Por Wallace de Moraes
É importante assimilar que não existe uma classe trabalhadora única e comum no Brasil, nem na América Latina, pois é inquestionavelmente cortada e agravada pelo racismo. Basta ver como os corpos brancos, em sua maioria, com a diversificação da economia capitalista a partir do século XX, apesar de terem chegado no Brasil pobres, passaram a compor a crescente classe média, com os melhores empregos e oportunidades, e as benesses do american way of life à brasileira; enquanto aos negros e indígenas foram destinados os piores empregos, a informalidade e o desemprego. A mesma situação ocorre com o patriarcado. Não há equivalência entre os sofrimentos das brancas e das negras/indígenas. Aliás, sob todos os dados, aquelas estão em melhor situação do que estas e, inclusive, melhores do que os homens negros/indígenas, bem como do que os membres das comunidades LGBTQIAP+, mais discriminados, sobretudo quando possuem mais melanina na pele. Com efeito, o principal marcador da nossa sociedade é o racial, como ensina ad nauseam a perspectiva decolonial.
Em síntese, defenderei duas teses: 1) que o colonialismo, a Lei Áurea e a Lei de Terras no Brasil legaram um mercado de trabalho marcado pelo racismo (divisão racial do trabalho); 2) que as cotas raciais são importantes, mas cabalmente insuficientes para reparar os amplos danos sofridos pelos negros. Para comprovação dessas teses, analisarei as consequências da Lei Áurea, bem como as colonialidades que moldam o racismo institucional a partir de uma perspectiva decolonial libertária quilombola.
Como recurso didático, comparemos as comemorações propostas em torno do dia 13 de maio de 1888 com a ideia, amplamente difundida nas escolas e universidades, segundo a qual Getúlio Vargas teria criado direitos trabalhistas sem que os trabalhadores tivessem feito quaisquer reivindicações. Foi exatamente nestes termos que Oliveira Viana (1949) e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas tiveram coragem de aludir. Essa visão retira a agência dos trabalhadores e joga na lata do lixo da historiografia todas as suas greves, ações diretas, organizações e lutas por direitos. Por essas glosas, Vargas virou o pai dos pobres. Seja por inferências, seja explicitamente, os que reivindicam a Lei Áurea como solução benevolente do Brasil veem Isabel como a mãe dos negros. Nada mais antididático e a-histórico. Os objetivos de ambas as visões são os mesmos: 1) desacreditar da capacidade de proposições de escravizados e dos trabalhadores; 2) criar o mito do governante “bonzinho”, ignorando todas as mazelas realizadas. Ou seja, estas narrativas nos ensinam que os negros e trabalhadores, em geral, não são considerados enquanto sujeitos históricos, mas como espectadores da história; no máximo, meros coadjuvantes; quando não, marginais; e o Estado e seus governantes ocupam o lugar central do set, exercendo os papéis de mocinhos, de princesas, pois são generosos e ciosos para com os seus súditos.
Não obstante, é indispensável desfazer um mito muito divulgado pelas valorosas literaturas marxistas e anarquistas, que transpõem acriticamente as análises efetuadas sobre a realidade europeia para a América Latina, ignorando, muitas vezes, as nossas idiossincrasias. Elas, normalmente, desprezam que o marcador racial na América Latina é absolutamente contundente para a divisão social do trabalho, que aqui se transforma em divisão racial do trabalho, como muito bem sugeriu Anibal Quijano (2000). Em compêndio, na Europa, no século XIX, a classe trabalhadora era formada por homens brancos explorados nas fábricas, que empregavam milhares de vendedores de força de trabalho, sem uma clara distinção racial entre eles. Na América Latina, a situação é absolutamente diferente. Aqui, por óbvio, a classe dos vendedores de força de trabalho não é homogênea, pois é cortada pelo racismo, fruto do colonialismo. Dependendo do país, os indígenas foram escravizados, explorados, discriminados, exterminados. Em todos eles, suas terras foram roubadas pelos governantes brancos. Desde então, negros foram escravizados, tratados como meras mercadorias, como se animais de carga fossem. Destarte, apesar da sua crescente libertação por meio de fugas do cativeiro, alforrias, da formação de centenas de quilombos e até a abolição, os negros foram impedidos pelas leis estatais de criar suas próprias comunidades em terras livres, bem como preteridos dos melhores cargos de trabalho. Para tanto, a elite brasileira, através do Estado e/ou com a sua anuência, impôs dois atos fundamentais nesse processo: 1) criou a Lei de Terras de 1850, que impedia qualquer negro de ocupar terras devolutas sem que as comprassem junto ao Estado; 2) financiou a migração de trabalhadores pobres europeus para o país, dificultando a incorporação dos ex-escravizados no mercado de trabalho formal. Era a política da eugenia.
