculo à inovação. “Leis bem elaboradas e equilibradas podem fomentar ambientes seguros, justos e competitivos, onde projetos independentes tenham chance de se desenvolver, como afirmou o professor Luca Belli”, em recente entrevista à Globo News.
Ora, o desafio dos países, e o brasileiro, não é apenas de infraestrutura, mas também regulatório. O Brasil precisa definir qual será seu papel na governança da IA: seguirá o modelo europeu, focado em regulação e controle, ou buscará um caminho mais agressivo de incentivo à inovação, como fazem Estados Unidos e China? Até agora, as iniciativas nacionais têm sido fragmentadas e descoordenadas, sem um plano real que conecte desenvolvimento econômico e proteção da soberania digital. O Marco Legal da IA, em discussão no Congresso, pode ser um primeiro passo, ao propor uma lógica de níveis de risco aliada a previsões de estímulo à inovação, como os sandboxes. Entretanto, sem investimentos massivos e uma política industrial voltada à tecnologia, qualquer regulação será inócua diante da realidade do mercado global.
O Brasil ainda pode reagir, e o caso DeepSeek prova isso. Criar centros de computação de alto desempenho, estimular empresas nacionais a desenvolverem modelos próprios de IA e garantir que os dados estratégicos do país sejam armazenados sob governança brasileira são passos urgentes. A cooperação internacional também precisa ser repensada: enquanto EUA e China travam uma guerra tecnológica, há espaço para que o Brasil busque parcerias estratégicas que fortaleçam sua posição sem submeter-se a nenhuma potência.
O futuro da inteligência artificial será decidido agora, e os países que não construírem sua própria base tecnológica serão condenados a depender dos que a construíram. O Brasil tem a escolha entre protagonizar essa revolução ou aceitar um papel secundário, onde sua economia, sua segurança e suas decisões mais fundamentais estarão, para sempre, nas mãos de outros.
Tainá Aguiar Junquilho é professora de direito, tecnologia e inovação no IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa) e coordenadora do LIA/IDP (Laboratório de Governança e Regulação da Inteligência Artificial). Doutora pela UnB (Universidade de Brasília) e mestre em Direito pela UFES (Universidade federal do Espírito Santo). Advogada e membro do Observatório Nacional de proteção de dados e Inteligência Artificial da OAB Federal.
Germano Johnsson é mestre em engenharia e em políticas públicas pela University of Southern California. É doutorando em ciências políticas na UnB e pesquisador no programa CyberBRICS do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV (Fundação Getulio Vargas), onde pesquisa sobre Soberania e Governança Digital.
Fonte: Nexo.