Esses atos precederam a instituição da Lei Áurea, foram difundidos em todo o país e nos negaram a independência, mesmo após a abolição, colocando-nos como meros vendedores de força de trabalho, nos piores empregos, considerando que a própria elite “abolicionista” já reservara os menos precários para os imigrantes brancos. A partir daí se criou uma divisão racial do trabalho. A maioria dos não proprietários na América Latina ainda é formada por corpos marcados pela melanina e por isso são preteridos e/ou discriminados. Outrossim, todos que fugiam da imposição do sistema de trabalho amplamente explorado, subordinado a um senhor, eram tratados como bandidos. Não sem coincidência, de acordo com os documentos oficiais, os quilombolas eram perseguidos, capturados e fortemente punidos, com a morte, inclusive. Nesses termos, era literalmente proibido pelo Estado que os negros almejassem viver livremente, sem que estivessem disponíveis para produzir riqueza, mercadorias e prazer para a elite branca.
Em suma, a história de formação da classe trabalhadora na América Latina é absolutamente distinta da europeia. Por isso, uma simples transposição de diagnósticos criados na Europa, para analisá-la, não pode ser instrumentalizada sem adequações para cá. De uma vez por todas, as teorias/metodologias europeias não podem ser consideradas como universais, como o eurocentrismo preconiza.
Em função das constatações supracitadas, não à toa, a maioria da população negra saiu da senzala para a favela, da condição de escravizado para desempregado/subempregado, do tronco para as prisões, do canavial para lavar os banheiros de shopping centers, das correntes para as valas comuns, das investidas de militares, policiais, dos capitães-do-mato e paramilitares contra os quilombos para principais alvos das “balas perdidas” das polícias e das sentenças do Judiciário, que prende mais negros do que brancos para os mesmos delitos.
Dito isso, podemos afunilar nossa reflexão para o significado da comemoração em torno da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, no dia 13 de maio de 1888. Nesse dia, o movimento abolicionista fazia um acerto de contas com a sua consciência liberal, hegemônica no século XIX, mas não deu um lugar digno aos escravizados, tal como o liberalismo nunca fez. Sabemos que parte da elite branca, muitos deles abolicionistas, dormiu melhor naquela noite, pois colocava o Brasil na rota da nova tendência do eurocentrismo: o liberalismo, que tanto se espraiava pela Europa (Hobsbawm, 2000). Nos órgãos oficiais, essa elite ganhou os louros de um ato cuja preocupação central não era com o bem-estar dos escravizados, mas em atender aos interesses políticos e econômicos de suas congêneres estrangeiras.
Nesse sentido, é importante efetuar uma mirada de mais longo prazo e situar a abolição formal no seu contexto, de modo a fazer justiça histórica e ratificar que praticamente tudo que foi construído no Brasil entre os séculos XVI e XIX foi produto do trabalho dos indígenas, dos africanos escravizados e dos seus descendentes que sustentaram a economia com sangue e suor. Paradoxalmente, na Constituição de 1824, do Império, não existia alusão à escravidão. Porém, havia a legalização da compra e venda de mercadoria e todo um arcabouço para defesa da propriedade privada. Foi nesse item legal que os negros eram considerados, logo, como peças, tal como um boi, uma vaca.
Não sem coincidência, uma das discussões centrais que dividiam os abolicionistas girava em torno das indenizações pelo fim da escravidão. Uns defendiam compensações aos negros; outros, aos proprietários, que perderiam suas propriedades. Parece absurdo, mas é verdade. Isto é, o movimento abolicionista, capitaneado por brancos, tinha divisões internas e, pasmem, uns defendiam indenizações aos usurpadores da liberdade dos negros, porém sequer cogitaram sobre ressarcimentos aos escravizados com distribuições de terras ou mesmo dos dividendos pelo que produziram, à força, para o país, durante três séculos. A corte da princesinha Isabel ignorou os que achavam que os negros deveriam ser compensados por séculos de tortura.
No 13 de maio, a elite branca esqueceu solenemente que os africanos viviam na África e de lá foram capturados, acorrentados, sequestrados, transportados por meses em navios negreiros, cujo percentual de morte era altíssimo. Eram tidos como mercadorias, avaliados, vendidos e postos a trabalhar como animais. Os que se rebelavam eram torturados em praça pública e/ou tinham suas cabeças cortadas literalmente. A crueldade era tamanha que os senhores separavam casais, membros das mesmas etnias, pais, mães e filhos, impondo-lhes a mais vil exploração, carregada de estupros e humilhações baseadas na negação das suas línguas e culturas. Os anciãos (portadores da ancestralidade dos seus povos) eram deixados à mingua até a morte, pois em função da pouca força física não interessavam para serem usados em trabalhos forçados. Enfim, violências que deveriam gerar, no mínimo, amplas formas de indenizações que foram solenemente ignoradas pela suposta heroína Isabel e seus abolicionistas brancos. Ademais, menosprezam: 1) que a proliferação de quilombos por todo o território destruía o sistema escravista por dentro; 2) que o Brasil foi o último país das Américas a revogar a escravidão; 3) que a família real foi sua fiadora por séculos; 4) que as elites patrocinaram a imigração de pobres europeus com vistas a “embranquecer” a população brasileira e usar sua mão de obra no lugar do negro liberto, legando-o, quase que sem alternativa, à miséria e ao banditismo; 5) que existiam grandes pressões sociais pelo fim da escravidão, e, por fim, 6) que grande parte dos escravizados já havia conseguido a alforria, quando da decretação da abolição formal.
Em síntese, na prática, o 13 de maio deixou os negros à própria sorte num mundo branco, racista, preconceituoso e hostil. O ato da abolição foi tão duro, proforma, que não veio acompanhado de nenhum pedido de desculpas público, de nenhum arrependimento, de nenhuma compensação. Nada de políticas de reparação. Foi um ato autoritário, pedante, de uma elite soberba, pressionada interna e externamente, que o realizou a contragosto.
Sem políticas públicas e atuação concreta do Estado na fiscalização, muitos negros continuaram trabalhando para os seus senhores sem nada receber ou para pagar eternamente a sua alforria. Sem dinheiro, sem casa, sem terras, sem qualquer amparo social, estatal, econômico, político, cultural, o que restava ao “liberto”? Na verdade, ele continuava preso à sua condição de inferior, indigno, marcado pela cor da sua pele. Sem acesso à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho dignamente remunerado, sem nenhum apoio estatal só lhe restava quatro caminhos: continuar trabalhando para seus senhores sem nada receber; sair para encontrar trabalho pouco ou nada remunerado em troca de comida e um lugar para dormir; participar de algum quilombo; optar pelo banditismo social.
Esses são os resquícios do colonialismo, portanto, colonialidades, não alteradas pela Lei Áurea, de acordo com as quais os negros não precisavam de reparação por tudo que sofreram. Aturamos as consequências dessa postura até hoje, quando parte mais conservadora de seus descendentes, ávidos pela manutenção de seus privilégios, resistem a todas as políticas de cotas raciais, políticas afirmativas. Enfim, toda forma de violência que deveria gerar no mínimo amplas formas de indenizações foram cuidadosa e solenemente desprezadas pelo Estado, pela heroína Isabel e seus abolicionistas brancos.
Não se trata aqui de se opor, per se, à Lei Áurea, que, legal e institucionalmente, significou um avanço, embora deveras atrasado, é verdade, até sob o ponto de vista liberal e eurocêntrico. Todavia, é fundamental que nossa sociedade saiba que a abolição formal só foi possível pelos milhares de quilombos espalhados por todo o território brasileiro, que existiram desde o século XVI, como nos mostrou Clóvis Moura (2019; 2020), Edison Carneiro (2001), Décio Freitas (1984), Abdias Nascimento (2019), Lélia González (2020), Sueli Carneiro e tantos(as) outros(as) cuidadosamente excluídos dos nossos currículos universitários e escolares, materializando o racismo epistêmico, a colonialidade do saber e o epistemicídio. Esses autores protagonizam os negros e enfrentam o historicídio, ou seja, as ações deliberadas para esconder, ignorar, assassinar no seu útero, as histórias das lutas de negros/indígenas/trabalhadores dos nossos currículos, livros e memórias, cuja ideia latente é não os considerar como sujeitos históricos, desencorajando-os para futuras investidas antirracistas, transformadoras, revolucionárias.
Por conseguinte, a comemoração do 13 de maio implica em uma perspectiva positivista de demonstração de subserviência e, em última instância, condescendência com o racismo institucional, legalizado e, sorrateiramente, mascarado desde então. Enquanto tivermos entre nós pessoas que queiram fazer festa para o jogo dos “generosos” governantes, descendentes de Isabel e Cia, como bajuladores dos habitantes da casa-grande, não aprenderemos que nossa emancipação ainda não foi concretizada para milhões de negros que saíram da escravidão formal e migraram para ações de rebeldias inconsequentes, passam fome ou “perrengue” em favelas, periferias e florestas.
Em contraposição ao imobilismo e à adaptação ao eurocentrismo, existem alguns movimentos que têm adotado a consigna segundo a qual a nossa libertação será fruto das nossas próprias ações. Foram por essas razões que os movimentos negros propuseram a comemoração do dia 20 de Novembro. Assim, objetivavam focar nas lutas emancipatórias dos nossos antepassados em alusão às suas ações diretas como forma de preservar as nossas culturas e apresentar como imprescindíveis os protestos por liberdade, igualdade, dignidade, terras, respeito, em uma palavra, autogoverno; em uma expressão: nós por nós! Não sem sentido, todas essas menções dizem respeito àquilo que os quilombos procederam na prática. Em extrato, a emancipação do negro será obra dele mesmo, mas para ser ampla e irrestrita deverá materializar-se contra o regime econômico que é sustentado, alimentado, retroalimentado, pela desigualdade social e que foi erigido pelo colonialismo e seu racismo. É impossível a liberdade negra no regime capitalista, como já diziam Lorenzo Kom’Boa (2004), Angela Davis (2016), Clóvis Moura (2014), Peter Geerdeloos (2011), Frantz Fanon (2018) e tantas(os) outras(os).
Por fim, como parte da perspectiva decolonial libertária quilombola, encerramos com duas referências eminentemente negras que dizem mais sobre nós mesmos do que quaisquer documentos oficiais do Estado ou reflexões de intelectuais eurocentrados. Por isso, citamos as letras de dois sambas-enredos de duas de nossas escolas de samba, que segundo Luiz Carlos da Vila, Abdias Nascimento, Lélia Gonzales e Clóvis Moura, são novas formas de aquilombamentos: “Que a Lei Áurea tão sonhada/Há tanto tempo assinada/Não foi o fim da escravidão/Hoje dentro da realidade/Onde está a liberdade?/Onde está que ninguém viu?/Moço/Não se esqueça que o negro também construiu/As riquezas do nosso Brasil/Pergunte ao Criador Quem pintou esta aquarela/Livre do açoite da senzala/Preso na miséria da favela”1 e “Valeu Zumbi/Do grito forte dos Palmares/Que correu terra, céus e mares, influenciando a abolição […] /Vem a Lua de Luanda/Para iluminar a rua/Nossa sede é nossa sede/E que o apartheid se destrua”2. Esses sambas são melhores do que muitos livros, leis e aulas de professores, políticos e juristas racistas brancos que dominam nossas instituições. Nenhum 13 de Maio e nenhuma lei criada pelos descendentes dos que nos escravizaram conseguirá, nem sequer tentará, contemplar nossas interpretações encontradas em barracões dos novos quilombos em favelas e periferias. Viva todos os quilombos e as suas lutas por liberdade!
Wallace de Moraes é professor do Departamento de Ciência Política e dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) e de História Comparada (PPGHC), todos da UFRJ. Membro do Quilombo do IFCS/UFRJ e do Coletivo de Docentes Negras(os) da UFRJ. Líder do Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias (CPDEL/UFRJ). Canal no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCI6ALgmE_efoCONkrPmQ9fw.
1 Compositores do samba da Vila Isabel de 1988: Jonas/Luiz Carlos da Vila/ Rodolpho.
2 Compositores do samba da Mangueira de 1988: Alvinho / Helio Turco / Jurandir.
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Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.